Amigos brasileiros, meio a sério, meio a brincar, costumam pedir de volta "o ouro do Brasil". De início, ficava pasmo. Ouro? Qual ouro? Não uso joias. Sempre achei que um homem com joias é um erro de casting.
Não, não são joias, Little Couto. Eles querem de volta o ouro que os portugueses levaram do país a partir de finais do século 17.
Tempos atrás, por causa de um lamentável episódio xenófobo com uma brasileira em Portugal, o ministro Flávio Dino até deu cobertura oficial à exigência. Se os portugueses não gostam de brasileiros, podem devolver também o ouro de Minas Gerais!
Calma, ministro. A estupidez de um patrício não define um povo inteiro. E, sobre o ouro, saberá o senhor que a descoberta das minas foi, provavelmente, a maior catástrofe econômica e política de Portugal? E que o atraso do país na era contemporânea se explica, precisamente, pelo ouro que o senhor reclama?
A tese está contida num dos melhores livros de 2023, que merecia uma edição brasileira, até para acalmar os ânimos. O autor é Nuno Palma, historiador português e professor da Universidade de Manchester, que analisa com rigor "As Causas do Atraso Português" (D. Quixote/Leya, 408 págs.).
No século 19, esse atraso consumiu os melhores espíritos e ficou célebre a conferência de Antero de Quental sobre as "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos".
O atraso dos ibéricos, segundo o filósofo e poeta, era explicado, entre outros fatores, pelo catolicismo obscurantista que impediu o progresso material, institucional e mental.
Nuno Palma não compra essa versão: países católicos, como a Bélgica ou a França, foram casos de sucesso na Europa oitocentista. Se queremos encontrar as raízes do atraso temos de viajar até ao século 18, quando o ouro começou a chegar em quantidades apreciáveis.
Sim, no curto prazo, Portugal enriqueceu. Mas a "maldição" desse recurso distorceu a economia de forma profunda, levando ao abandono das fábricas (a industrialização do país que era promissora no último quartel do século 17), ao favorecimento das importações e ao colapso da competitividade pátria.
Em meados do século 18, quando o ouro ainda chegava, a economia portuguesa estagnou e Portugal perdia o trem da Revolução Industrial. Estavam abertas as portas para o medonho século 19, feito de guerras civis e bancarrotas.
Mas o ouro do Brasil não teve apenas um impacto econômico nocivo. Argumenta Nuno Palma que, politicamente falando, o atraso institucional foi comparável. Quem pensa que o absolutismo régio português emergiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, desconhece o papel das cortes na limitação do poder do rei para lá desse período.
Esse elemento "protoliberal", que em Inglaterra só se afirmou verdadeiramente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, sempre fez parte da cultura institucional portuguesa desde a fundação.
Se o rei queria cobrar impostos, por exemplo, tinha de ouvir os representantes municipais, eleitos pelos seus pares. Para usar um célebre bordão americano, "no taxation without representation". A convocação das cortes era a expressão institucional desse princípio.
No século 18, com o ouro brasileiro, as cortes não se reuniram uma única vez. Para quê? A liquidez de que a Coroa dispunha permitia-lhe atuar sem prestar contas a ninguém.
No fundo, permitia-lhe atuar sem freios e contrapesos, cultivando antes as suas clientelas parasitárias e venais. O Marquês de Pombal e seus sucessores representaram bem essa nova cultura despótica e "iluminada".
Moral da história?
O iliberalismo português, que obviamente contagiou o Brasil, não começa com Salazar e a ditadura do Estado Novo no século 20. Começa antes, muito antes, na experiência absolutista de 700, que se espraiou até aos nossos dias.
Devolver o ouro?
Ó, meus amigos, ó meus irmãos: pudesse eu viajar no tempo para influenciar as cabeças dos meus antepassados e o ouro ficaria escondido nas entranhas de Minas Gerais.
Pelo menos, até que portugueses ou brasileiros tivessem atingido um patamar de desenvolvimento político e econômico a partir do qual o ouro seria uma benesse, e não uma ruína.