Tornou-se uma espécie de lugar-comum destes tempos sombrios afirmar que a democracia exige algum tipo de consenso em torno dos fatos. Eu mesmo já escrevi coisas parecidas aqui. Mas será que é isso mesmo? A crer no excelente “The Constitution of Knowledge”, de Jonathan Rauch, o problema é mais complicado.
Rauch começa com a constatação de que não há e provavelmente nunca houve consenso em torno de fatos. É só olhar para os EUA de hoje. Dois terços dos americanos acreditam que anjos e demônios atuam no mundo; 75% creem em fenômenos paranormais; e 20% pensam que o Sol gira em torno da Terra. Num tributo à paranoia, 1/3 julga que o governo age em conluio com a indústria farmacêutica para esconder “curas naturais” que existem para o câncer.
Todas essas ideias são um insulto à ciência e à inteligência, mas não constituem obstáculo à democracia nem ao avanço do conhecimento. E a razão para isso é que não precisamos que haja unanimidade em torno de quais são os fatos, mas apenas que uma elite de políticos, cientistas e outros detentores de postos-chave estejam de acordo sobre o método para estabelecê-los.
Esse é só um dos muitos “insights” de “The Constitution...”, que, valendo-se de uma combinação bem balanceada de filosofia e jornalismo, traça um diagnóstico muito preciso da crise epistêmica e política que vivemos e traz algumas sugestões do que pode ser feito.
O livro é ecumênico nas críticas. A direita apanha pela trolagem continuada, que nada mais é que uma insidiosa campanha de desinformação. A esquerda pelos cancelamentos, que são uma forma de autoritarismo. As big techs por terem demorado muito a perceber o dano que seus algoritmos causam às instituições.
“The Constitution...” é um hino às virtudes do liberalismo, que não pode ter sua aplicação restrita à economia, mas deve vir sua configuração completa, que inclui as dimensões política e epistêmica.