quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Sol ilumina as noites e muda a vida de 120 aldeias no Xingu, FSP

 


PARQUE INDÍGENA DO XINGU (MT)

O domingo de 17 de julho foi agitado nas proximidades da entrada leste da Terra Indígena do Xingu, área do povo kisêdjê, na altura de Querência (MT). Logo cedo já era possível ouvir o rumor das máquinas operando na mata rente à reserva. À tarde, a preocupação foi o incêndio. Ele avançava havia três dias, dando trabalho aos brigadistas, e a fumaça engrossara.

Homem segura rodo diante de painéis em uma área com árvores ao fundo; duas crianças estão ao lado das placas
Towayanin Kaiabi, o Velhinho, limpa placas solares que abastecem o polo Diauarum, no Xingu - Lalo de Almeida/Folhapress

As imagens do desmatamento e do fogo foram registradas pelo drone de Kamikia Kisêdjê, 38, fotógrafo e cineasta indígena cujas câmeras monitoram os perímetros. Há dois anos, as terras limítrofes a uma fazenda de cultivo de grãos começaram a ser desmatadas ilegalmente. As fotos e vídeos de Kamikia viraram provas para que as autoridades fossem acionadas. O risco voltou, e a reação dele também.

A Terra Indígena no Xingu não está ligada ao sistema nacional de energia elétrica. Boa parte do abastecimento depende de geradores a diesel, que operam apenas algumas horas à noite. Uma ação com um drone, como essa, só é possível graças a um componente adicional, a oferta de energia solar.

Atualmente, todas as 120 aldeias do território indígena têm algum sistema de geração fotovoltaica, com placas e baterias, o que garante abastecimento durante o dia e boa parte da noite, especialmente nos meses secos do inverno no Centro-Oeste.

Pelo menos 108 comunidades têm sistemas em áreas coletivas. Nas demais, é possível encontrar placas particulares, implantadas pelas próprias famílias.

Os esquipamentos costumam ser mais robustos nos chamados polos, os espaços comunitários onde ficam a escola e o posto de saúde.

O estúdio de Kamikia está em um desses polos, o de Wawi, na terra do povo kisêdjê. Ele conta que foi um dos primeiros indígenas a usar um drone porque teve infraestrutura. "Uso energia solar para tudo. Para carregar celular, baterias, os computadores que fazem a edição de imagem. Tenho até um carregador solar portátil", diz.

Em todo o mundo, a energia solar hoje é vista com alternativa limpa e barata na transição energética, para reduzir a dependência de combustíveis fósseis. No Brasil, essa fonte se tornou rentável e teve crescimento de 40% no primeiro semestre deste ano.

Na Terra Indígena do Xingu, porém, além de aliada na preservação do ambiente, ela é vista como uma forma de manter sua cultura ancestral.

"De uns dez anos para cá, começamos a participar dos debates sobre mudanças climáticas e descobrimos que a nossa forma de viver contribui muito para o equilíbrio do ambiente e do clima. Para nós, o uso da energia é entendido nesse contexto", afirma Ianukula Kaiabi Suiá, 44, presidente da Atix (Associação Terra Indígena do Xingu).

Ianukula explica que a energia das hidrelétricas é limpa, mas traz uma contradição para os indígenas: as obras levam ao desmatamento de grandes áreas. Ainda está presente na memória dos moradores da região a batalha perdida contra a usina de Belo Monte, no rio Xingu.

Aderir ao sistema nacional de energia também significaria permitir a instalação de linhas de transmissão nas terras indígenas, abrindo flanco para invasores. "A gente quer energia nas aldeias, mas não qualquer energia", afirma.

Em anos recentes, as comunidades passaram a viver mudanças movidas pelo desejo de usar a energia do sol. O catalisador, ele conta, foi a pandemia da Covid.

Com as aldeias fechadas, a troca de informações, a compra de suprimentos e até as assembleias de lideranças indígenas foram transferidas para plataformas digitais, o que exigiu a expansão da internet.

Kamihukalu Kamayura, 31, usa o celular sentada ao lado das baterias que são abastecidas por placas solares, em sua casa na aldeia Ngosoko, na Terra Indígena Wawi, no Xingu - Lalo de Almeida/Folhapress

"Até 2020, poucos lugares tinham internet, mas, durante o isolamento da Covid, as comunidades se organizaram para ampliar, e muita gente colocou até internet particular. Hoje, você encontra em praticamente todos os lugares", diz Ianukula. "Como internet precisa de energia permanente, cresceu junto o interesse pelos sistemas solares, já que não há como manter um gerador a diesel ligado o dia todo."

A reboque, o celular se popularizou nas aldeias, em especial entre os jovens. É cena corriqueira encontrá-los reunidos no entorno dos locais onde há sinal de internet, mergulhados nas telinhas.

Segundo Mbepkonoro Kisêdjê, 15, eles conversam com amigos e parentes em outras aldeias ou com brancos com quem fizeram amizade em redes sociais. No Instagram, Mbepkonoro costuma publicar fotos trajando indumentárias da tradição kisêdjê.

O investimento pessoal para garantir energia solar, no entanto, não é baixo.

Na aldeia Ngosoko, o professor Amto Suyá, 34, e sua esposa, Kamihukalu Kamayura, 31, desembolsaram R$ 9.000 para terem um sistema doméstico. Ele permite o uso regular de internet, TV, freezer, ralador de mandioca e uma máquina de lavar roupa do tipo tanquinho.

Com a rede, Kamihukalu, a quem todos chamam de Rita, usa o Instagram para vender os colares e pulseiras que produz.

ENERGIA LIMPA MOBILIZA COMUNIDADES E ONGS

Também há iniciativas coletivas para implantar miniusinas solares, fenômeno mais comum em aldeias menores.

Foi assim em Samaúma, uma aldeia kaiabi. A comunidade trabalha com tecelagem de bolsas e coleta de sementes para reflorestamento. Cerca de R$ 32 mil da receita dessas atividades foram compartilhados e revertidos na instalação de um sistema fotovoltaico para todos os 60 moradores.

Com a internet, os produtos locais passaram a ser vendidos também por Pix.

A organização também garantiu energia à pequena Piyulewene, uma aldeia do povo waurá, onde as mulheres são maioria.

O uso do gerador a gasolina havia virado um sacrifício. Os consertos e gastos com combustível drenavam as economias.

Para ter o sistema solar com a potência que desejavam foi preciso guardar R$ 23 mil ao longo de seis anos. Uma boa parte do dinheiro veio da venda de panelinhas artesanais de barro pintadas a mão.

"Para ter tudo que queremos, ainda precisamos economizar para comprar mais quatro placas", diz Yakuwipu Waurá, 35. Uma das ambições é ter um torno elétrico para a produção do artesanato.

As ONGs foram fundamentais para levar energia limpa ao Xingu. As primeiras experiências foram feitas nos anos de 1990 pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), mas a instalação escalou mais recentemente com o ISA (Instituto Socioambiental).

"Em 2009, já estava claro que era preciso ter uma fonte de energia mais estável, limpa e testamos diferentes opções, como biomassa, óleos vegetais de palmeiras, pequenas turbinas de lâmina d'água", lembra Marcelo Martins, que coordenou o trabalho de eletrificação do Xingu pelo ISA.

"A com melhor desempenho foi a solar, e optamos pelas instalações a passos lentos, conforme os recursos ficassem disponíveis."

As irmãs Agamakumalu Waura (vestido roxo), 39, Meixula Waura (vestido vermelho), 26, e Kumesi Periru (vestido amarelo), 24, recolhem o polvilho de mandioca que secava ao sol na aldeia Piyulewene, no Xingu; aldeia economizou por seis anos para instalar um sistema solar que abastecesse todas as casas - Lalo de Almeida/Folhapress

O processo ganhou velocidade em 2015, quando a fundação americana Charles Stewart Mott doou US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões). Batizado de Xingu Solar, o projeto bancou sistemas completos, com placas, conversores e baterias. A implantação incluiu o treinamento de indígenas para atuarem na manutenção dos equipamentos.

Um dos formados no programa foi Towayanin Kaiabi, 43, o Velhinho, que cuida hoje dos sistemas de 49 comunidades do Baixo Xingu. Ele monitora os inversores, lava placas, troca fusível e fiação.

Como não havia dinheiro para atender todas as residências, a base do projeto foi dar energia para postos de saúde, escolas e centros comunitários com o suporte eventual dos geradores com combustível fóssil.

No início do projeto, havia 70 aldeias e todas seriam atendidas. Como o número foi crescendo e hoje chega a 120, a iniciativa conseguiu alcançar 108.

"Posto de saúde sempre é prioridade, porque é preciso garantir refrigeração para medicamentos, nebulizador para as crianças e um atendimento a qualquer hora", diz Martins.

O maior sistema foi instalado em Diauarum, um dos polos mais tradicionais, que atende 39 aldeias. Suas imensas mangueiras, contam moradores, foram plantadas pelos irmãos Villas-Bôas, indigenistas que trabalharam pela demarcação do parque do Xingu, em 1961.

Tekaty Kaiabi, 39, tece fios de uma rede sentada em sua casa no polo Diauarum, no Xingu - Lalo de Almeida/Folhapress

No pico da pandemia, Diauarum virou um centro médico regional e o seu sistema solar operou 24 horas por meses. As baterias colapsaram. A troca demanda ao menos R$ 50 mil, recurso inexistente no momento. "A gente sabia que isso teria um custo lá na frente, mas muitas vidas foram salvas", diz Kurapy Kaiabi, 40, representante local da Atix.

Desde o início do ano, o gerador a diesel também parou. São necessários R$ 32 mil para o conserto. Agora, os medicamentos do posto são preservados com gelo.

À noite, apenas sistemas domésticos particulares operam hoje no polo. A família de Kurapy tem um deles. A sua esposa, Tekaty Kaiabi, 39, por exemplo, gosta de usar o horário noturno para tecer redes. "É mais sossegado à noite", diz ela.

Para o casal Tximari Kayabi, 33, e Eliane Lemos Santos, 34, que também instalou o seu sistema, a oferta prolongada de energia beneficiou o pequeno comércio que eles mantêm em casa. "A gente traz até frango congelado, mas esse tem boa saída, nem dura muito tempo no freezer", conta Eliane.

A série de reportagens Energia na Amazônia foi produzida com apoio da Rede Energia e Comunidades.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sérgio Rodrigues - Crimes em excesso viram geleia, fsp

 

Uma lei pouco comentada da arte narrativa pode nos ajudar a compreender um fenômeno aparentemente descabido que tem ficado claro nesta campanha eleitoral —e que nem meia centena de apartamentos comprados com dinheiro vivo deve ser capaz de alterar.

Por que, tendo se envolvido no maior número de crimes de um chefe de Estado na história do Brasil —com centenas de milhares de corpos de vantagem—, Jair Bolsonaro ainda passa por candidato qualificado aos olhos de uma fatia expressiva do eleitorado?

A resposta, que pode ser decisiva para o futuro do país, é complexa. Sem uma PGR servil e um Congresso comprado, disfunções graves em si mesmas, é provável que pelo menos algumas das acusações contra o presidente tivessem prosperado, alterando essa percepção.

Ao miasma de corrupção institucional é preciso somar uma imprensa titubeante, indecisa sobre o tom correto da cobertura, e o traço cultural mais profundo da transformação de fatos em fumaça no forno paranoico das redes sociais.

A tese que eu lanço aqui é que, além disso tudo, ajuda a explicar a blindagem bolsonaresca uma obrigação que as histórias impõem a seus narradores —a de escolher uns poucos detalhes para melhor conjurar o todo.

Por mais simples que seja uma cena, o número de informações à disposição de quem a conta tende ao infinito. Alguém entra numa sala. Quem? Como se veste? Com que intenção? Há outras pessoas lá? Como elas reagem ao recém-chegado?

Isso é só o começo. É possível descrever a sala, sua iluminação, suas janelas, quantos e quais itens de mobília e decoração há ali. Que horas são? Qual é a temperatura? Temos silêncio, música, ruído? E ainda nem adentramos a paisagem íntima dos personagens, seu passado etc.

Se tudo isso são possibilidades, nem tudo cabe na história —não se a ideia for que ela faça sentido. "Acaricie os detalhes, os divinos detalhes", dizia o escritor russo Vladimir Nabokov.

O conselho é precioso. Investir na metonímia, selecionar com carinho as partes que importam e deixar as outras de fora, caladas ou apenas sugeridas, é mais de meio caminho andado.

Sem um foco preciso cercado pelo não dito, toda narrativa vira uma gritaria indistinta. Quem procura contar tudo, abarcar tudo, cansa e oprime o leitor-ouvinte-espectador, que foge espavorido ou morto de tédio. Fadiga narrativa é uma coisa terrível.

Em outras palavras, quem tenta contar tudo não conta nada. Baz Luhrmann é o exemplo mais acabado de cineasta que recusa o silêncio e a seleção de elementos, afogando filmes como "Moulin Rouge" num excesso opressor de informação.

Bolsonaro é uma espécie de Baz Luhrmann da política. Sua biografia e seu prontuário são tão atulhados de barbaridades que acusá-lo de um crime —ou mesmo de dois ou três, o máximo que uma história coerente permite antes de virar geleia— significa guardar silêncio sobre outros dez, vinte, incontáveis. Quem cala absolve?

Talvez isso ajude a explicar por que, no debate da Band, ninguém falou em rachadinha ou racismo, e pouco foi dito sobre a corrupção superlativa do orçamento secreto, entre outros temas em que o presidente tem ficha sujíssima.

Do ponto de vista da arte narrativa, acusar Lula de um crime só, corrupção, tende a colar mais do que montar um amplo painel de acusações contra Bolsonaro. Elas são tantas e tão cabeludas que muita gente acha a história inverossímil, morre de tédio ou muda de canal.


OBITUÁRIO JOSÉ CARLOS ZANINI (1937 - 2022) Mortes: Ativo e metódico, viajou o mundo acompanhando Copas e Olimpíadas, FSP

 


SÃO PAULO

Com sorriso aberto, José Carlos Zanini olha para a câmera segurando seis ingressos em forma de leque.

Ele estava em Sydney, na Austrália, para as Olimpíadas de 2000, e foi personagem de uma reportagem da Folha com o título de "Viajar torcendo, torcer viajando".

José Carlos Zanini segura ingressos da Olimpíada de Sydney, na Austrália, em 2000 - Ormuzd Alves - 14.ago.2000/Folhapress

Recém-aposentado, divorciado e com os filhos crescidos, passou a colecionar eventos esportivos e carimbos de países exóticos no passaporte.

Acompanhou in loco seis Jogos Olímpicos e seis Copas do Mundo, além de inúmeras corridas automobilísticas e torneios de tênis, esporte que praticou até descobrir uma leucemia, em março do ano passado.

Em 1994, fritou no sol forte do Rose Bowl, em Los Angeles, para ver Roberto Baggio perder o pênalti que nos deu o tetra. Em 1998, foi um dos milhares que ficaram perplexos no Stade de France, em Paris, com a apatia de Ronaldo na derrota para a França.

Neto de italianos que viviam na roça, ele nasceu em Catanduva (SP) e chegou a São Paulo na década de 1960, para trabalhar no Banco do Brasil.

Formou-se engenheiro mecânico pela FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), mas nunca exerceu a profissão, pois logo passou em concurso da Secretaria da Fazenda do Estado. Fez carreira como "fiscal de rendas", antigo nome para auditor fiscal.

Entre os colegas, era famoso pelo conhecimento enciclopédico das normas tributárias. Metódico ao extremo, devorava livros, sempre anotando observações em suas margens. Tinha fascínio especial pela história russa.

Na pandemia, sem poder viajar, valeu-se do confinamento para voltar a estudar cálculo e física.

Na infância dos filhos, foi pai exigente, insistindo que praticassem esportes e alertando-os contra a "inércia mental, o pior tipo de inércia que existe". Conforme ficou mais velho, passou a ter uma atitude mais relaxada com a vida.

Palmeirense, leu diariamente O Estado de S. Paulo durante décadas, mas passou a fazer concessões esporádicas ao jornal concorrente quando o filho são-paulino foi trabalhar na Folha. Só não abriu mão do alviverde.

Sempre muito ativo, dirigia os mais de 400 km até São José do Rio Preto para visitar a irmã Maria José nos intervalos das sessões de quimioterapia. Mesmo com o câncer avançando, nutria esperanças de ver mais uma Copa, a do Qatar, no fim do ano.

Pouco antes do Dia dos Pais, precisou ser internado, e em 27 de agosto, sedado, parou de respirar e partiu serenamente, aos 84 anos.

Deixa, além do autor deste texto, os filhos Flávia e João Carlos, os netos, Rafael e Pedro, e a companheira, Maria Ângela.