domingo, 4 de julho de 2021

Hélio Schwartsman Todos contra os fatos, FSP

 Tornou-se uma espécie de lugar-comum destes tempos sombrios afirmar que a democracia exige algum tipo de consenso em torno dos fatos. Eu mesmo já escrevi coisas parecidas aqui. Mas será que é isso mesmo? A crer no excelente “The Constitution of Knowledge”, de Jonathan Rauch, o problema é mais complicado.

Rauch começa com a constatação de que não há e provavelmente nunca houve consenso em torno de fatos. É só olhar para os EUA de hoje. Dois terços dos americanos acreditam que anjos e demônios atuam no mundo; 75% creem em fenômenos paranormais; e 20% pensam que o Sol gira em torno da Terra. Num tributo à paranoia, 1/3 julga que o governo age em conluio com a indústria farmacêutica para esconder “curas naturais” que existem para o câncer.

Todas essas ideias são um insulto à ciência e à inteligência, mas não constituem obstáculo à democracia nem ao avanço do conhecimento. E a razão para isso é que não precisamos que haja unanimidade em torno de quais são os fatos, mas apenas que uma elite de políticos, cientistas e outros detentores de postos-chave estejam de acordo sobre o método para estabelecê-los.

Ilustração de Annette Schwartsman para coluna de Hélio Schwartsman deste domingo (4/7)
Ilustração de Annette Schwartsman para coluna de Hélio Schwartsman deste domingo (4/7) - Annette Schwartsman

Esse é só um dos muitos “insights” de “The Constitution...”, que, valendo-se de uma combinação bem balanceada de filosofia e jornalismo, traça um diagnóstico muito preciso da crise epistêmica e política que vivemos e traz algumas sugestões do que pode ser feito.

O livro é ecumênico nas críticas. A direita apanha pela trolagem continuada, que nada mais é que uma insidiosa campanha de desinformação. A esquerda pelos cancelamentos, que são uma forma de autoritarismo. As big techs por terem demorado muito a perceber o dano que seus algoritmos causam às instituições.

“The Constitution...” é um hino às virtudes do liberalismo, que não pode ter sua aplicação restrita à economia, mas deve vir sua configuração completa, que inclui as dimensões política e epistêmica.

O QUE A FOLHA PENSA Feitos da vacina

 


Chegou a vez dos sexagenários. Depois de o Brasil ter assistido a uma forte redução nas internações e mortes por Covid-19 de profissionais de saúde, nonagenários, octogenários e septuagenários, começamos a ver a diminuição da morbimortalidade na população com mais de 60 anos e menos de 70.

A responsável pelo feito é a vacina —ou, mais precisamente, as vacinas, já que utilizavam-se três delas no país no período em que os sexagenários foram maciçamente imunizados: Coronavac, Oxford/AstraZeneca e Pfizer/BioNTech.

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Todas elas funcionam e, em conjunto, conseguiram fazer com que esse grupo etário, que representava 23% dos hospitalizados e 29% dos mortos em meados de abril, passassem respectivamente a 11% e 16% nas primeiras semanas de junho. Em números absolutos, na última semana de março morreram 5.737 pacientes de Covid-19 na casa dos 60 e apenas 865 na segunda semana de junho.

É possível avançar ainda mais, ampliando a cobertura vacinal e fazendo a busca ativa daqueles que perderam a segunda dose.

Incorre apenas em leve exagero retórico quem qualifica vacinas como um milagre. No caso da Covid-19, aliás, um duplo milagre, dado que elas funcionaram surpreendentemente bem para uma primeira geração de imunizantes e foram desenvolvidas no estonteante prazo de menos de um ano desde a decretação da pandemia.

Muito se louvam os avanços da medicina, com drogas e terapias cada vez mais eficientes. As loas sem dúvida são merecidas, mas cabe apontar que quase todo o avanço que a humanidade experimentou no último século e meio em termos de expectativa de vida se deve a dois conjuntos de intervenções: saneamento básico e vacinas.

Assim se reduziram dramaticamente as taxas de mortalidade infantil, elevando a esperança de vida ao nascer. A média mundial desse indicador saltou de 31 anos em 1900 para 72,6 anos em 2019.

Diante desse histórico de realizações, menosprezar vacinas constitui um ato de insanidade; já atacá-las, como frequentemente faz o presidente Jair Bolsonaro, é uma irresponsabilidade mortal.

Se se confirmarem suspeitas de que o Ministério da Saúde atrasou deliberadamente a aquisição de alguns imunizantes para favorecer esquemas viciados, entretanto, estamos diante de um dos crimes mais repulsivos que governantes e autoridades podem cometer.

editoriais@grupofolha.com.br

‘A qualidade cognitiva exige o desacelerar. Quando a gente desacelera, o cérebro percebe’ Amauri Arrais, Gama

 Todos os dias, somos expostos a um turbilhão de informações e estímulos, muitas vezes ao mesmo tempo. Se por um lado não precisamos nos esforçar tanto para encontrar um endereço ou podemos pesquisar qualquer fato com um movimento de dedos, esse excesso tem provocado sofrimento emocional e cognitivo, como dificuldade de concentração e queixas de memória.

“A informatização mais ajuda do que atrapalha, mas a gente não pode ficar escravizado por um padrão de velocidade que não é do mundo real, de performance de computador. Precisamos fazer o caminho de volta e entender nossa humanidade para viver com mais saúde. Para isso, vamos ter que aceitar um pouco da imperfeição”, diz o neurologista Leandro Teles, que é autor, entre outros, de “O Cérebro Ansioso” (Ed. Alaúde).

Para Teles, que é membro da Academia Brasileira de Neurologia, a capacidade limitada do nosso órgão mais importante vem sendo testada por padrões inalcançáveis de performance, como a exigência de ser multitasking, além de mecanismos, nem sempre eficientes, para tentar evitar o estresse no dia a dia.

Foto: Arquivo Pessoal / Ilustração: Sariana Fernández

“A maior crise que a gente vive é a da expectativa. Nos vendem a ideia de super-homem, supermulher, superpais. Somos bombardeados por modelos de perfeição e toleramos muito pouco a imperfeição, que é o que define a humanidade. A gente já aprendeu a fazer exercício, comer bem, mas não aprendeu a cuidar do cérebro, a agir de forma preventiva. Ainda estamos vivendo essa coisa adolescente de que o cérebro dá conta de tudo, o que é mentira.“

Em conversa com Gama, o neurologista comenta ainda sobre como acredita que a crise persistente da pandemia — com reflexos na economia, trabalho e saúde mental — pode alterar a maneira como vivemos e administramos nosso tempo.

A maior crise que a gente vive é a da expectativa. Nos vendem a ideia de super-homem, supermulher, superpais. Somos bombardeados por modelos de perfeição

  • G |Muitos cientistas afirmam que nunca fomos tão expostos e produzimos tanta informação. A gente consegue reter tudo isso ou estamos sobrecarregando nosso cérebro?

    Leonardo Teles |

     

    Com certeza, não. A gente hoje passou por várias revoluções e temos  uma quantidade de informações muito maior do que a capacidade cerebral. Esse bombardeio tem provocado um adoecimento coletivo: pessoas cada vez mais ansiosas, com insônia, depressão, frustração por expectativas criadas. É extremamente importante entender que o cérebro é um órgão limitado. Venderam para gente essa história de que o cérebro não tem limite ou que a gente só usa 10% da sua capacidade. Tudo isso é mentira, não é comprovado cientificamente. Quase um terço hoje da população adulta padece de algum transtorno mental. É lógico que a causa não é só a informação, tem outras causas biológicas e hormonais, mas a velocidade da informação, a quantidade e a ausência de filtros sem dúvida explica em algum grau o nosso sofrimento emocional e cognitivo também. Hoje temos muitas pessoas com déficit de concentração, problemas com procrastinação, queixas de memória. O cérebro não se desenvolveu para esse grau de cobrança de velocidade, então a gente vai ter que desenvolver alguns filtros para promover saúde.

  • G |Por outro lado, os mesmos aparatos tecnológicos que nos despejam informações 24 horas também facilitaram a vida. Não precisamos mais lembrar um número de telefone ou buscar um endereço, por exemplo. Isso é ruim?

    LM |

     

    É um outro problema da informatização. A culpa, é lógico, não é do computador ou do celular, mas do uso inadequado dessas ferramentas — seja na overdose de estímulos concomitantes ou associados, seja no uso um pouco compulsivo. A gente chama esse processo de terceirização cognitiva, quando terceiriza para um aparelho uma modalidade que antes era cerebral, o que é preocupante. Hoje, temos um corretor ortográfico corrigindo antes mesmo de dominarmos a língua portuguesa, ou uma calculadora à nossa disposição antes de aprendermos a fazer conta. É curioso como padecemos com dois extremos que parecem paradoxais, mas que não são. Existe um excesso de estímulo de um lado e uma ausência de demanda cognitiva do outro. A informatização mais ajuda do que atrapalha, mas a gente não pode ficar escravizado por um padrão de velocidade que não é do mundo real, de performance de computador. Precisamos fazer o caminho de volta e entender nossa humanidade para viver com mais saúde. Para isso, vamos ter que aceitar um pouco da imperfeição.

  • G |O americano Daniel J. Levitin, autor de “A Mente Organizada”, afirma que essa sobrecarga de informação provoca uma competição na nossa mente entre o que é trivial e o que é importante, já que o cérebro não faz essa separação automaticamente. Ou seja, um post numa rede social pode consumir a concentração necessária para terminar um trabalho?

    LM |

     

    Pode. Como o sistema é finito, nós conseguimos lidar com uma certa quantidade de informação. E não são só os competidores externos, mas também os pensamentos. Quanto mais coisas você apresenta para o cérebro, maior a chance de ele julgar mal ou comprometer a memória. É muito comum que o cérebro passe a perder o seu grau de prioridade. Até porque hoje todo mundo quer um pedacinho da nossa concentração. Hoje as coisas vêm com roupagem de urgência e o cérebro tem dificuldade de separar o joio do trigo, principalmente quando está cansado. Nós precisamos antecipar isso. Precisamos diminuir os dispositivos digitais, usar o multitarefa como um recurso eventual, não como um modus operandi. O modus operandi tradicional tem que ser o monotarefa, quando eu entrego o meu cérebro todo para uma atividade e a faço com competência. Quando eu estou bombardeado, desatento, cansado, a efetividade do cérebro cai. E aí, mesmo que eu faça as coisas com competência, vem o burnout, a frustração, a insônia e outros resultados de um cérebro hiper estimulado.

  • G |Há uma cobrança cada vez maior no mundo do trabalho para sermos multitasking, inclusive em anúncios de vagas de emprego. As empresas estão incentivando um hábito contraproducente?

    LM |

     

    Na verdade, o multitasking é um conceito inventado. O cérebro tem o palco da consciência, no qual ele faz bem uma tarefa. Se ele tiver uma dupla ou tripla tarefa, as outras serão colocadas em segundo plano e vão comprometer a ação daquela primeira. A verdadeira multitarefa seria a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo com a mesma competência que você faria separadamente. Isso não existe. Primeiro, há uma baixa de rendimento; segundo, há uma fadiga. Uma pessoa não pode ser cobrada para ficar no multitasking oito, doze horas por dia porque vai adoecer. Mas como algumas empresas tentam tirar o máximo do profissional, esse conceito ainda é colocado. Grandes empresas já mudaram um pouco. Hoje querem as pessoas que consigam ter sustentabilidade, energia mental renovável. Para isso, elas precisam estar em monotarefa e conseguir entrar em multitarefa quando necessário, porque às vezes não tem jeito — mesmo que isso comprometa a execução. O multitasking tem que ser algo eventual. A prova disso é a lei de trânsito: eu não posso dirigir falando ao celular porque automaticamente dirijo pior, posso causar um acidente. Por que para o perfil profissional eu posso fazer uma coisa e para outra [atividade] não? É uma desumanidade.

O multitasking tem que ser algo eventual. A prova disso é a lei de trânsito: não posso dirigir falando ao celular porque automaticamente dirijo pior

  • G |Ao mesmo tempo, cresceu nos últimos anos uma tendência entre pessoas do mundo corporativo de buscar a meditação e outras práticas de desaceleração. Funciona se continuarmos no mesmo ritmo de vida?

    Leandro Teles |

     

    Se você mantém uma vida muito estressante, suas medidas antiestresse serão paliativas. O estresse crônico também adoece, então, em vez de buscar essa alternância de um dia estressante e de noite uma meditação, é melhor reeducar o hábito, tentar trazer a meditação para pequenas pausas no trabalho, atividades físicas, ter mais sustentabilidade. Se não, é como se eu comesse doce o dia inteiro e não jantasse. O estresse tem que ser pulsátil, ele vem e vai, por isso que a gente tem que pensar em um modelo diferente de trabalho, em que a pessoa consiga ter tempo para executar sua tarefa, tenha uma cobrança aceitável, não sofra assédio moral, tenha interrupções durante o dia. Algumas grandes empresas já fazem isso. É melhor trazer a vida para o trabalho, com home office, com o sistema híbrido, um ambiente mais harmônico, do que perder esse profissional por uma doença ocupacional. A sustentabilidade exige que o estresse seja controlado, não evitado. O estresse é inerente à atividade profissional, mas é preciso que haja um mecanismo de recuperação ao longo do dia.

  • G |Essa situação que estamos vivendo hoje com a pandemia, do home office ou trabalho híbrido em alguns casos, deveria ser benéfica. Mas as pessoas acabam se queixando que estão trabalhando mais, o dia inteiro alertas. Que tipo de hábito é possível cultivar pra ter uma rotina mais próxima dessa que o senhor descreve?

    LM |

     

    O problema do home office atual é que ele não foi preparado, mas imposto por uma pandemia. Às vezes as pessoas não têm condições de trabalho em casa, ficam juntas o dia todo. Não somos treinados pra ficar 24 horas juntos e aí acabamos competindo por espaço. Não ter mais essa divisão entre domicílio e trabalho também é muito ruim. Acredito que temos que desenvolver sistemas híbridos, em que as pessoas precisam ir ao trabalho em alguns momentos e outras coisas podem ser resolvidas por uma teleconferência. Acho que isso veio para ficar. Além disso, é muito importante que as pessoas se alimentem com cuidado, que prestem atenção naquilo que estão fazendo. Todos esses conceitos de mindfulness, meditação, espiritualidade não precisam estar dissociados do trabalho, onde passamos 8 horas por dia, cinco vezes por semana. Se a gente não conseguir trazer um pouco da vida para o nosso trabalho, vamos fazer nosso cérebro sempre esperar um momento de descanso.

  • G |Muitos pais tentam atrasar o acesso dos filhos às telas, com medo de que isso comprometa o aprendizado e até a socialização. O senhor vê um efeito positivo?

    LM |

     

    É uma tentativa. A gente tenta controlar a exposição de telas muito precoce até por questões de saúde ocular e distúrbios de sono em crianças. Mas outra coisa que vale se questionar é: quando a criança está no mundo virtual do que está sendo privada? Sou contra radicalismos, de não ter TV em casa, não mostrar celular, mais cedo ou mais tarde a criança tem acesso. O importante é que ela saiba dominar a tecnologia e não ser dominada por ela. Como a criança tem uma avidez e uma dificuldade de gerenciamento do seu tempo, ela tem que estar ancorada pelo adulto com relação ao tempo de tela e atividades que não pode se privar. A geração de hoje é viciada nesse estímulo frenético do videogame e do computador que não tolera o ócio, o tédio. Então, é importante ter um certo balanceamento. O mundo real tem que entrar nessa competição.

  • G |Alguns estudiosos defendem que momentos de grande disrupção, como o que este da pandemia, podem provocar mudanças na maneira como vivemos, a sensação de um novo começo. Qual tem sido sua experiência com os pacientes?

    LM |

     

    Acredito fortemente nisso. Acho que as mudanças surgem nas crises e a pandemia foi uma crise com relação ao trabalho, à economia, ao medo da morte, do adoecimento. Como foi algo persistente, é muito difícil a gente sair como entrou. Tenho um certo otimismo porque vejo que as pessoas perceberam que o mundo virtual não vai dar conta. Elas estão ansiosas para voltar a socializar, mesmo no escritório. Muitas pessoas pioraram a ansiedade, o ritmo sono-vigília e acho que, se olharmos dentro de nós, vamos ver que precisamos muito uns dos outros. Mas sem aquele romantismo de “sairemos melhores”, não será automaticamente. A maior crise que a gente vive é a da expectativa. Nos vendem a ideia de super-homem, super mulher, super pais. Somos bombardeados por modelos de perfeição e toleramos muito pouco a imperfeição, que é o que define a humanidade. A gente já aprendeu a fazer exercício, comer bem, mas não aprendeu a cuidar do cérebro, a agir de forma preventiva. Ainda estamos vivendo essa coisa adolescente de que o cérebro dá conta de tudo, o que é mentira.

  • G |Isso requer uma mudança de estilo de vida ou dá pra encaixar no tipo de rotina que vivemos hoje?

    LM |

     

    Acho que a relação com o tempo é uma coisa muito preciosa. O jeito como o cérebro administra o tempo é justamente o que a gente chama de vida. Este é o livre arbítrio: o que fazer com o nosso tempo? Isso exige consciência, ter cuidado com os hábitos vazios, com as coisas que nos tomam tempo e não nos retribuem. O cuidado para não passar a vida cuidando de pseudo urgências e deixando seus projetos parados porque não vai dar tempo. Quando você faz muito com pouca qualidade, tem impressão de que o tempo voou. A qualidade cognitiva exige o desacelerar. Quando a gente desacelera, o cérebro percebe e a impressão é que o tempo passou mais devagar.