domingo, 3 de março de 2019

1994: O ano em que a República perdeu a calcinha. FSP

Foto icônica marcou o Carnaval de Itamar Franco

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Em seu artigo 26, inciso V, o regulamento do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro proíbe “a apresentação de pessoas que estejam com a genitália à mostra, decorada e/ou pintada”. Mas não delibera sobre nudez frontal em camarotes nem sem-cerimônia de presidentes da República.
Logo, em 14 de fevereiro de 1994, a modelo Lilian Ramos e o então presidente Itamar Franconão feriram as leis da passarela do Sambódromo —onde vale o escrito. Mas, para além do corredor carnavalesco, provocaram muitos constrangimentos. E piadas.
Itamar se elegera vice-presidente em dezembro de 1989, na chapa de Fernando Collor, com quem não compartilhava princípios, meios ou fins. Acossado pelo processo de impeachment, o titular renunciou três anos depois. Coube ao experiente político mineiro completar o mandato, que era então de cinco anos.
Tratava-se de um antilitúrgico. Tomava chope com estudantes e gostava de galantear moças. Mas os chopes e as moças do camarote saíram do controle.
Lilian desfilara na Acadêmicos da Grande Rio. Pode ter atraído a atenção de Itamar, que estava livre e desimpedido. Alguém a fez chegar ao camarote presidencial, onde ela se posicionou ao lado do anfitrião. Teve de se livrar da mão boba do ministro da Justiça, Maurício Corrêa, absurdamente embriagado.
Quando se desmarcou, pôde jogar para os fotógrafos. Beijou a bochecha direita de Itamar, abriu o ouvido esquerdo para sussurros e, atingindo o clímax, ergueu os dois braços. Revelou, então, que estava sem calcinha. Quem registrou melhor a nudez quase glabra da modelo foi um fotógrafo de nome apropriado para o momento: Marcelo Carnaval, de O Globo.
O presidente Itamar Franco ao lado da modelo e atriz Lilian Ramos
O presidente Itamar Franco ao lado da modelo e atriz Lilian Ramos - Marcelo Carnaval/Agência O Globo
Itamar ainda teve o topete de levá-la para o hotel. Se queria consumar as negociações iniciadas no Marquês de Sapucaí, não conseguiu. Culpa da imprensa, que ficou vigiando ambos —o que Lilian não pareceu lamentar.
Não era um presidente popular aquele que ousou ser o primeiro ocupante do cargo a pisar no Sambódromo carioca, dez anos após a inauguração da obra de Oscar Niemeyer. Arriscou-se a tomar vaias, e elas aconteceram, mas nada que, diante do que viria, provocasse sérios constrangimentos.
Herdara uma economia em frangalhos, com inflação de 2.708,55% em 1993 e a população sofrendo as consequências do confisco das poupanças, cometido em março de 1990. As denúncias que haviam derrubado Collor transmitiam a impressão de que a política era um antro de corruptos.
Quando, no Carnaval, agiu de “modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, pré-condição para um impeachment, ficou diante da possibilidade de ser o segundo presidente forçado a deixar o cargo em menos de dois anos. O assunto já era tratado com fartura no noticiário de 16 de fevereiro.
Itamar se safou, aceitando pagar o preço de afastar Maurício Corrêa do Ministério. O amigo, que quase desabara no camarote, agora caía. Mas sobreviveu até abril, pois o presidente não queria que ele fosse humilhado. E o indicou mais tarde para o Supremo Tribunal Federal.
Em dezembro de 1994, menos de um ano após expor-se e expor o Brasil ao descrédito internacional, terminou o mandato em alta. O Plano Real, lançado em 1º de julho, vinha recuperando o poder de compra e a confiança da população. Embalado pelo sucesso e apoiado por Itamar, o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, lançou-se candidato a presidente e venceu. Comparado a esse final feliz, que falta faz uma calcinha?
Lilian Ramos também se recompôs. Mudou-se para a Itália, casou-se com um homem rico, virou celebridade. Deixou para trás os ensaios sem roupa para revistas e as participações em filmes como “A Rota do Brilho”, estrelado por Alexandre Frota – antes da fase pornô.
A entrevistadores brasileiros, permaneceu avaliando como ruim para a sua imagem o que aconteceu naquele 14 de fevereiro. “Minha carreira acabou ali”, afirmou em 2016. No mesmo ano, assegurou o que, em duas décadas de escrutínio das imagens, ninguém percebera: “Eu não estava nua. Eu estava com um collant”. E anunciou ser uma mulher mais cuidadosa: “Fiquei tão traumatizada que hoje uso sempre calcinha”.

A armadilha em que Bolsonaro se meteu, Pessoa , FSP

Apesar de ser difícil separá-los, há joio e há trigo, e sem trigo a política não anda

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Bolsonaro demonizou a política na campanha eleitoral. Avisou que em seu governo não haveria o toma lá dá cá.
O problema é que, ao fazê-lo, colocou no mesmo balaio ações bem diferentes. Apesar de diferentes, os dois tipos de ação são difíceis de serem distinguidos precisamente.
Em todo sistema político multipartidário, seja parlamentarista ou presidencialista, o Executivo, para governar, constrói uma coalizão de partidos.
É por esse motivo que nosso presidencialismo se parece muito mais com os parlamentarismos da Europa continental do que com o presidencialismo bipartidário americano.
A construção da coalizão envolve a negociação de um programa político e, consequentemente, de compartilhamento de poder entre os partidos da base de apoio ao governo. É assim em todo regime político multipartidário.
O ideal é que o Executivo construa uma coalizão que seja ideologicamente homogênea, cuja ideologia média seja próxima daquela do Congresso Nacional e na qual a distribuição de poder seja proporcional ao tamanho de cada partido na base. Se o partido do presidente for sobrerrepresentado, certamente problemas aparecerão à frente.
Boa parcela da distribuição de cargos e de espaços de poder tem essa lógica.
Adicionalmente, no sistema político brasileiro existe outra moeda de troca. Trata-se da liberação de recursos para pagar as emendas parlamentares, em contrapartida ao voto favorável do parlamentar a um projeto de interesse do Executivo.
No Brasil (como em muitos países), o eleitor pune o Executivo nacional e seu partido se houver desorganização na macroeconomia. Inflação, baixo crescimento, desemprego e queda de renda real redundam em derrota eleitoral do partido do presidente.
Os deputados, por sua vez, têm suas próprias agendas no seu eleitorado. Assim, a liberação de recursos para emendas parlamentares é um instrumento poderoso. A emenda atende à base eleitoral do parlamentar, e o voto do deputado ou senador ajuda na aprovação de projetos legislativos (os diversos tipos de lei e as emendas constitucionais) de interesse do Executivo. 
Em geral, são projetos legislativos que garantem a estabilidade macroeconômica e, portanto, atendem ao interesse difuso (aquilo que é bom para todos, mas que não conta com grupos de pressão em sua defesa) do conjunto da sociedade.
Há evidências de que as emendas parlamentares contribuem efetivamente para o desenvolvimento local.
Tanto o compartilhamento de poder, fruto da construção de uma coalizão sustentada em um programa comum, quanto a liberação de emendas são instrumentos legítimos e legais. Trata-se de Política.
Outra ação muito diferente é a corrupção. Muitas vezes é difícil diferenciar. Há muito compartilhamento de poder que não tem por base um projeto comum e se trata simplesmente de abrir espaço para que grupos políticos desviem dinheiro público.
É aí que temos enorme problema. Apesar de ser difícil separar o joio do trigo, há joio e há trigo, e sem trigo a política não anda.
Ao demonizar toda a ação política sem distinção, fica difícil construir um caminho para os parlamentares que desejam acompanhar o governo.
Há uma dura agenda de reformas. Os parlamentares, para apoiá-la, precisam de um caminho. Como atuar e como construir o seu futuro na política?
Ao se negar a produzir esse mapa, o governo pode jogar muitos congressistas que desejam apoiar o governo para o campo da oposição às reformas.
Esse negócio de reinventar a roda em geral não funciona.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.