sexta-feira, 11 de março de 2022

Estações de transporte precisam ser tratadas como espaços públicos, Mauro Calliari, FSP

 Em São Paulo, são feitas quase 8 milhões de viagens por dia em transporte coletivo. Quando se fala nesses deslocamentos, habitualmente pensamos no tempo dentro dos vagões e ônibus, mas tendemos a desconsiderar os 20 minutos, em média, que se gasta na baldeação ou esperando o transporte. Infelizmente, esse tempo todo é passado em locais às vezes desconfortáveis, às vezes inseguros, às vezes apenas sem graça.

Muitos terminais na região central, que surgiram a partir de paradas dos ônibus, ocuparam praças e ruas, matando os espaços públicos onde se localizam. É o caso do Terminal Bandeira, que invadiu uma praça e deixou um complexo desengonçado, que obriga os passageiros a subir por acessos apertados e quentes, até as passarelas para chegar aos ônibus.

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As maiores confluências de linhas, como Sé ou República, sofrem com o fluxo de passageiros e usam mal o espaço que sobra. O terminal Dom Pedro II não conversa com o entorno e ainda obriga os passageiros de ônibus a andarem 500 metros para fazerem baldeação.

Vista aérea do terminal de ônibus Parque Dom Pedro II
O terminal de ônibus Parque Dom Pedro II não conversa com o entorno e ainda obriga os passageiros de ônibus a andarem 500 metros para fazerem baldeação - Danilo Verpa = 24.mar.21/Folhapress

A Estação da Luz está num prédio histórico, mas não tem urbanidade —as grades parecem conduzir rebanhos em vez de pessoas. A Estação Santa Cruz, que tem um shopping em cima, sacrificou o tamanho das calçadas para acomodar os ônibus. Na linha amarela, as estações ocupam espaços descomunais mas não devolvem conforto. Na estação Fradique Coutinho, o pessoal senta mesmo é nos canteiros.

As estações de trem melhoraram muito nos últimos anos. O problema é que elas estavam tão ruins que continuam com problemas básicos —desde os degraus absurdos entre a plataforma e o vagão até a falta de limpeza e acessos difíceis.

O movimentadíssimo Terminal Rodoviário do Tietê tem lojas, lanchonetes, acesso ao metrô e centenas de lugares para sentar. Porém, é um espaço sofrido. Os banheiros são sujos, tudo é barulhento, as pessoas se aglomeram para conseguir comprar um café e a saída até a rua num feriado exige coragem e estratégia.

Os pontos de ônibus são tantos e os problemas tão grandes que vão merecer uma coluna só para eles.

O Terminal da Lapa é considerado um dos melhores terminais de ônibus da cidade, com um projeto arquitetônico premiado
O Terminal da Lapa é considerado um dos melhores terminais de ônibus da cidade, com um projeto arquitetônico premiado - Zanone Fraissat - 9.jun.20/Folhapress

Também há os bons exemplos. O Terminal da Lapa é considerado um dos melhores terminais de ônibus da cidade, com um projeto arquitetônico premiado. Há lugares para comer, o acesso para a rua é fácil, os banheiros são cuidados e há lugares ventilados para sentar.

Várias estações de metrô também não fazem feio quando se trata de criar espaços públicos e oferecer alguma distração. Algumas, das linhas azul e verde, se integram bem à cidade. Na Liberdade, estudantes fantasiados se encontram nas escadarias aos sábados. Na Sumaré, há uma surpreendente vista para o vale. Na São Bento, há até slams de poesia. Em todas as estações, é comum ver gente marcando encontros na saída das catracas.

Como transformar as estações e terminais em espaços públicos dignos?

A cidade tem 31 terminais rodoviários municipais, 91 estações de metrô, mais de 20 mil pontos de ônibus e abriga mais da metade das 57 estações da CPTM. Não dá para exigir que todas essas configurações consigam oferecer uma experiência memorável. Mas não é muito exigir que os pontos de ônibus e pequenas estações sejam dignos e que os grandes terminais ofereçam algo mais do que um espaço de passagem.

O primeiro passo é conceitual: assumir que a função de transportar pessoas não é incompatível com o respeito ao passageiro e à cidade. A tese de doutorado da arquiteta Yara Baiardi, do Mackenzie, mostra que há uma dicotomia entre o conceito de nó e de lugar. A função de transporte acabou se sobrepondo —e até ignorando— a importância histórica dos lugares e do entorno.

Outro passo é ampliar o foco e incluir a noção do urbanismo ao redor do edifício. Há uma lei municipal que trata disso. Na concessão de terminais municipais, os ganhadores têm que fazer projetos para o entorno e precisam oferecer manutenção e serviços. A lei, como tantas outras na cidade, demorou anos para começar a ser aplicada e talvez gere algum projeto urbanístico nos próximos anos. A ver.

Também vale a pena olhar para o que acontece fora do Brasil. Em várias cidades do mundo, há estações que, mesmo gigantescas, são espaços públicos de verdade. Em Londres (ING), a King´s Cross criou uma praça agradável na frente da estação. Em Leipzig (ALE), a antiga gare de trem foi sendo renovada e hoje é um lugar de passeio, compras e encontros. Na Holanda, qualquer estação tem espaço para centenas de bicicletas.

Passageiros passam pela estação King´s Cross, em Londres (ING)
Passageiros passam pela estação King´s Cross, em Londres (ING), que é um exemplo de urbanismo, com lojas e serviços - Henry Nicholls - 21.jan.22/Reuters

Por fim, é preciso desenvolver uma obsessão pelos detalhes. Terminais são estruturas enormes, mas é nas coisas pequenas que os problemas realmente afetam os usuários. A distância para trocar de transporte, o assédio no vagão, a falta de papel higiênico, a dificuldade de se cadastrar para usar um bicicletário, a largura das calçadas e o poste de luz são tão importantes quanto o número de pessoas transportadas. As métricas de transporte precisam começar a avaliar a qualidade também.

Tática da União Soviética é pesadelo para tanques de Putin na Ucrânia, FSP

 Igor Gielow

SÃO PAULO

As imagens se multiplicam pelas redes. Tanques, blindados e veículos militares das forças invasoras de Vladimir Putin desabilitados ou destruídos em estradas da Ucrânia são uma das mais poderosas armas de propaganda para o moral de Kiev na guerra.

Ironicamente, as perdas russas decorrem de uma tática de emprego de mísseis antitanque portáteis idealizada por Moscou na Guerra Fria, que a essa altura são tão conhecidas que demandariam ações preventivas mais efetivas.

Soldado ucraniano treina com um sistema Javelin perto de Rivne, no ano passado
Soldado ucraniano treina com um sistema Javelin perto de Rivne, no ano passado - Gleb Garanitch - 26.mai.2021/Reuters

Boa parte dos acertos é atribuída ao uso intensivo dessas armas, principalmente o lançador de mísseis americano Javelin e o modelo sueco-britânico NLAW. Embora não haja números precisos divulgados, eles integram o lote de 20 mil foguetes que a Otan (aliança militar ocidental) disse ter entregado até aqui para os ucranianos, incluindo aí modelos portáteis antiaéreos.

O Javelin (dardo, em inglês) é o modelo mais temido, por seu maior poder de fogo. Ele pode atingir alvos, em média, a até 2,5 km em trajetória direta ou, para terror dos blindados, numa curva a até 150 metros de altura seguido de uma descendente: blindados geralmente são mais frágeis no teto. Por isso há imagens de tanques T-72 russos com gaiolas de aço sobre suas torres.

Ele pode ser disparado por um só homem, embora usualmente haja um segundo ajudando a municiar o equipamento. Cada míssil custa US$ 175 mil (R$ 880 mil).

Sua doutrina de emprego remonta aos anos 1960, quando a União Soviética criou o primeiro modelo portátil para uso contra blindados e tanques, o 9M14 Maliutka (pequenino, em russo), conhecido no Ocidente como AT-3 Sagger.

Ele foi visto em ação no início dos anos 1970 na Guerra do Vietnã, mas sua estreia mais rumorosa foi na Guerra do Yom Kippur, quando Egito e Síria atacaram Israel de surpresa em 1973. As forças blindadas israelenses sofreram brutalmente com a mobilidade dos ataques —e, naquele tempo, a tecnologia ainda obrigava o atirador a guiar o míssil com cabos finos até seu alvo, enquanto hoje a mira infravermelha permite disparar e sair correndo.

Aprendida a lição, Israel só expôs suas forças blindadas em ambientes com esse tipo de adversário depois de fazer uma varredura com artilharia antes, matando os potenciais atacantes.

Isso foi incorporado pela doutrina de combate da Otan, que temia ser esmagada pela força blindada soviética no caso de uma invasão da Europa Ocidental. Os EUA só passaram a contar com um lançador de míssil antitanque realmente portátil em 1975, e o Javelin é sua encarnação mais recente, de 1996.

Agora, os generais de Putin parecem estar usando a mesma tática dos israelenses, deslocando colunas blindadas na Ucrânia de forma que surpreendem analistas militares. A imagem de um comboio sendo atingido por fogo cruzado na quarta (9), numa larga avenida em Brovari, perto de Kiev, é exemplar disso.

O fato de que o megacomboio de 64 km de comprimento a nordeste de Kiev se dispersou, segundo relatos que emergiram nesta sexta (11), sugere que as táticas podem estar em adaptação no campo.

Há também outros elementos modernos que os russos parecem ter subestimado, como o uso de drones de ataque pelos ucranianos. O principal modelo usado por Kiev é o turco Bayraktar-TB2, que já era objeto de atenção na comunidade de especialistas militares russos devido a seu sucesso contra tanques e blindados armênios quando foi empregado pelo Azerbaijão na guerra que venceu em 2020.

Os russos também têm alguns drones, mas não em grande quantidade, e têm sido comedidos no uso de sua aviação tática até aqui. Seus caças e aviões de ataque começaram a ser mais vistos somente nesta semana, e há quem especule de forma sombria que eles possam estar sendo poupados para a eventualidade de a guerra se ampliar para países da Otan.

Uma explicação alternativa para o comportamento russo é que, numericamente superiores, eles simplesmente acreditam que irão esmagar a resistência, apesar do fluxo constante de armas que entra pela fronteira da Polônia com a Ucrânia.

Nesse sentido, Putin estaria lutando de uma forma bastante convencional, o que também tem causado certo espanto pelas baixas que têm apresentado —naturalmente, pela intensa propaganda ocidental em favor de Kiev, há muito menos relatos e imagens dos danos infligidos aos ucranianos, que são bastante consideráveis pelas informações disponíveis.

Desta forma, e até porque os números disponíveis de Javelin e NLAW (sigla inglesa para arma leve antitanque de nova geração) não são infinitos, é possível que a força bruta prevaleça.

Há considerações de filosofia de combate também. "Putin não pode imaginar uma guerra em que a ponta de lança seja outra que não o tanque. Aparentemente ninguém contou a ele que as coisas mudaram", escreveu George Friedman, um dos principais analistas estratégicos dos Estados Unidos.

"Ele está lutando a guerra da forma como nossa geração sempre esperou, com centenas de tanques avançando para o combate. É como usar a cavalaria para ganhar a Primeira Guerra Mundial. Nostalgia pode ser perigosa", completou.