domingo, 1 de agosto de 2021

MICHEL GUERMAN E FÁBIO TOFIC SIMANTOB Bolso-nazismo, FSP

 

Michel Gherman

Professor-coordenador do Núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ e diretor acadêmico do Instituto Brasil-Israel (Ibis)

Fábio Tofic Simantob

Advogado, é mestre em direito penal pela USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

O anti-judaísmo é uma das formas mais longevas de discriminação religiosa, racial e étnica. Atravessa ao menos dois milênios de história.

​Na alta Idade Média se manifestou sob a forma de perseguição religiosa, e o deicídio (com judeus acusados de matar Cristo) era motivação para a explosão de ódio e violência contra comunidades judaicas na Europa. Mais tarde, na baixa Idade Média, os judeus europeus eram vítimas de falsas acusações e fake news, acusados de praticar bruxaria, matar crianças e causar a peste.

Na modernidade, surgiram os estereótipos socioeconômicos relacionando a comunidade a estigmas como “avarentos” e “dinheiristas”. Os judeus foram colocados como protagonistas de uma conspiração internacional, homogênese perversa, que intencionava, nessa perspectiva, degenerar e corromper a humanidade. É a transformação do anti-judaísmo tradicional no antissemitismo moderno.

A deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita AfD durante encontro com o presidente Jair Bolsonaro
A deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita AfD durante encontro com o presidente Jair Bolsonaro - beatrix.von.storch no Instagram

Já no século 19, a figura do judeu passa a ser o estrangeiro, o diferente, o apátrida traidor. O caso Dreyfus é o início simbólico desse antissemitismo moderno. O capitão judeu do exército francês passa a incorporar todos os valores racistas e preconceituosos do antissemitismo: é um traidor por ser um judeu. Degenera e coloca em risco o Estado francês por ser judeu, ou seja, é membro de uma conspiração internacional.

Nessa toada surge o livro “Protocolos dos Sábios de Sião”, ou “Os Protocolos de Sião”, um texto antissemita que tenta justificar todas as tragédias do mundo como sendo produtos de uma conspiração judaica para dominar todos os países e governos.

Não é casual que Adolph Hitler tenha bebido nessa fonte para escrever “Minha Luta”, livro embrião do regime nazista, que toma o poder na Alemanha de 1930 e que acaba produzindo, ao fim e ao cabo, o genocídio de milhões de judeus e outros grupos considerados minorias na Europa —e cujo símbolo maior foram os campos de extermínio.

Em um mundo ideal, um judeu jamais poderia apoiar líderes políticos que pregam alguma forma de xenofobia, discriminação, desrespeito ou intolerância com outros povos. A mera lembrança do genocídio, porém, não é suficiente para educar politicamente os descendentes de suas vítimas.

Quando Jair Bolsonaro esteve no clube Hebraica do Rio de Janeiro e comparou quilombolas a gado gordo, ele estava efetivamente reproduzindo um pensamento racista —mas alguns preferiram relevar. Quando o secretário da Cultura gravou um vídeo emulando Joseph Goebbels, tampouco despertou a ira ou a revolta daqueles que queriam enxergar Bolsonaro como o amiguinho dos judeus e de Israel. O presidente, no passado, já havia feito elogios a Hitler. Mas isso também não foi grave o suficiente para encará-lo como um líder racista e antissemita.

A oposição da esquerda internacional a Israel contribuiu para que parcela da comunidade judaica buscasse refúgio na extrema direita. Ledo e grave engano.

A extrema direita polonesa e húngara e os supremacistas americanos —parceiros ideológicos do bolsonarismo— não escondem seu ódio aos judeus. Idolatram uma Israel branca e cristã, a Israel imaginária, enquanto que, de outro, não toleram o estranho, o diferente, o estrangeiro —em suma, o judeu histórico. Criam um judeu para chamar de seu, enquanto continuam a acreditar nas teses supremacistas e conspiratórias típicas do antissemitismo e do racismo estrutural.

A visita de deputada de um partido de extrema direita alemão a Bolsonaro nos fez lembrar disso. Posições xenófobas e que relativizam o Holocausto não podem ser toleradas. Judeus e não judeus devem entender os vínculos ideológicos do bolsonarismo com o nazismo.

Eles nunca foram ocultos, mas hoje estão mais claros do que nunca, sorridentes e saindo do armário para os braços de uma deputada neonazista. Só não vê quem não quer.

O Brasil está doente, Marcia Castro , FSP


Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

“O Brasil é ainda um imenso hospital.” Essas palavras, ditas pelo médico Miguel Pereira em 1916, descreviam a situação insalubre das áreas rurais do Brasil, assoladas por doenças infecciosas, com precárias condições de moradia e carentes de assistência governamental.

Foi graças a expedições do Instituto Oswaldo Cruz que essa situação foi escancarada. O contexto rural era considerado um problema econômico e social, cuja mitigação impulsionou o movimento sanitário e a criação de centros de profilaxia rural e do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920. Àquela época, a elite política e intelectual entendeu que não haveria desenvolvimento econômico sem saúde.

Desde 1920, o Brasil enfrentou desafios sociais, políticos e econômicos e obteve conquistas em direitos humanos e melhoria das condições de saúde. Implementou um sistema universal de saúde, invejado por muitos países, que se tornou o maior mecanismo de redução de desigualdades no país.

Entretanto, cem anos depois, o Brasil está doente. A pandemia de Covid-19 interrompe vidas, destrói sonhos e famílias e deixa sequelas entre os sobreviventes. Nas últimas sete décadas, a expectativa de vida ao nascer aumentou, em média, 5 meses por ano, porém perdeu 1,3 ano de 2019 a 2020. A rede hospitalar foi ao colapso e ficou sem oxigênio.

Além disso, a pandemia expôs outras mazelas que assolam o país. Mazelas de caráter, que destroem conquistas sociais e humanitárias.

Se no começo do século 20 as expedições e o conhecimento científicos impulsionaram mudanças nas políticas sanitárias, hoje a ciência é ignorada e negada, o incentivo à pesquisa científica é tolhido e parte do potencial intelectual da nação não vê outra solução a não ser buscar um futuro mais saudável em outras terras.

A Amazônia agoniza, tem sua cobertura vegetal arrancada, o solo queimado, os recursos minerais extraídos sem lei, e a população local e indígena tem seus direitos violados. A desinformação impera, ilude e mata. A voz de lideranças políticas é rude, de baixo calão e desprovida de empatia. Qual a cura para todas essas doenças?

Uma charge publicada na revista ilustrada O Malho, em 1910, retrata Oswaldo Cruz na cruzada contra os micróbios e, ao ser questionado se poderia destruir outras mazelas, tais como o banditismo, responde ser impossível, pois “são micróbios da politicagem”, que só podem ser eliminados através de protestos.

Além de protestos, cada cidadão pode (e deve) contribuir para a cura com o mais poderoso “remédio” que existe: o voto! Este, entretanto, tem data marcada para uso. Até que a data chegue, o tratamento paliativo inclui muita dose de coragem, porque é isso que a vida quer da gente, como disse Guimarães Rosa.

Hélio Schwartsman -O cérebro e a árvore, FSP

 Quando uma árvore cai na floresta, ela faz barulho se não houver ninguém para ouvir? Essa pergunta costuma ser relacionada ao idealismo radical do filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), muito embora não seja ele o autor da frase. Mas poderia ser. Para Berkeley, tudo o que é é apenas como percepção (pelos sentidos ou pela reflexão) em nossas mentes.

Numa dessas ironias da história, a ciência, a filha do materialismo que Berkeley tanto combatia, cada vez mais dá razão ao filósofo. Uma boa demonstração disso está em “Sentient” (senciente), de Jackie Higgins.

A autora começa cada um dos capítulos escolhendo um bicho que tenha algum sentido especialmente aguçado. No caso da visão, é o camarão mantis; na audição, a coruja lapônica; no tato, a toupeira de nariz estrelado. E, ao descrever o que cada um desses animais tem de singular, ela mostra como os sentidos funcionam também para humanos.

Ilustração mostra um camarão bem colorido
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman de 1°.ago.2021 - Annette Schwartsman

No paradigma materialista, seres vivos são máquinas de sondar o mundo exterior, mas isso não significa que todos o percebam da mesma forma. O camarão mantis, por exemplo, tem 12 tipos de receptores de cor (humanos temos três), além de enxergar não apenas no espectro da luz visível mas também no infravermelho (calor) e no ultravioleta. Surpreendentemente, quando submetidos a testes, os camarões mantis fracassam em ver as mesmas cores que nós. Seu mundo cromático é único e diferente do nosso.

Basicamente, se não houver um cérebro para ver, não existem cores; se não houver um para cheirar, a flor não tem perfume.

O leitor também poderá se surpreender com o fato de “Sentient” trazer 12 e não apenas cinco capítulos. É que, embora Aristóteles tenha contado cinco sentidos, a ciência moderna, pelo critério dos receptores especializados, já identificou 33. Higgins não cobre todos, mas fascina o leitor com “novos” sentidos como os de prazer e dor, tempo, direção, propriocepção.