domingo, 10 de maio de 2020

Marcelo Leite Por que morcegos não pegam Covid-19?, FSP

Uma pista está na condição peculiar entre mamíferos: são os únicos que voam

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SÃO PAULO
No começo da pandemia de coronavírus, muitos dedos apontaram morcegos como culpados. Não se sabe ainda se outro organismo, como pangolins, teria servido de ponte no salto entre espécies. No caso da Sars, em 2012, entre morcegos e gente se interpuseram civetas, ou gatos-almiscarados.

Na outra ponta quase sempre há morcegos, em especial no caso de coronavírus como Sars, Mers e CoV-2. Centenas de parentes deles já foram encontrados em morcegos na China, onde se fazem levantamentos sistemáticos em cavernas.

A maioria deles se mostra inofensiva, ou porque não se adaptam ao organismo humano, ou porque causam sintomas leves, como resfriados. Mas de vez em quando dá tudo errado, como agora, e o vírus deflagra reações inflamatórias agudas que podem inutilizar os pulmões e matar o doente.
Por que isso não acontece com os morcegos? Uma pista está na sua condição peculiar entre animais da classe: são os únicos mamíferos que voam. E poucas coisas são tão estressantes para um organismo quanto o voo.

O tremendo esforço muscular envolvido danifica as células. Pedaços de sequências de material genético (DNA) se acumulam nelas, e em condições mamíferas normais poderiam ser confundidos com vestígios de invasores causadores de doenças, desencadeando uma tormenta inflamatória.

Ocorre que o sistema imune dos quirópteros se adaptou para o estresse do voo. A maquinaria celular para detecção de fragmentos suspeitos de DNA foi atenuada ao longo da evolução, o que terminou por favorecer a colonização desses animais por vírus.

O segredo dos morcegos parece ser a capacidade de manter uma resposta antiviral suficiente, por meio da produção de interferon, sem que seja acompanhada de uma reação inflamatória descontrolada. Estudos de Vikram Misra, da Universidade de Saskatchewan (Canadá), indicam ainda que coronavírus e o mamífero voador se adaptam um ao outro.
Do ponto de vista dos vírus, seria difícil encontrar um parceiro melhor para se disseminar. Morcegos são abundantes, com mais de mil espécies compondo 1/5 a 1/4 de todos os mamíferos (só perdem para roedores, que são metade). Vivem em grupos de centenas a milhares de indivíduos, facilitando a
transmissão de um a outro.

Morcegos vivem muito, até 20 ou 40 anos (contra 2 de muitos roedores). Voam, defecam e urinam por toda parte. Dependuram-se com frequência na vizinhança de animais de criação e de gente, em fazendas.
São polinizadores destacados em cultivos apreciados por nós, como os de bananas, abacates e mangas. A destruição contínua de ambientes onde poderiam viver isolados aumenta oportunidades de contato com humanos.

Suspeita-se que estejam por trás de vários surtos e epidemias virais que apavoraram a humanidade: além de Sars, Mers e Covid-19, Ebola, Marburg, Hendra e Nipah. Não é de hoje que cientistas alertam para a inevitabilidade de surtos, epidemias e pandemias de viroses. Além de China, Brasil, Índia e Nigéria são
zonas de alto risco.
Prevenir é melhor que remediar, percebe-se agora, com mais de 270 mil mortos e a economia mundial num poço sem fundo conhecido. Expedições sistemáticas e periódicas para coletar amostras (sangue, fezes, urina) de morcegos, gado e população humana de zonas rurais ajudariam a detectar na origem o risco de novos surtos, e preparar-se para eles.

Se for preciso ajuda para assustar mais pessoas e levá-las a agir, recomenda-se o livro “Contágio” (“Spillover”), de David Quammen, que está sendo publicado em português.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.