sábado, 2 de maio de 2020

Transações tenebrosas, Adriana Fernandes*, O Estado de S.Paulo


02 de maio de 2020 | 05h00

pandemia da covid-19 mudou a noção de tempo e urgência. Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios, enquanto a população brasileira assiste atônita a matemática da morte com o avanço da doença.
Já se passaram 19 dias da aprovação do projeto na Câmara. O texto está no Senado, com votação prevista para este sábado. Mas nada garante a sua aprovação. Pelo contrário. O projeto modificado terá que retornar para a Câmara para nova votação e o mais provável é que nem mesmo ocorra na próxima semana. 
O acordo fechado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o repasse de R$ 60 bilhões está provocando brigas justamente pela regra de divisão dos recursos. Os senadores dos Estados mais prejudicados estão se sentindo traídos.
Para ter domínio do projeto e coordenar a articulação do apoio ao texto que irá à votação, o próprio presidente do Senado assumiu a relatoria. O parecer foi divulgado com explicações detalhadas acompanhado de um arquivo em PowerPoint de fazer inveja (isso não é ironia) aos idealizadores do polêmico programa Pró-Brasil.
Faltou Alcolumbre, porém, mostrar a tabela principal. A que compara o valor a receber pelos Estados e municípios entre o texto do Senado e a proposta da Câmara, motivo de rompimento entre Paulo Guedes e o presidente Rodrigo Maia.
Acontece que diversas tabelas preparadas por assessores econômicos dos parlamentares, entre elas, a do relator do projeto na Câmara, deputado Pedro Paulo, começaram a circular mostrando que o Amapá, o Estado do presidente do Senado, ocupa o segundo lugar no topo do ranking que mostra a divisão dos recursos quando comparado com o número de habitantes. Atrás apenas de Roraima. 
Os Estados onde a pandemia é mais grave, e que deveriam receber a maior parte do dinheiro, não vão receber o bolo maior. Se não bastasse o clima ruim com a divisão dos R$ 60 bilhões prometidos por Guedes em quatro meses, a subsecretária do Tesouro, Pricilla Maria Santana, em videoconferência assistida pelo repórter Daniel Weterman, do Broadcast, revelou que foi feita uma divisão de rateio que nem o Tesouro conhecia por “critérios políticos”.
Como assim? O governo fechou um acordo em que a secretária responsável pela relação do Tesouro com os governos regionais não podia se meter porque o assunto era político.
O desgaste tem sido grande. Lideranças do Senado já avisaram que o valor do socorro pode subir para R$ 80 bilhões para acomodar as reclamações. Quem perde muito está reagindo. A começar por São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil. 
O senador paulista José Serra é o mais indignado. O tucano apresentou uma proposta para preservar o objetivo do projeto que veio da Câmara. Na justificativa, ele diz que a nova proposta estabelece critérios pouco transparentes, beneficiando mais os municípios pouco afetados pela queda da arrecadação tributária.
À coluna, o economista José Roberto Afonso, especialista em contas públicas e assuntos federativos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), afirma que proposta do Senado é uma irresponsabilidade porque aposta na divisão regional e ignora os critérios técnicos que pautam tributação, orçamento e saúde. Guedes, por outro lado, se diz confiante no acerto do acordo.
Quando o político prevalece sobre o técnico, porém, não tem com dar certo. No cenário atual, no limite, mesmo que não queira politicamente, o governo terá que socorrer os governos das unidades mais ricas, se o colapso for iminente. 
Os graves problemas na distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, com filas nas agências da Caixa e desespero das pessoas para receber o benefício estampados todos os dias, mostram que sozinho o governo federal não pode tudo. Mesmo que a verba esteja na sua mão.
Se o governo tivesse organizado uma parceria genuína com Estados e prefeituras, talvez, a distribuição do auxílio estivesse hoje com menos problemas. É a prova também que não basta o dinheiro. É preciso boa gestão. Por isso, as ações de saúde para o combate do coronavírus estão para trás na execução das despesas do Orçamento, com mostrou reportagem do Estado. 
A Brasília do Palácio do Planalto, da Esplanada dos Ministérios e dos gabinetes agora virtuais dos parlamentares continua virada de costas para o País. No seu pior momento, está metida em transações tenebrosas. 
A coluna pede desculpas por ter insistido, nas últimas semanas, no tema federativo. Mas o resultado da negociação das próximas horas e dias vai dizer muito como muitas cidades estarão em condições de enfrentar os efeitos da covid-19.
* É JORNALISTA 

Mudanças virão. Mas quais e quando? Celso Ming (bússola)

Celso Ming, O Estado de S.Paulo
02 de maio de 2020 | 09h54


Alguns comentaristas têm observado que, uma vez passada esta crise do coronavírus, nada será como antes. É conclusão apressada, em alguma proporção destituída de sentido de realidade.
Esta não parece ser a maior nem a mais letal das pandemias que atacaram o Planeta. No passado, a partir das consequências produzidas pela peste negra, pela sífilis, pela febre amarela e, até mesmo, pela gripe espanhola, para o bem ou para o mal, alguma coisa sempre se transformou, mas não a ponto de trocar drasticamente o paradigma, como dizem para o que virá desta vez. Passada a tempestade, nem sempre vem apenas a bonança. Podem vir outras coisas, inclusive a enchente.
Uma crise como esta é sempre uma boa oportunidade para alterações de rumo, mas não se pode desprezar a força das mazelas que sempre acompanharam a trajetória do animal humano. Mas, ainda assim, alguma coisa vem para ficar ou, então, virá para produzir uma mudança já em curso, que deverá ganhar velocidade.
Nem sempre se pode prever a direção que irá tomar. Os dirigentes da indústria automobilística, por exemplo, sentem que a tendência é a de uma curva fechada logo aí, mas não sabem quando acontecerá nem com que intensidade. Por essas e outras, a Fiat resolveu consultar os antropólogos, como foi noticiado na semana passada.
As transformações a que vinham sendo submetidas as relações de trabalho deverão agora se intensificar. Como já vinha sendo observado nesse campo, a questão mais grave é o aumento do desemprego, num ambiente de utilização intensiva de tecnologia poupadora de mão de obra.
Parece cada vez mais inevitável a adoção de sistemas de renda mínima destinados a reduzir o impacto da dispensa de mão de obra sobre o poder aquisitivo do consumidor. O diabo é que programas como esse implicam disponibilidade de recursos públicos. E, no entanto, os Tesouros, que já vinham sendo moídos, hoje são quase só bagaço. 
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Investir no trabalho de casa pode significar redução de despesas para empresa, como transporte para funcionários e menores áreas para escritório Foto: Daniel Teixeira/Estadão - 13/4/2020
A não novidade mais comentada é a cada vez maior adoção do trabalho em casa. Isso pode não valer para as linhas de produção ou para a prestação de serviços pessoais, mas será cada vez mais demandado para outras formas de trabalho. A experiência do confinamento mostrou que o home office tem tudo para ser mais praticado, mesmo em tempos normais. Algumas modificações na legislação e nos acordos sindicais serão inevitáveis. Esse sistema não pode, por exemplo, manter a adoção de cargas rígida de trabalho, com a “bateção” de ponto, contagem de horas extras e prática de banco de horas, porque não são procedimentos sujeitos a controles diretos. A generalização de sua adoção obrigará maior abertura dos arquivos da empresa e a interconexão confiável entre sistemas de informática. A nova prática pode, também, dispensar enormes áreas de escritório, reduzir despesas com condução e com restaurante interno. Mas aparecerão outras despesas necessárias para garantir eficácia ao trabalho fora da sede da empresa.
A arquitetura das residências deverá prever novas áreas específicas de trabalho e a instalação de aparelhos inteligentes, cujo uso será intensificado com a chegada da conexão 5G. Enfim, parece inevitável a readaptação dos espaços interiores e a redefinição das áreas de convivência urbana. 
Outra experiência desses tempos de isolamento que produzirá repercussões é a do ensino em casa. As crianças e os jovens foram confinados abruptamente em suas residências, o que prejudicou a programação de estudos do ano. Mas fica a abertura para maior utilização do sistema que os anglófonos chamam de homeschooling. Isso começou lá atrás com os tais cursos por correspondência e agora pode ganhar novos incrementos com videochamadas e outros recursos digitais.
Não é demais repetir o que já ficou dito em outras oportunidades. O comércio eletrônico e as práticas de delivery devem agora se intensificar. As redes comerciais que não se prepararem para a adoção desses serviços correm o risco de perder participação de mercado. Os shopping centers já vinham sentindo essa quebra de rumo bem antes do coronavírus. As lojas estão se transformando em showrooms. Como as vendas são finalizadas pela internet, a participação dos shoppings no faturamento das lojas já vinha caindo. É uma relação que terá de ser repensada. Nem tudo num shopping pode ser transformado em lazer e praça de alimentação.
Enfim, há pela frente um mundo de novidades em potencial. Falta saber como e quando acontecerão.

Um quarto das usinas do País pode fechar as portas, OESP

Setor sucroalcooleiro é afetado por queda na demanda e baixa nos preços do etanol; 104 unidades estão em recuperação judicial

Mônica Scaramuzzo, O Estado de S.Paulo
02 de maio de 2020 | 05h00
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Usinas estão pedindo pacote de ajuda ao governo para passar pela crise Foto: SERGIO NEVES/AE
Um quarto das usinas de açúcar e álcool em operação no País corre o risco de fechar as portas até o fim do ano por causa da crise do coronavírus, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão. Sem capital de giro para pagar as contas de curto prazo, parte dessas empresas tem sido abatida pela forte queda de demanda pelo combustível. O caso foi ainda mais agravado pelo derretimento do preço do petróleo – a cotação do etanol tem como referência a gasolina. “São dois choques. A principal é a queda do consumo e, depois, a de preços”, diz Plínio Nastari, sócio da consultoria Datagro
Com cerca de 350 usinas sucroalcooleiras em operação no País, o setor viu as cotações do álcool recuarem de R$ 2 para R$ 1,30 o litro (valor líquido) e a demanda cair mais do que 50%, diz União da Indústria da Cana-de-açúcar (Única). Grupos mais capitalizados têm fôlego para armazenar sua produção de etanol e até mudar o mix da indústria, passando a produzir mais açúcar, para passar o momento mais agudo da crise.
Mas este não é o caso de quase uma centena de unidades produtoras, que não têm condições de estocar etanol – e acabam vendendo a baixos preços – e também não apresentam saúde financeira para aguentar os próximos meses. “Um quarto das empresas do setor vai passar por muita pressão para garantir sua sobrevivência”, avalia Pedro Fernandes, diretor de agronegócios do Itaú BBA.
Na região Centro-Sul (Centro-Oeste, Sudeste e Sul), que concentra a maior parte da produção do País, a moagem de cana teve início em abril. Contudo, já há dúvidas se muitas empresas vão ter fôlego para continuar. Há duas semanas, o grupo Adecoagro, que tem três usinas – duas no Mato Grosso do Sul e uma Minas Gerais –, divulgou um comunicado a seus colaboradores informando que iria suspender os contratos de parte deles sul-matogrossense. 
A situação fica ainda mais delicada para usinas que só possuem destilarias. Das 267 unidades produtoras do Centro-Sul, 80 usinas só produzem etanol. Do total de cana colhida no País em 2019/20, cerca de 35% foram para a produção de açúcar, explicou Antônio de Padua Rodrigues, diretor da Unica. Neste ano, a fatia poderá chegar a 45%.
Com receita de cerca de R$ 100 bilhões, o setor sucroalcooleiro conseguiu reduzir nos últimos anos seu endividamento – hoje está em torno de R$ 90 bilhões. 
Um grupo grande de usinas acumula a maior parte dessas dívidas. No Brasil, há 104 unidades produtoras em recuperação judicial, das quais 81 no Centro-Sul, segundo a Única. Desde 2005, 95 usinas foram fechadas na região. Com as incertezas provocadas pela pandemia, boa parte das empresas que já estão em dificuldades financeiras vai para o mesmo caminho.

Reversão do otimismo 

Até fevereiro deste ano, o setor tinha um cenário positivo pela frente: os preços de açúcar e etanol estavam competitivos. As usinas mais capitalizadas já tinham travado as cotações do açúcar (hedge) e a demanda pelo combustível estava firme. “Os preços do açúcar estavam em 15 centavos de dólar por libra-peso em fevereiro, ante uma média de 12 centavos no ano passado. Hoje, a cotação está abaixo de 10 centavos”, diz Nastari. 
Empresas com maior capacidade de estocagem, casos da Raízen (joint venture entre Cosan e Shell) e São Martinho, por exemplo, estão conseguindo segurar sua produção de etanol para voltar a vender quando a demanda retomar. 
Ao Estadão, o presidente da Raízen, Ricardo Mussa, afirmou que a companhia sempre teve muita disciplina na gestão de risco e o fato de o grupo ser integrado – a Raízen também é distribuidora de combustíveis –, ajuda nesta atual crise. “Neste momento, fica clara a importância de fazer a fixação de preços da commodity, não só açúcar, como também do etanol.”
Segundo Fábio Venturelli, presidente do grupo São Martinho, a companhia fixou os preços do açúcar quando estavam cotados entre 14 e 15 centavos por libra-peso. “O grupo também uma capacidade de armazenar 70% de sua produção.”

Sem consolidação

Diferentemente do movimento de consolidação que o setor viveu entre 2003 e 2010, as grandes companhias não deverão incorporar empresas em dificuldade, afirmou Fernandes, do Itaú BBA. “Não vemos uma nova onda de fusões e aquisições. Podemos ver áreas agrícolas de usinas sendo adquiridas.”
Para um especialista do setor, o fechamento de unidades deficitárias por conta da crise deverá ser benéfico para o setor no longo prazo, com o reequilíbrio da oferta da matéria-prima no País. A produtividade poderá se elevar sem a expansão da área plantada.

Setor pede ajuda para governo

O setor sucroalcooleiro está aguardando definição de um pacote de ajudas às usinas para enfrentar a crise provocada pela pandemia de coronavírus. Além de uma linha de financiamento para estocagem de etanol, as usinas estão solicitando ao governo o aumento da Cide, tributo cobrado sobre a gasolina vendida, para R$ 0,40 o litro (hoje, o valor é de R$ 0,10), além da suspensão temporária da cobrança de PIS e Cofins sobre o etanol hidratado, que é de R$ 0,24 por litro. A expectativa era de que medidas fossem anunciadas ainda na semana passada.