domingo, 17 de novembro de 2019

Privatização do saneamento trava no Congresso com resistência de representantes do Norte e Nordeste. FSP

Projeto tem aval do Planalto, mas esbarra em contratos sem concorrência entre municípios e companhias estaduais

BRASÍLIA
O projeto que facilita a entrada da iniciativa privada no setor de saneamento enfrenta dificuldades para avançar no Congresso.
Na Câmara, sofre atrasos por causa de resistência das bancadas do Norte e do Nordeste, além da oposição. Deputados reclamam ainda de falta de atuação do governo.
No Senado, onde as bancadas são organizadas por estado e o lobby de governadores é mais forte, a proposta deve ter vida ainda mais difícil.
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A principal divergência refere-se aos contratos de programa, que são assinados diretamente entre municípios e companhias estaduais de água e esgoto, sem concorrência.
Hoje, os prefeitos podem fazer contratos com empresas privadas, mas alegam que há muita burocracia que dificulta o processo. Com o texto apoiado pelo governo, esse tipo de contrato seria substituído por uma concessão, em que é necessário concorrência com o setor privado.
O projeto, apontado como prioridade pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e apoiado pelo governo Jair Bolsonaro, foi aprovado em comissão especial da Câmara no dia 30 de outubro.
A previsão inicial era de que o texto fosse ao plenário na próxima terça-feira (19). No entanto, a votação deve ser adiada (ao menos) para o dia 26 de novembro.
O relator do projeto na Câmara, Geninho Zuliani (DEM-SP), afirmou que a demora se deu por causa das turbulências políticas provocadas pela decisão de proibir o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, e a consequente soltura do ex-presidente Lula.
Os temas monopolizaram a agenda da Câmara nas últimas semanas —que também foram marcadas por interdição com a cúpula dos Brics na Esplanada e o feriado da Proclamação da República.
Parlamentares que participaram da discussão na comissão, porém, dizem que as confusões são apenas uma parte do motivo do adiamento, e que as negociações para a aprovação no plenário não foram concluídas.
“Eu sou a favor do texto, mas na comissão é mais fácil, no plenário é mais difícil porque o pessoal do Norte e Nordeste é mais defensor das estatais”, afirmou o deputado Eduardo Cury (PSDB-SP), membro da comissão especial.
Alguns partidos, como Novo, PSL e PSDB já expressaram posicionamentos favoráveis à aprovação do texto. Os deputados com maior resistência são os ligados a governos estaduais, principalmente Norte e Nordeste, e os deputados de partidos de oposição, que prometem obstrução.
“Somos radicalmente contrários a essa privatização do saneamento básico no Brasil. Vamos estabelecer uma resistência frontal”, disse o líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente (SP).
Aí, há dois tipos de divergência, segundo Zuliani. Ele afirma que se de um lado há partidos como o PSOL que não aceitam as mudanças no regime atual, outros deputados mantém divergências pontuais, principalmente em relação ao prazo para que as trocas de regime ocorram.
“Estamos dialogando com algumas divergências internas, de parlamentares que acreditam que os contratos de programa devem ser extintos e que o marco tem que acontecer, mas têm discussões sobre os prazos”, afirmou.
No texto que saiu da comissão, em caso de estatais com bons resultados (cobertura de 90% do serviço de abastecimento de água e 60% da coleta e tratamento de esgoto), o serviço poderá ser estendido por até cinco anos após o fim do contrato desde que o prazo final não ultrapasse 31 de dezembro de 2033.
Além disso, pelo texto aprovado no colegiado, o prefeito pode renovar o contrato, desde que sejam definidos critérios como a universalização dos serviços. A renovação poderia ser feita no prazo de um ano após o novo marco.
O projeto prevê  que caso haja descumprimento de metas, tanto por uma empresa pública como privada, pode haver rompimento do contrato e abertura de nova licitação.
Essas metas são: o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
Deputados reclamam que o governo Bolsonaro não tem se empenhado na aprovação do texto, apesar de a equipe econômica e o Planalto serem favoráveis às mudanças.
Eles dizem que faltam declarações do presidente em defesa da proposta e empenho de líderes na articulação em torno de votos, tarefa que está a cargo de Maia novamente, como aconteceu na reforma da Previdência.
Com uma aprovação na Câmara, o texto seguirá para o Senado, onde foi aprovado em junho. A divisão igualitária de número de senadores por estado faz com que questões que mexam com entes da federação sejam mais delicadas.
No início de novembro, o líder do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE), admitiu que os senadores tiveram que ceder à oposição e aprovar um texto mais brando para mandá-lo à Câmara.
“O texto saiu melhor para as estatais por causa do acordo que a gente fez [com a oposição] para mandar para a Câmara rápido”, disse.
Na votação, os senadores decidiram que o melhor seria permitir que os municípios prorrogassem os contratos sem licitação com as estatais de água e esgoto, o que permitiria a atuação de companhias estaduais por mais 30 anos.
O prazo é considerado absurdo pelos deputados que apoiam o novo marco, já que ultrapassaria o ano de 2033. “Essas emendas no Senado distorceram o projeto”, afirma Zuliani.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O novo B do Brics, OESP

Criado contra o ‘mundo unipolar’, o Brics passa a contar com um forte aliado dos EUA

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
15 de novembro de 2019 | 03h00
A reaproximação do Brasil com a China e o entusiasmo do ministro Paulo Guedes com acordos bilaterais de livre-comércio são bons passos para corrigir dois erros da política externa, um bem recente, do início do governo Bolsonaro, e outro lá atrás, do início da era PT. Esses passos vêm em boa hora. 
A política externa e comercial do governo Lula, fortemente pautada pela ideologia, impediu a discussão séria e pragmática da Área de Livre Comércio das Américas, a natimorta Alca. Poderia ter sido bom ou ruim aos interesses brasileiros, mas nunca saberemos. O próprio debate foi bloqueado. 
Além de inviabilizar a Alca, o Brasil foi decisivo para vetar acordos bilaterais dos parceiros do Mercosul, ficando subentendido que não fazia e não permitia que UruguaiParaguai Argentina fizessem acordos de livre-comércio diretamente com os Estados Unidos. Sem Alca e sem bilaterais, a grande aposta foi na Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), que nunca saiu. Ou seja, não sobrou nada. 
Agora, depois do anúncio (por enquanto, um mero anúncio) do acordo Mercosul-União Europeia, o governo Bolsonaro atira para todos os lados. Já acenou com livre-comércio com os EUA, com a China e, depois das duas maiores economias do planeta, sabe-se lá com quantos mais. A palavra de ordem de Guedes é abertura. 
De outro lado, a obsessão em desvincular o Brasil do Tio Sam correspondeu a uma ilimitada aproximação com a China, que começava a desbravar todos os continentes e ultrapassou os EUA como nosso principal parceiro comercial. E com vantagem objetiva enorme: o Brasil é superavitário nas relações com os chineses, ou seja, vendeu mais do que comprou. 
Pois não é que Jair Bolsonaro, eleito, já passou a – também fortemente pautado pela ideologia como Lula, mas às avessas – cutucar e provocar a parceira e gigante China. Quanto mais se assumia pró-EUA, ou melhor, pró-Trump, mais Bolsonaro desdenhava a China, que “queria comprar o Brasil”. 
Ao ser recebido com pompas em Pequim e agora no seu encontro com Xi Jinping em Brasília, o presidente corrige seu próprio erro, recoloca as relações nos eixos e, mesmo sendo a China uma ditadura de esquerda, passa a agir com pragmatismo. O regime da China é um problema dos chineses, as trombadas entre Washington e Pequim são problema dos dois e o que nos diz respeito são os interesses brasileiros nas relações. E isso parece estar, enfim, prevalecendo. 
Quanto ao Brics, há uma mudança importante. Ao se unirem em 2006, Brasil, Rússia, Índia e China (África do Sul veio depois) tinham uma ambição econômica e uma estratégia política: se rebelar contra um “mundo unipolar”, ou seja, contra a hegemonia acachapante dos EUA. Hoje, porém, o B mudou de lado. 
Quatro dos cinco países estão entre os dez maiores, mais ricos e populosos do planeta, logo, capazes de reequilibrar o jogo mundial. O Brasil, porém, abre uma fenda na unidade do grupo. Assim como rompeu sua histórica postura independente para seguir os EUA em votos sobre Cuba e sobre direitos humanos na ONU, o Brasil age para o Brics incomodar o mínimo possível os EUA. 
Assim, o Brics continua sendo forte e importante na economia mundial, mas a unidade política e o futuro do grupo parecem incertos e não sabidos, com China e Rússia de um lado, o Brasil sonhando com um alinhamento automático com os EUA e a Índia e a África do Sul tentando se equilibrar entre os parceiros. 
Só isso explica que a declaração final da cúpula de Brasília tenha se ocupado de Síria, Coreia do Norte, Sudão e Iêmen, sem uma única linha sobre Venezuela e Bolívia. Os negócios vão muito bem, mas os EUA pairam sobre o Brics e as visões de mundo dos cinco são hoje claramente muito diferentes.