quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Fundo compra casas para oferecer aluguel 30% menor a famílias pobres, FSP

 

SÃO PAULO

Há pouco mais de dois anos, Enzo, hoje com quatro anos, vivia no hospital, uma internação depois da outra, sempre por complicações respiratórias. A mãe, Mariana da Silva Moura, 35, conta ter ouvido de médicos, mais de uma vez, a mesma pergunta: "o quarto em que ele dorme é bem ventilado?". Não era.

Mariana, o marido e os três filhos –duas meninas mais velhas do que Enzo– moraram durante quase seis anos em uma ocupação na região central de São Paulo, no bairro Campos Elíseos. O espaço, antes destinado a um comércio, ficava sobre o sistema de escoamento de esgoto do prédio e só tinha uma janela, que era voltada para o interior do residencial.

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"Eu tenho muito a agradecer por ter conseguido morar lá, mas era complicado. Já teve chuva que a caixa de esgoto transbordou dentro do quarto. Era tudo espremido, úmido. Nós estávamos sempre procurando, mas o aluguel é muito caro", diz.

Mariana da Silva Moura com o marido e o filho no apartamento reformado pelo Fundo Fundo
Mariana com o marido e o filho no apartamento reformado pelo Fundo Fica - Bianca Antunes/Divulgação

Em 2019, a família de Mariana foi selecionada por um projeto que tenta democratizar o acesso à moradia por meio de compra ou comodato de casas e apartamentos em situação de abandono ou que favoreçam uma negociação.

Os aluguéis, voltados a famílias de baixa renda vivendo em cortiços, ficam entre 30% e 50% mais baratos do que os praticados pelo mercado. O imóvel em que Mariana vive tem 47 metros quadrados e foi cedido ao Fundo Fica por meio de comodato. Uma reforma foi bancada com o dinheiro de doações.

"Mudou totalmente nossa vida, em muita coisa. Tem segurança para o meu marido, que sai cedo para o trabalho, o espaço, o conforto. Sem contar a felicidade das minhas meninas, que agora têm o cantinho delas", diz Mariana.

O filho, Enzo, também já não demanda tantas idas ao hospital. "Antes ele vivia mais em casa e no hospital do que na creche."

A família paga R$ 343 pelo aluguel e outros R$ 467 pelo condomínio. Para se ter uma ideia do contraste: o aluguel de um apartamento de 48 metros quadrados na mesma rua em que a família vive pode chegar a R$ 2.300, segundo um agregador de anúncios imobiliários.

"O mercado de moradia, o mundo dos cortiços, é muito perverso. A pessoa está sempre no limite. O que nós queremos é desintermediar esses aluguéis e torná-los acessíveis", diz o diretor do Fica, Renato Cymbalista, para quem o modelo de propriedade não especulativa e com finalidade social precisa ser difundido no Brasil.

​Em novembro, terão novos endereços três famílias selecionadas em um novo braço de atuação do Fundo Fica, batizado de Compartilha.

No lugar do financiamento via doações –que podem ser de diversos valores–, nesse segmento o fundo propôs a captação por meio de investidores que receberão retorno de 4% ao ano durante dez anos.

Roberto Fontes, coordenador do Compartilha, na casa comprada pelo projeto; em novembro, o imóvel será ocupado por famílias que pagarão até 30% menos pelo aluguel - Eduardo Anizelli/Folhapress

Esse percentual, diz Cymbalista, virá do pagamento dos aluguéis e garantirá que os investidores não percam dinheiro –ainda que, em muitos momentos, esse retorno fique abaixo da inflação.

As cotas foram de R$ 10 mil e o investimento será garantido pelo próprio imóvel –se algo der errado, ele é vendido e os valores serão devolvidos. Ao todo, R$ 325 mil foram captados.

Somados aos R$ 150 mil que o fundo colocou como investidor (dinheiro vindo de doações), os valores permitiram a compra dessa casa, localizada no Bom Retiro, e o levantamento de parte do dinheiro a ser usado em uma próxima casa.

Roberto Fontes, coordenador do Compartilha, diz que a seleção dos núcleos familiares que viverão no Bom Retiro está em fase final. Os três quartos da casa serão ocupados por famílias de até quatro pessoas –grupos chefiados por mulheres foram priorizados na escolha.

"Nos cortiços, essas pessoas ficam expostas à violência, há muita insegurança, com consquências na saúde. Para o projeto, elas não precisam de fiador, não precisam de comprovante de renda", diz.

Os gestores envolvidos com o projeto destacam também a segurança jurídica dos aluguéis por meio do Fica e do Compartilha. Todos os moradores têm contratos de locação cobertos pela lei do inquilinato, proteção inexistente em cortiços e pensões.

Hoje, o alcance do projeto ainda é limitado. Com o desenho do Compartilha, de investimento social, a expectativa do Fica é conseguir aumentar o número de famílias atendidas. Ainda assim, nos próximos quatro anos, o projeto terá chegado a 50 famílias.

Renato Cymbalista diz esperar que o fundo atraia a atenção do poder público para que iniciativas como o Compartilha possam ser incluídas na elaboração de políticas públicas.

Para ganhar escala, é necessário que haja dinheiro, principalmente, mas o Estado pode atuar desde a solução de burocracias e a regularização de imóveis, até privilegiar o acesso em leilões de espaços desocupados.

Muitos dos imóveis da região central têm propriedade múltipla e as negociações só podem ser fechadas se toda a papelada estiver em dia. São meses até que todas as certidões estejam prontas.

"Esperamos que a gente possa ser levado a sério na elaboração de políticas. Há uma quantidade enorme de pessoas que precisam de moradias, mas cuja renda não chega a ser suficiente. Moradia regular precisa ser uma prioridade", afirma Cymbalista.

Não se sabe quantos são, hoje, os cortiços em São Paulo. Em 2002, a Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados) estimava 160 mil famílias vivendo em 24 mil moradias multifamiliares na zona central da capital paulista.

O programa de atuação em cortiços do governo de São Paulo descreve essas habitações como "subdivididas em cômodos alugados informalmente, situados em áreas urbanas dotadas de infraestrutura completa, e que apresentam condições físicas precárias, uso coletivo das instalações sanitárias e sobreposição de funções sem qualquer privacidade."

Em 2017, a prefeitura de São Paulo chegou a reservar orçamento para um censo dessas moradias, mas a pesquisa não andou.


CORONAVÍRUS Mesmo com fim da pandemia, Covid permancerá e deve causar gripe grave, FSP

 


SÃO PAULO

Mesmo com o fim da pandemia, Covid-19 ficará entre nós em forma de endemia. A doença vai continuar presente, mas sem um aumento significativo de casos. O Sars-CoV-2 será mais um dos vírus que causam a gripe grave.

A avaliação é do cirurgião Paulo Chapchap, que liderou um grupo de médicos e especialistas em saúde pública no Todos pela Saúde, uma iniciativa do Itaú-Unibanco que investiu mais de R$ 1,2 bilhão no combate à pandemia e agora virou tema de documentário.

Frustrações, dificuldades, desafios, erros e acertos desse trabalho compõem o filme "SARS-CoV-2/O Tempo da Pandemia", dirigido por Eduardo Escorel e Lauro Escorel. O longa estreia no próximo dia 30, no Cinesesc, durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Cena de reunião diárias do grupo Todos pela Saúde, cujo trablaho virou tema de documentário "Sars-CoV-2 - O Tempo da Pandemia" - Divulgação

O grupo, composto por Drauzio Varella, Eugênio Vilaça, Gonzalo Vecina Neto, Maurício Ceschin, Pedro Barbosa e Sidney Klajner, reuniu-se diariamente em 2020 para decidir as medidas mais urgentes a serem tomadas durante a crise sanitária.

Dentre as inúmeras frentes, foram feitas campanhas de informação, a compra de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), respiradores e outros equipamentos hospitalares, de oxímetros para as unidades básicas de saúde, testes sorológicos, além da capacitação de profissionais.

"Não existe saúde pública sem informar as pessoas do que elas têm que fazer e quais são os direitos delas. Procure peças publicitárias do Estado [sobre medidas preventivas], não tem. Uma parte importante dos recursos [da iniciativa] foi para o pilar de informar", afirma o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto.

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Assista ao trailer:

"Parecia que [as autoridades federais] estavam remando contra. Você faz ampla campanha de distanciamento físico e utilização de máscara, e as nossas autoridades se reúnem, aglomeram e não usam máscaras, dizem que isso é bobagem", lembra Chapchap sobre práticas negacionistas lideradas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

A mesma frustração, segundo ele, aconteceu em relação ao tratamento precoce com medicamentos sem eficácia para a Covid, rechaçado pelo grupo, mas incentivado pelo Planalto.

No início, não havia informação nem do que estava faltando, lembra Maurício Ceschin, ex-presidente da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). "Já tinha uma avalanche de doentes chegando aos serviços e a gente não tinha um retrato. Faltava leitos de UTI, faltava monitor, faltava luva. Quanto faltava? Aonde faltava? Nós não tínhamos essa informação, o Ministério não tinha, ninguém tinha."

O grupo enviou equipes para todos os estados do país e em um mês havia montado gabinetes de crise em todos eles. Em 186 hospitais referências em Covid, profissionais alocados pela iniciativa passaram a orientar equipes locais sobre o fluxo de pacientes, a identificação de casos graves e os melhores protocolos.

"Uma coisa é fazer gestão em tempos de bonança, a outra é a gestão quando no seu hospital você tem 15 ambulâncias e não tem um leito vago para internar", comenta Eugênio Vilaça, consultor em saúde pública.

A enfermeira Verlaine Alencar, administradora de saúde no Hospital Sírio-Libanês, foi uma das que se deslocaram até Manaus (AM) no auge das mortes para ajudar na gestão da crise. "Apesar da briga da família [que temia por sua segurança], do medo, eu disse ‘eu vou’. Havia falta de leitos, Samu parado na porta sem o pessoal conseguir receber o paciente, pessoas morrendo numa situação bem complicada", lembra.

O grupo atuou também em várias instituições de longa permanência para idosos fazendo testes de Covid nos residentes e nos profissionais e implantando protocolos mais adequados de cuidado. Videochamadas entre os idosos e suas famílias, além de mimos como radinhos de pilha, também foram providenciados.

Algumas ações do grupo, porém, não se mostraram tão efetivas na prática. Um exemplo foi a transformação de escolas em alojamentos para abrigar infectados que não tinham condições de manter o isolamento porque vivem em moradias precárias com muitas pessoas em um mesmo cômodo.

"Foi um fracasso. As pessoas não querem ficar isoladas, querem ficar junto com a família. As mulheres com filhos, se forem para um abrigo, quem cozinha para eles, quem cuida deles? Deu errado, não funcionou, gastamos dinheiro à toa", diz o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha.

Por meio de depoimentos do grupo gestor e de relatos de sete profissionais da linha de frente, o telespectador revive os momentos mais críticos da pandemia, como o esgotamento de leitos de terapia intensiva em Manaus (AM).

"Foi muito traumático. Chegava num setor e eram 20, 30 pacientes com indicação de UTI. O jeito era escolher aqueles com mais probabilidade de sobreviver. Internamos pessoas em cadeiras de roda, em macas no chão", lembra o médico intensivista Marcelo Ferreira, coordenador da UTI do Hospital Dr. João Lúcio.

Muitos dos depoimentos são carregados de emoção. "Tive mortes amigos próximos que me doeram muito porque poderiam ser evitadas [com decisões corretas dos governos]. O que me incomoda é a morte desnecessária", diz Ceschin, com olhos marejados e voz embargada.

Pedro Barbosa, diretor-presidente do Instituto de Biologia Molecular do Paraná, também se emocionou com as lembranças. "A sensação de impotência é muito ruim. É um misto de tristeza e de revolta. É um sofrimento de ver tanto negacionismo e a barbárie acontecendo."

Em outubro do ano passado, com os recursos praticamente esgotados, o grupo começou a ser desmobilizado e foi surpreendido com a segunda onda da pandemia, com Manaus vivendo, de novo, uma situação muito crítica, agravada por falta de oxigênio.

"Aquilo acontecer com uma população onde 76% das pessoas já tinham tido contato ou infecção por Covid um ano antes? Eu me senti um pouco no meio do filme do dia da marmota [Feitiço do Tempo, 1993] onde tudo acontece de novo. Só que numa situação em que os recursos humanos beiram à exaustão", comenta Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein e também colunista da Folha.

Para os especialistas, o Brasil perdeu a guerra de enfrentamento da pandemia. "Poderia ter sido diferente se a autoridade federal tivesse entendido os vários de graus de sofrimento, o social, econômico, o educacional. Vimos famílias inteiras sendo dizimadas", afirma Chapchap.

Eugênio Vilaça se diz ainda impactado com toda a desgraça causada pela pandemia, mas otimista com o futuro. "Tenho esperança de que vão surgir retrovirais, vacinas melhores, mais oportunas, megaplataformas de exames, vamos conviver melhor com isso. A gente convive com a gripe."

O grupo é unânime em apontar que a pandemia mostrou que o SUS é fundamental, que sem ele o enfrentamento da pandemia teria sido um caos maior e que investir mais recursos no sistema público de saúde é a melhor forma de distribuição de renda e de reduzir as desigualdades sociais.

"O que mata não é o vírus, é a desigualdade. O preto que morre cinco vezes mais do que o branco, morre porque tem que buscar comida, porque não tem comida em casa, e não por causa do vírus", diz Vecina Neto. "Precisamos entender que a desigualdade social não é um destino final do Brasil", acrescenta Drauzio Varella.

"O problema do outro é o nosso problema. Se não atuarmos como sociedade organizada, resgatar essas comunidades do tráfico, do crime, das milícias, o Estado reconhecer essas pessoas e atuar, essa pandemia não vai servir de aprendizado para nada", resume Ceschin.


SESSÕES DO DOCUMENTÁRIO NA MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA EM SÃO PAULO


30 de outubro às 20h15 no CineSesc

31 de outubro às14h na Sala 1 do Reserva Cultural

2 de novembro às16h no Circuito SPCCine Paulo Emílio, do CCSP

2 de novembro exibição gratuita às 19h, disponível por quatro horas Itaú Cultural Play

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Passaporte vacinal e liberdade individual, Pedro Hallal, FSP

 Um total de 125 países exigem vacinação contra a febre amarela para os brasileiros que queiram visitá-los. Estranhamente, isso nunca foi questionado pelos negacionistas, que agora, de uma hora para outra, viraram defensores das liberdades individuais.

Muitas escolas exigem comprovante de vacinação para matricular as crianças. Estranhamente, isso nunca foi questionado pelos pseudocientistas, que utilizam o WhatsApp para circularem as mais recentes "descobertas" da ciência.

Aqui na Califórnia, de onde escrevo essa coluna, o passaporte vacinal já é realidade. Muitos eventos esportivos, cinema, supermercados, shows de música, entre outros, exigem o comprovante de vacinação.

Profissional da saúde prepara vacina da Covid, em Brasília - Evaristo Sá - 13.set.2021/AFP

O motivo é simples: a vacinação já evitou centenas de milhares de mortes por Covid-19. Aliás, se as vacinas da Pfizer e a Coronavac tivessem sido compradas logo que foram oferecidas pela primeira vez, o Brasil teria evitado cerca de 100 mil mortes por Covid-19. A vacinação fez com que a média móvel, que chegou a mais de 2 mil mortes por dia, hoje seja abaixo de 400 mortes por dia.

Mesmo assim, o "trending topic" negacionista é ser contrário ao passaporte vacinal. O argumento é que a liberdade individual, de ser ou não vacinado, deve ser respeitada.

Vamos aprofundar um pouco o assunto. Qual das situações abaixo você julgaria aceitável?

1) Um fumante deseja exercer a sua liberdade individual de fumar dentro do avião;

2) Um indivíduo deseja exercer sua liberdade individual de tomar um porre e dirigir;

3) Um motorista deseja exercer sua liberdade individual de andar de carro à noite com todos os faróis queimados.

Em todos os casos, a resposta é a mesma: é proibido uma pessoa exercer sua liberdade individual se essa escolha coloca outras pessoas em risco.

O caso da vacina contra a Covid-19 é absolutamente idêntico. Não há qualquer dúvida na literatura de que pessoas não vacinadas possuem maior risco de contágio e de transmissão em comparação aos vacinados.

Todos os motoristas bêbados causam acidentes? Obviamente que não, da mesma forma como nem todos os não vacinados se infectam com Covid-19 e transmitem a doença. Mas é lógico também que motoristas bêbados têm maior risco de causarem acidentes, assim como pessoas não vacinadas têm mais risco de transmitirem Covid-19.

Talvez ainda chegue o dia em que não seja necessário proibir as pessoas de fumarem em avião, ou de dirigirem bêbadas, ou de dirigirem com os faróis apagados à noite, pois as pessoas farão isso por conta própria, compreendendo que suas liberdades não podem colocar os outros em risco.

Mas esse dia ainda não chegou. E por isso, o passaporte vacinal é obrigatório.

Quem quer exercer sua liberdade individual de não se vacinar, infelizmente, não poderá ir ao estádio de futebol, ao cinema, ao baile de Carnaval, viajar de avião, visitar outros países, sentar em bares e restaurantes.

A outra opção é deixar de ser negacionista e tomar a vacina logo.

A liberdade para escolher é sua!