terça-feira, 15 de março de 2022

'Tire o seu rosário do meu ovário!', Cristina Serra, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Neste mês em que celebramos conquistas das mulheres, tivemos aqui no Brasil demonstrações ultrajantes do quanto regredimos em respeito às nossas lutas e reivindicações. E aqui peço licença ao leitor para me incluir no texto como sujeito do coletivo maior: mulheres que lutam para ocupar espaços em sociedades ainda marcadamente patriarcais.

O tratamento degradante a nós dirigido vem do mesmo caldo onde fermentam Bolsonaro e outras figuras repulsivas, como o deputado paulista que escarneceu de refugiadas de guerra, na Ucrânia, e o procurador-geral da República. Augusto Aras disse o que entende por liberdade de escolha para as mulheres: nós podemos decidir a cor do esmalte e o sapato que queremos usar.

O discurso do PGR, recendendo a bolor e ranço machista, ignora o direito de escolha que realmente nos interessa: a autonomia sobre nossos corpos para decidir quando e como ser mãe. Nesse sentido, o Brasil está na contramão de importantes vizinhos. A chamada "maré verde" começou com a Argentina (2020) e expandiu-se com o México (2021) e a Colômbia (fevereiro de 2022).

As instituições desses países deixaram de considerar o aborto crime, em diferentes fases da gestação, dando às mulheres condições de interromper a gravidez de forma segura, no sistema público de saúde, não sozinhas e desesperadas em clínicas clandestinas, onde muitas encontram a morte. No Brasil, o aborto só é permitido em caso de estupro, risco à vida da mãe e quando o feto não tem cérebro (anencéfalo). São condições que não dão conta da nossa realidade.

A mescla, proposital e nefasta, entre política e religião, estimulada por Bolsonaro e sua base fundamentalista e argentária, contamina o debate e trava qualquer avanço legislativo que nos permita escapar do risco de prisão, sequelas ou morte diante de uma gravidez indesejada. É por isso que temos que continuar a gritar alto e bom som: "Tirem os seus rosários dos nossos ovários!".

Manifestante segura faixa com inscrição 'Poder Escolher', após a Corte Constitucional da Colômbia aprovar a descriminalização do aborto - Luisa Gonzalez - 21.fev.2022/Reuters

Políticos teflon têm salvo-conduto para barbarizar, Hélio Schwartsman, FSP

 Aqui se faz, aqui se paga, assevera o ditado popular. Mas nem sempre. Arthur do Val disse absurdos sobre as mulheres ucranianas, suas declarações vazaram e ele agora sofre as consequências. Teve de renunciar à pré-candidatura ao governo paulista e muito provavelmente terá seu mandato de deputado estadual cassado.

Quer você considere esse tipo de cancelamento uma forma de justiça rápida, quer o veja como uma manifestação da tirania da maioria, simplesmente não há como evitar que as pessoas reajam ao que entendem ser uma grave violação moral. Em tempos de redes sociais, esse sentimento pode converter-se instantaneamente numa onda de indignação que leva tudo em seu caminho.

O curioso é que o fenômeno não se aplica a todos. Nem a todos os políticos. Existe um seleto grupo de homens públicos que parece ter licença para dizer os piores despautérios e escapar, não a críticas, mas ao cancelamento. No folclore político, eles são conhecidos como candidatos teflon, nos quais nada gruda.

Um caso clássico é o de Donald Trump. Na campanha de 2016, vazou um áudio em que ele se vangloriava de poder agarrar mulheres por seus órgãos sexuais sem que nada lhe acontecesse. E nada aconteceu. Para ser mais preciso, houve queda leve e transitória nas pesquisas, mas o escândalo não o impediu de vencer o pleito. No Brasil, temos Jair Bolsonaro. Ele dá uma declaração impudicamente sexista por mês. A campeã, creio, é aquela em que ele classificou a própria filha como uma fraquejada.

O problema são os eleitores de direita, que são trogloditas, dirá o eleitor de esquerda. Até concordo, mas Lula também faz parte do grupo dos políticos teflon. Ele já afirmou que a cidade de Pelotas era um polo exportador de homossexuais, sem sofrer nada parecido com um cancelamento.

Felizmente, a lista de políticos ultracarismáticos com salvo-conduto para dizer qualquer barbaridade e se dar bem é reduzida.


segunda-feira, 14 de março de 2022

Celso Rocha de Barros Ideias para o pós-Jair, FSP

 Foi só o bolsonarismo começar a ir embora que voltou o debate de ideias. Em "Reconstrução: O Brasil nos Anos 20", organizado por Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska, um grupo de autores de altíssimo nível, todos jovens, propõe ideias para a retomada do projeto de construção da democracia brasileira. É um livraço.

O presidente Jair Bolsonaro no palácio da Alvorada - Pedro Ladeira/Folhapress

Os capítulos são textos de diferentes tipos: por exemplo, há boas reconstruções históricas, como as de João Villaverde e Rodrigo Brandão sobre o presidencialismo brasileiro; ou a de Irapuã Santana sobre as políticas públicas que preservaram a desigualdade racial herdada da escravidão. Há dois excelentes textos sobre o estado de nossa esfera pública: um de Laura Karpuska e Vandson Lima sobre accountability nas redes sociais e na imprensa e outro de Tai Nalon, chefe da agência de checagem Aos Fatos, sobre o problema das fake news.

Há também várias propostas boas de políticas públicas, que podem ajudar na construção dos programas de governo dos candidatos de oposição.

Talita Nascimento propõe a replicação dos casos de sucesso do Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), do Ceará, e do ensino médio de Pernambuco. O PAIC extinguiu a indicação política dos diretores de escola, criou materiais estruturados para serem usados por professores e alunos em sala de aula e implementou uma política de incentivos para municípios cujos alunos apresentassem boa evolução. Em Pernambuco, a jornada escolar do ensino médio foi ampliada para 9 horas diárias, incluídas horas para tutoria, laboratório e horários de leitura, tudo a partir de metas estabelecidas em diálogo com as escolas.

Pedro Fernando Nery propõe um benefício infantil universal ou semiuniversal pago por criança, como os que já existem em diversos países. Nery chama atenção para um aspecto importante do problema: os pais das crianças ricas já recebem um benefício quando descontam gastos com dependentes no Imposto de Renda.

Rodrigo Orair, Theo Palomo e Laura Carvalho propõem uma reforma que torne a tributação brasileira mais progressiva. A reforma incluiria, entre outros pontos, um imposto sobre carbono que aceleraria nossa transição para uma matriz energética mais limpa, regras mais semelhantes para a renda do trabalho e da atividade empresarial (inclusive, suponho, a dos "pejotizados"), um imposto sobre patrimônio dos mais ricos e a adoção de um imposto de valor agregado como o proposto no projeto de reforma tributária do economista Bernard Appy.

Em um texto muito instigante, Laura Karpuska, Felipe Salto e Ricardo Barboza propõem reformas para reconstruir nossa economia com base em três ideias: (a) abertura comercial; (b) a luta contra o spread bancário para reduzir os juros; e (c) a melhoria de nosso ambiente de negócios. A defesa da abertura deve suscitar resistências no leitor de esquerda. É um assunto a ser tratado com cuidado, mas a direção geral tem que ser a integração. O exemplo dos países do leste asiático (inclusive os de governo comunista) mostram que é difícil prosperar no capitalismo moderno sem nos integrarmos às cadeias de produção globais.

Enfim, se eu fosse o Lula e fosse eleito, já mandaria uns três capítulos desses como projeto para o Congresso antes de a plateia da posse acabar de cantar "Lula lá".