quarta-feira, 1 de julho de 2020

RENATA FALZONI Quem vai entregar um pouco de futuro aos entregadores?, FSP

Renata Falzoni

Arquiteta, jornalista e idealizadora do portal Bike é Legal

Todo ciclista é um otimista. Se é ciclista no Brasil, então, ainda mais. Só otimistas saem de casa nas cidades brasileiras e esperam chegar inteiros no fim do dia. Só os otimistas sabem que a cidade pode ser atravessada sem motor e sem poluição. No fundo, todos ciclistas somos otimistas e humanistas. Entendemos a proporção humana das coisas. É por isso que esta quarta-feira (1º) é importante. Este evento tem a proporção humana.

Para quem não sabe, para este 1º de julho está marcada a primeira grande greve dos entregadores de aplicativos. É greve com cheiro, cor e gosto de século 21. O Brasil dos anos 1970 e 1980 se lembra bem das grandes paralisações. A dos metalúrgicos do ABC, as gerais de 1989 e 1996 e, mais recentemente, a dos caminhoneiros que deixou o governo do presidente Michel Temer (MDB) de joelhos. A nova greve não pertence à Revolução Industrial, é reação às regras das startups do Vale do Silício.

Renata Falzoni, ciclista profissional, mostra semáforo sem parasol no largo do Arouche
Renata Falzoni, ciclista profissional, mostra semáforo sem parasol no largo do Arouche - Robson Ventura/Folhapress

Vivemos a pandemia de olho nas janelas de nossas casas e do celular. Em nossas bolhas, dizemos que somos salvos pelos aplicativos. Quem consegue fazer quarentena depende de entregas de supermercado, de restaurante, de farmácia. O aplicativo salva. Nananinanão! Quem salva é uma pessoa, que toca o interfone do apartamento e ganha cerca de R$ 3 para pedalar até o seu endereço.

O smartphone acabou com o hábito de pedir táxi levantando um dedo na beira da calçada. Restaurantes estão criando “dark kitchens”, versões de restaurante sem salão que oferecem apenas comida para entregas. Fintechs, edutechs, health techs. O mundo dos aplicativos é sobre escala. Um modelo de negócio em que o investidor só coloca dinheiro onde pode crescer exponencialmente. Ou, como dizem no Google, aplicativo bom é como escova de dentes, tem que ser usado pelo menos duas vezes ao dia.

Quando aceleradoras e investidores-anjos colocam dinheiro nas startups do momento estão acreditando no retorno em um futuro próximo. Mas a lei do retorno parece que não contempla a força de trabalho com a mesma gana. Aí se começa a ouvir no vão livre do Masp: “Vem para a rua, vem, aplicativo não está pagando bem”. Menos de R$ 5 para uma entrega de mais de 5 km não é pagar bem.

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Se o mundo da tecnologia é sobre números e dados, os números e dados não ajudam. Com salário de fome, são autônomos sem autonomia. A tal da flexibilidade de quem faz o próprio horário é falsa como nota de R$ 3. É muita pedalada para pouco tempo livre, muito sol e muita chuva na cabeça. É trabalhar sexta, sábado e domingo para não deixar de pontuar e perder os bairros de alta demanda, Moema, Paulista, Itaim Bibi. É baixar a cabeça para condições precárias porque emprego está em falta e entregar comida é o único ganha-pão que resta.

O 1º de julho é a primeira greve com cara de século 21. Sabemos que o país não está conseguindo lidar nem com a luta contra a Covid-19, mas precisamos falar da causa mais que justa dos entregadores. Falar da crise e da precarização do emprego, de renda mínima, do fim do trabalho e dos robôs. Com o otimismo dos ciclistas. Sempre.

Antonio Delfim Netto Finalmente aprovou-se o marco regulatório do saneamento, FSP

Pusemos em marcha o início da redução da desigualdade de oportunidades

O que define uma sociedade civilizada é a perseverança com que ela promove a igualdade de oportunidades para seus cidadãos. É ela que minimiza os efeitos da história e da geografia, ou seja, do ambiente do nascimento sobre o destino de cada um. O objetivo moral permanente do Estado deve ser, portanto, coordenar e dar efetividade à sua construção.

Pois bem. A igualdade de oportunidades começa com políticas públicas que cuidem da gestante com relação à sua saúde e alimentação e do suprimento de dois bens dos quais ninguém pode ser privado: água limpa encanada e esgoto tratado. Numa larga medida, são estes que determinam a higidez e a capacidade cognitiva do futuro cidadão.

Há 32 anos, a Constituição determinou que compete aos municípios os serviços de água e saneamento, mas ainda amargamos vergonhosos índices nos dois mais importantes supridores de igualdade de oportunidades: apenas 80% dos cidadãos têm água encanada e limpa, e menos de 50% têm esgoto tratado, sem falar no desperdício da água já tratada, que ronda 38%. Enquanto isso, o marco regulatório do setor dormia no Congresso desde 2001!

Na semana passada, tivemos uma epifania, que revelou que as instituições estão funcionando. A competente colaboração dos presidentes Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia com o ministro Paulo Guedes ajudou a aprovar o excelente projeto relatado pelo ilustre senador Tasso Jereissati, que cria, afinal, o novo marco legal do saneamento. Para dar garantia jurídica aos novos contratos, o setor será regulado por uma reforçada Agência Nacional de Águas (ANA). Criou-se, assim, um ambiente para que possam coexistir empresas públicas competitivas, parcerias público-privadas e empresas privadas prestadoras de bons serviços a preços competitivos.

Abriu-se um formidável espaço para investimentos —qualquer coisa entre R$ 500 bilhões e R$ 700 bilhões em dois ou três anos— que, ao mesmo tempo em que aumentará a igualdade oportunidades, economizará em gastos de saúde e, primordialmente, aumentará a eficiência da educação. Basta lembrar que 49% das escolas primárias dispersas pelo Brasil não estão ligadas à rede de esgoto, 26% não têm acesso a água limpa encanada e quase 20% delas não têm nem sequer banheiro dentro do prédio em que funcionam.
Para surpresa geral, com um presidente comandado pelos piores preconceitos identitários e religiosos, demos um salto duplo "twist" carpado e pusemos em marcha uma importante medida civilizatória: o início da redução da desigualdade de oportunidades que até agora infelicitou a sociedade brasileira.

Antonio Delfim Netto

Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.