quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A falácia da verticalização, FSP

 Uma narrativa tem aparecido recentemente em artigos, colunas de jornais, entrevistas em rádios e posicionamentos —sobretudo de entidades ligadas ao mercado imobiliário, mas não somente delas— definindo movimentos de oposição a processos de verticalização intensa em bairros de São Paulo como NIMBY (sigla em inglês para “not in my backyard”, ou “não no meu quintal”).

Essa expressão tem sido utilizada para etiquetar pessoas ou grupos que se coloquem em oposição a projetos ou contra a verticalização da forma como tem ocorrido em São Paulo, importando uma narrativa de outros países de forma a ocultar os interesses do mercado e das finanças na produção dessas mudanças.

Apontamos aqui as falácias dessa narrativa. Ela tem como pressuposto que todo e qualquer processo de verticalização resultaria em um espaço urbano mais inclusivo e democrático —o que não é necessariamente verdade e não tem se concretizado na prática.

O que assistimos na cidade de São Paulo, neste momento, é a um “boom” imobiliário vertical intenso, que está devastando bairros e não tem ampliado o acesso à moradia para quem mais precisa. Pelo contrário, os produtos imobiliários ofertados têm expulsado boa parte da população que ali se encontrava, assim como postos de comércio e serviços, em função da valorização imobiliária decorrente dessa verticalização.

Além disso, como vem ocorrendo, esse processo não garante o uso do solo adequado em relação à infraestrutura urbana; não respeita as características ambientais e os bens e áreas de valor cultural e afetivo da comunidade; e não assegura o retorno para a coletividade da valorização de imóveis decorrente dos investimentos públicos e das alterações da legislação de uso e ocupação do solo.

O propalado adensamento, que teria como efeito diminuir a expansão em direção às periferias, na verdade está provocando processos de gentrificação, expulsando os moradores de classe média dos bairros consolidados e os de mais baixa renda para locais ainda mais distantes, reproduzindo uma intensa expansão de ocupações, de bairros autoconstruídos, no absoluto desespero de quem não tem onde morar.

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O debate sobre adensamento é mais complexo do que querem fazer crer aqueles que usam do termo NIMBY com a intenção de desqualificar movimentos que se contraponham aos interesses do complexo imobiliário financeiro. Mais falaciosa ainda é a questão da democratização e do direito à cidade. Ao pautar o debate sobre o planejamento da metrópole em NIMBY versus YIMBY (acrônimo para “yes, in my back yard”, um movimento pró-adensamento das cidades) insiste-se na tese de que a única discussão relevante no planejamento urbano é se vamos ou não aumentar os coeficientes de aproveitamento em bairros consolidados.

Se quisermos falar sobre densidades, salientemos que as maiores não estão nos bairros verticais. Estão, sim, nos territórios populares. Aliás, essas formas de construir nos bairros populares, extremamente densas, é que deveriam ser objeto de reflexão sobre que urbanismo queremos e como, a partir de suas lógicas, poderíamos ter outras qualidades urbanísticas e arquitetônicas.

Mas, para essas, a narrativa da politica urbana é a criminalização: são os ïnformais”, os “ïlegais”, os sujeitos a políticas de remoção ou a intervenções de infraestrutura de má qualidade. E a manipulação discursiva que anuncia seu desaparecimento a partir da ampliação das áreas tomadas pelos produtos verticais do mercado imobiliário.

Os cidadãos que protestam exercem o legítimo direito de expressar sua opinião sobre as formas de transformação da cidade, considerando os impactos ambiental, social e de vizinhança; os espaços públicos e os ambientes gerados pelas novas edificações; os significados afetivos e simbólicos das regiões; a manutenção de diversidade tipológica e de uso; e os “modi vivendi” construídos ao longo da história —nos bairros do centro consolidado, mas também nas periferias populares.

Reduzir esse debate a coeficientes de aproveitamento e gabaritos é abrir mão de pensar a cidade que queremos e que merecemos construir coletivamente.

Raquel Rolnik
Urbanista e professora titular da FAU-USP

Sergio Reze
Músico, ativista em urbanismo e membro da direção do Movimento Defenda São Paulo

Lays Araújo
Articuladora politica da Iniciativa Negra por uma Nova Politica sobre Drogas (INNPD)

Veronica Bilyk
Coordenadora do movimento Pró-Pinheiros

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Antonio Delfim Netto - (Des)equilíbrio parcial na economia, FSP

Sabia-se que 2020 seria um ano desafiador, mesmo na ausência da pandemia. A urgência de avançar nas soluções para a nossa encruzilhada fiscal já estava configurada, e, portanto, o andamento dessa agenda, dentro de um calendário exíguo por conta das eleições municipais, demandaria uma fina coordenação entre Executivo e Legislativo.

A pandemia exigiu um desvio de rota. Os esforços realizados no âmbito da PEC do orçamento de guerra, as medidas no crédito e na preservação do emprego e a atuação do Banco Central permitiram ao Brasil, principalmente quando comparado aos pares regionais, um relativo sucesso na economia, com queda do PIB inferior à metade das estimativas iniciais. Adicionalmente, e apesar da algazarra política, um pedaço da agenda estrutural também conseguiu avançar, como mostra a aprovação do fundamental marco legal do saneamento, da lei do gás e da lei de falências.

Adentramos 2021 em um ambiente confuso, afligidos pela discussão da necessária prorrogação do auxílio emergencial e com uma peça orçamentária cuja aprovação se deu apenas em abril. O fato de estarmos novamente às voltas com o financiamento do programa permanente que fará a transição do que era emergencial, sem uma solução coerente --nem de desenho nem de custeio--, é apenas uma das evidências da cacofonia de política econômica que tem marcado os últimos meses. Misturam-se assuntos, amarram-se pontas que não deveriam estar atadas, usam-se, com o estímulo do Congresso, receitas futuras virtuais e incertas para financiar projetos de qualidade duvidosa.

Impostômetro na rua Boa Vista, região central de São Paulo, em 21.set.2021 - Bruno Escolástico/Photo Press/Folhapress

Tem-se a clara sensação de que, a partir de demandas políticas específicas, retalhos são costurados para viabilizá-las em uma estrutura mal-acabada. Foi assim a confecção da "reforma" do Imposto de Renda e a "solução" atabalhoada dos precatórios.

Neste ambiente de elevada incerteza política e econômica, é imprescindível que o governo se faça entender. Para isso é preciso apresentar um projeto consistente e coerente, com objetivos compreensíveis e motivações para as escolhas feitas. É preciso estar claro o que se pretende para a economia brasileira até o fim deste mandato presidencial.

A efetividade prática (e os canais) da comunicação de política econômica é tema de debate corrente, vide as interessantes contribuições recentes de economistas como Gorodnichenko e Coibion. De todo modo, cooptar o apoio da (decrescente) parcela racional do debate público para uma agenda de avanço para o país traz benefícios evidentes. De nada adianta o falso conforto de ser compreendido apenas pelos Kenneth Arrows... 

'PEC do Gilmar' é mais uma 'tratorada' de Arthur Lira e Marcelo Ramos, Antagonista

 Proposta surgiu em março, passou pela CCJ, mas não por comissão especial. Texto que poderá ser votado hoje, diretamente no plenário, foi apresentado ontem

PEC do Gilmar é mais uma tratorada de Arthur Lira e Marcelo Ramos
Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

A ‘PEC do Gilmar’que coloca o Ministério Público no “corredor da morte”, nas palavras do procurador Helio Telho, e poderá ser votada diretamente no plenário da Câmara ainda hoje teve tramitação, no mínimo, incomum.

Como registramos mais cedo, a proposta foi apresentada pelo deputado petista Paulo Teixeira em março deste ano, com o apoio de 185 deputados (leia aqui a lista).

Em 4 de maio, o parecer pela constitucionalidade da matéria foi aprovado na CCJ. Em 8 de junho, o tema chegou à comissão especial criada para, em tese, debater os pontos da proposta.

Em 30 de setembro, com a PEC não tendo sido votada na comissão especial, Arthur Lira decidiu levá-la para votação diretamente no plenário.

Promotores e procuradores alertam para “gravíssimo ataque ao Ministério Público” e “desrespeito a tratados convenções internacionais de combate à corrupção”leia mais aqui.

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Somente ontem, 6 de outubro, foi designado oficialmente um relator para a matéria: Paulo Magalhães, do PSD da Bahia.

A ideia era votar logo o texto que veio a público somente ontem, sem qualquer discussão prévia. Marcelo Ramos, que está no comando dos trabalhos em razão de viagem internacional de Lira, porém, adiou a votação para hoje, o que ainda não ocorreuÉ mais uma tratorada da atual gestão da Câmara.

A título de comparação, PEC do Fim do Foro Privilegiado está há mais de 1 mil dias pronta para ser levada ao plenário. A PEC da Prisão em Segunda Instância está igualmente empacada.

São pelo menos 7 itens, que incluem a mudança da composição do CNMP e a atribuição de poderes para anular atos de promotores e procuradores
O que torna a PEC do Gilmar inconstitucional

 
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O procurador Wellington Cabral Saraiva sistematizou os dispositivos inconstitucionais da PEC 5/2021, que coloca o Ministério Público no corredor da morte. São pelo menos 7 itens, que incluem a mudança da composição do CNMP e a atribuição de poderes para anular atos de promotores e procuradores.

Leia:


( 1 ) O desenho do Ministério Público na Constituição de 1988 é considerado consensualmente como um dos maiores avanços da Constituição. A PEC 5/2021 destrói o modelo constitucional do MP, pela quebra de dois pilares dele: permite interferência política direta no MP e extingue a atuação independente dos membros;

( 2 ) A PEC 5/2021 permite que o procurador-geral de cada Ministério Público escolha 2/3 do Conselho Superior do órgão. Isso lhe facultará dominar a revisão de atos e a punição de membros do MP. Um procurador-geral alinhado a um governador poderá usar esse poder para induzir promotores a perseguir prefeitos e políticos que veja como adversários ou, ao contrário, para beneficiar e proteger aqueles que veja como aliados. Isso pode ser bom momentaneamente, mas os ventos políticos mudam;

( 3 ) A PEC 5/2021 permite que o corregedor nacional do Ministério Público (no Conselho Nacional do Ministério Público), o qual será também o vice-presidente do CNMP (em lugar do Vice-PGR, como hoje), seja indicado politicamente pelo Congresso;

( 4 ) A PEC desfigura totalmente a paridade de estrutura e funcionamento do CNMP em relação ao Conselho Nacional de Justiça, o que fere a simetria constitucional de regimes entre o Judiciário e o Ministério Público;

( 5 ) A PEC dá ao CNMP – que deveria ser apenas órgão administrativo, para controle disciplinar e financeiro – o poder de rever QUALQUER ato funcional de membros do Ministério Público de todo o Brasil, com base em parâmetros vagos e subjetivos. Isso MATA a independência funcional do Ministério Público;

( 6 ) A PEC permite que o CNMP revise ou anule atos do Ministério Público que “interfiram” na “ordem pública, ordem política, organização interna e independência das instituições e órgãos constitucionais”. Esses conceitos vagos dariam CONTROLE TOTAL do MP ao CNMP, sujeito a forte influência política, e

( 7 ) A PEC define que, instaurada sindicância ou processo disciplinar contra membro do Ministério Público, a prescrição se interrompe até a decisão final. Cria uma regra mais severa do que a aplicável aos criminosos processados pelo MP em ações penais.

Em resumo, diz Saraiva, a PEC 5/2021 é muito mais grave e danosa ao interesse da sociedade do que a famosa PEC 37/2011, que impedia investigações criminais diretas por parte do MP. “A PEC 5/2021 aniquila o MP e o deixa na mão de poderosos e de interesses inconfessáveis.”