sábado, 27 de abril de 2019

Artigo: E quem ensina os médicos, veterinários e engenheiros, ministro? OESP

Especialistas de universidades públicas comentam declaração de presidente Jair Bolsonaro sobre investimento em faculdades de Humanas; "educação é um processo muito mais abrangente do que a qualificação técnica"

Davi Tangerino, Gustavo Bambini e Murilo Gaspardo*, O Estado de S.Paulo
27 de abril de 2019 | 16h19
O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta sexta-feira, 26, que "estuda descentralizar investimento em faculdades de Filosofia e Sociologia (Humanas)". O foco, segundo ele, seria privilegiar "áreas que gerem retorno imediato, como: Veterinária, Engenharia e Medicina".
A declaração é preocupante.
Primeiro e mais basicamente, porque a educação é um processo muito mais abrangente do que a qualificação técnica, compreendendo a formação humanística, ética e crítica dos indivíduos. São professores formados em FilosofiaSociologia, História, Letras, Pedagogia etc. que cumprem primordialmente este papel na educação básica. As habilidades comunicativas e comportamentais desenvolvidas nesses campos do saber são, inclusive, indispensáveis para o acesso e o bom desempenho nos cursos  "com resultados imediatos", bem como para a inserção no mercado de trabalho.
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Tanto o presidente Jair Bolsonaro como o ministro Abraham Weintraub deram ênfase à necessidade de o cidadão aprender um ‘ofício’ Foto: Marcos Corrêa/PR
Em segundo lugar, a Filosofia constitui o fundamento de todas as ciências por lhes fornecer as bases epistemológicas e éticas. Mayana Zatz, por exemplo, não poderia avançar nas pesquisas do Projeto Genoma sem forte base ética. Não se pode desprezar as ciências básicas. O veterinário e o engenheiro dependem, para seu mister, do conhecimento sobre o terreno, os ventos, o ciclo da água, o clima. Muito disso vem da Geografia.
Em terceiro lugar, são sociólogos, filósofos, cientistas políticos, economistas, antropólogos, dentre outros, que têm os instrumentos teóricos adequados para a construção de políticas públicas. A decisão de, por exemplo, alocar recursos públicos de saúde em determinada região do País necessita de dados e reflexões produzidos, inclusive, por cientistas sociais. Melhor será construir uma unidade de oncologia? Ou saúde da família? Na agricultura, a liberação de agrotóxicos, para além da saúde dos consumidores dos alimentos a eles expostos, impacta o meio ambiente, os moradores adjacentes. Quem mede isso? Cientistas sociais, em grande parte.
Construir uma grande planta industrial com grande deslocamento humano, marcadamente masculino, impacta o meio social de maneira agressiva. Como administrar e mitigar as consequências negativas são reflexões típicas das ciências humanas.
Médicos, veterinários e engenheiros não são produzidos no vácuo, não trabalham no vazio, e não produzem para o nada. Todos esses conectores são, em grande parte, viabilizados pelas ciências humanas. Sob o pretexto de combater ideologia, não implementem outra, obscurantista, abandonada por qualquer círculo científico sério há muitas décadas.

*Davi Tangerino é professor de Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ) e na Fundação Getulio Vargas (FGV-SP)
Gustavo Bambini é mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor doutor da mesma universidade
Murilo Gaspardo é diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Conclusões provisórias, André Singer, FSP


Há mais de seis anos comecei a escrever neste espaço. De lá para cá, a democracia brasileira entrou em crise e ainda não se vê luz no horizonte. Encerro o percurso com três notas breves, a título de considerações finais sobre o tema.
1. Ascensão do Partido da Justiça (PJ). No final de 2012, quando esta coluna tinha início, acabava o julgamento do mensalão. Manobras discutíveis no STF  (Supremo Tribunal Federal) visavam prender líderes petistas. Um ano depois, o então presidente da corte, Joaquim Barbosa, mandou-os para a cadeia, num feriado de 15 de novembro.
À época, assinalei que era “o simbolismo ideal para um possível futuro candidato a chefe do Executivo”. Dito e feito: em 2018, Barbosa passou meses na condição de presidenciável pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). Por razões pouco claras, na última hora, desistiu do sonho presidencial.
O metafórico PJ, porém, já havia encontrado um sucessor à altura, o que talvez explique a desistência do ministro aposentado do STF. O juiz Sergio Moro, líder da Lava Jato e hoje ministro da Justiça, é virtual candidato à sucessão de Jair Bolsonaro. 
2. Surgimento do Partido Fardado (PF). Em meio ao vazio que tomou conta do sistema partidário, varrido pela Lava Jato, militares da ativa, completamente afastados da cena política desde 1989, voltaram a agir. Em 2017, comandantes do Exército conclamaram a população a se manifestar. Hoje, um deles é vice-presidente da República
Se a existência do PJ é até hoje motivo de controvérsia, o aparecimento do PF foi um verdadeiro raio em céu azul. As casernas tinham permanecido por 30 anos em rigoroso silêncio. Em questão de meses, no entanto, fardados ocuparam postos-chave na administração do país, tendo à frente um capitão reformado expulso dos quartéis
A reviravolta foi tamanha que há poucos dias o general Hamilton Mourão, o mesmo que no passado demonstrou simpatia pelo torturador Brilhante Ustra, foi objeto de elogios por uma deputada do PC do B (Partido Comunista do Brasil ).
3. Paralisia oposicionista. O golpe à brasileira —lento, gradual e seguro— encontrou a oposição desarticulada. O povo, por sua vez, tem assistido a tudo bestializado, como disse Aristides Lobo em 1889. 
O lulismo, que segue vivo na estrutura capilar do PT (Partido dos Trabalhadores), desdobrou a falsa percepção histórica de que seria possível eliminar a pobreza e reduzir a desigualdade de cima para baixo. Não será. Chegado certo limite, as classes dominantes, com o entusiástico apoio da classe média, repõem o atraso. 
Agradeço à Folha o privilégio de ter me permitido dialogar por quase 300 sábados com os seus leitores. 
 
André Singer
Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

A privatização dos presídios é uma saída para a crise carcerária? NÃO, FSP


Irmã Petra Pfaller
É impossível sair de uma prisão sem carregar a triste certeza de que os presos, em qualquer unidade do país, enfrentam uma situação de tortura sistemática.

Em celas superlotadas, por entre ratos e baratas, com falta de saneamento básico, comida azeda e um cotidiano de extrema violência, vivem hoje mais de 720 mil pessoas, alçando o Brasil à posição de terceiro país que mais encarcera no mundo.

A situação dos presídios, caracterizada pelo Supremo como "estado de coisas inconstitucional", deixa claro que o Estado brasileiro fez uma opção reiterada pela barbárie. E esse processo não se resolve por falsas soluções como a privatização.

Vale considerar que foi no solo de um presídio privatizado que assistimos a um dos massacres de 2017: no Compaj, no Amazonas, complexo gerido pela Umanizzare, foram registradas ao menos 56 mortes. E mais: entre 2013 e 2014, o complexo de Pedrinhas, no Maranhão, com a maior parte dos serviços privatizados, listou mais de 60 mortes. A unidade é conhecida internacionalmente por suas condições degradantes.

Mesmo com esse cenário, São Paulo e Rio de Janeiro anunciaram, no início do ano, a intenção de transferir a gestão de presídios a empresas. O governador paulista, João Doria (PDSB), toma os Estados Unidos como modelo.

No entanto, o exemplo norte-americano conta com episódios como o Departamento de Justiça informando, em 2016, que presídios federais privatizados não representaram redução de custos e registraram mais casos de agressões, contrabandos e rebeliões, além de um escândalo no qual a maior empresa do setor no país, a Corrections Corporation of America, admitiu a falsificação de documentos enviados ao governo sobre a gestão de unidades no estado de Idaho.

Fica a lição: a aposta no encarceramento em massa, por meio de prisões públicas ou privadas, é resposta que deve ser descartada.

Na mesma linha, analisando o complexo de Ribeirão das Neves (MG), presídio-modelo da privatização no Brasil, a convicção se mantém. 

Ao garantir o preenchimento de 90% das vagas das unidades --ou o seu pagamento, se não ocupadas-- até o término dos 27 anos de duração do contrato, o governo mineiro engessou sua política criminal. E se o estado gastava em média R$ 1.800 mensais por preso nas penitenciárias comuns, em Ribeirão das Neves acordou o pagamento de R$ 2.700 mensais à GPA, consórcio que administra esses presídios.

Os gastos maiores não significam melhor qualificação dos funcionários: salários menores, curto tempo de formação e alta rotatividade são marcas da forma de contratação nas unidades privadas. Ou seja, a privatização mantém a lógica do encarceramento em massa e das violações de direitos a um custo maior para a sociedade.

Ainda em 2015, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) posicionou-se de forma contundente: "A ineficiência do sistema prisional não pode levar à privatização. O ser humano jamais pode ter sua dignidade aviltada, pois lucro e pena não combinam". Diante da falência do sistema prisional, a Pastoral Carcerária e parceiros lançaram a Agenda pelo Desencarceramento, documento que traz propostas concretas para o problema.

A diminuição significativa da população carcerária, a exemplo do que EUA e outros países vêm fazendo, mostra-se como único caminho. Qualquer esforço que aponte para outra direção --como a privatização-- cairá, inevitavelmente, no aprofundamento da barbárie.
Irmã Petra Pfaller
Coordenadora nacional da Pastoral Carcerária