domingo, 5 de agosto de 2018

Irresponsabilidade, Drauzio Varella, na FSP (definitivo)


Deixamos a bandidagem se organizar a ponto de virar paradigma para crianças



Ilustração
Líbero/Folhapress
A sociedade brasileira é, acima de tudo, irresponsável.
Em 20 anos, perdemos o controle das cadeias, a epidemia de crack invadiu cidades pequenas e entregamos os morros e as periferias ao jugo do crime organizado.
Cracolândias e as barbáries do PCC, Comando Vermelho, Família do Norte, Bonde dos Treze, Primeiro Grupo Catarinense, ADA e de outras quadrilhas com milhares de membros já não causam estranheza.
O trabalho tem me levado às periferias, favelas e lugarejos desconhecidos da maioria dos brasileiros. Semanas atrás, na pobreza da beira do rio Juruá, no Acre, entrevistei uma menina de sete anos que teve três episódios de malária nos últimos seis meses. Ao saber que a entrevista seria levada ao ar no Fantástico, a mãe disse que não poderia assistir. A família não ligava a televisão à noite, para a luz da tela não atrair os bandidos da vizinhança.
A violência da qual a classe média se queixa nas cidades é brincadeira de criança perto da que enfrentam os mais pobres. O que falta para nos convencermos de que não dá para viver em paz num país com tamanha desigualdade social?
Num sistema burocratizado, em que apenas R$ 2 de cada R$ 10 destinados à educação chegam às salas de aula, e somente um em cada 27 matriculados no ensino básico entra na universidade, represamos uma massa de despreparados para as exigências da economia moderna.
O desemprego de 12% no país em crise sobe para 25% na população de 18 a 25 anos de idade. Embora os estudos mostrem que a criminalidade aumenta em comunidades com homens desempregados, nessa faixa etária, que iniciativas tomamos para qualificar e oferecer trabalho para esse contingente?
Nesse caldo de cultura, juntamos a gravidez na adolescência. Condenarmos meninas a engravidar aos 14 anos por falta de acesso à contracepção é a maior violência que a sociedade brasileira comete contra a mulher pobre. Na Penitenciária Feminina da Capital, onde atendo, temos uma moça de 28 anos que é avó. Outra, de 40 anos, tem três bisnetos.
Queremos um Brasil sem violência nem políticos ladrões, é o que repetem todos. Acho lindo, mas com essa disparidade de renda?
Por bem ou mal, os que mais têm ou cedem uma parte ou correm risco de perder tudo; eventualmente a vida. Bill Gates criou uma fundação bilionária para financiar programas educacionais e de combate aos grandes problemas de saúde, no mundo inteiro: HIV/Aids, malária e tuberculose, por exemplo. Investe pessoalmente mais do que qualquer país europeu; só perde para o governo americano. A despeito de iniciativas isoladas, o que fazem os milionários brasileiros?
É cômodo jogar a culpa nos políticos, dizer que por causa deles a educação e a saúde são uma vergonha, mas qual a justificativa para as grandes empresas, os conglomerados econômicos, os bancos, o agronegócio e os mais ricos não criarem escolas gratuitas, cursos profissionalizantes, postos de trabalho nas periferias e nas cadeias, unidades básicas de saúde e programas de prevenção que ajudem a reduzir os gastos do SUS?
Quando foi anunciado o Bolsa Família, a turma do "não adianta dar o peixe sem ensinar a pescar" ficou revoltada. Quanta mesquinhez diante de uma ajuda tímida que consome 1% do PIB nacional.
De outro lado, a inteligência brasileira encastelada nas universidades e nas camadas sociais que tiveram acesso a elas, de quem esperaríamos racionalidade na indicação de caminhos para reduzir as desigualdades que nos afligem, continua aturdida no atoleiro das divisões obtusas entre direita e esquerda, décadas depois da queda do muro de Berlim.
Em 1989, quando comecei no Carandiru, havia 90 mil presos no país. No fim deste ano, haverá 800 mil, quase nove vezes mais. Nossas ruas ficaram mais seguras? Faz sentido termos a terceira população carcerária e 17 entre as 50 cidades mais perigosas do mundo?
Não sejamos estúpidos, não há dinheiro para encarcerar tanta gente. Para acabar com a superlotação apenas no estado de São Paulo, precisaríamos abrir 84 mil vagas, ou seja, mais 84 cadeias. A um custo de construção de R$ 50 milhões cada, gastaríamos R$ 4,2 bilhões somente para colocá-las em pé. E para mantê-las? E os novos presos?
Permitimos que a bandidagem se organizasse a ponto de servir de paradigma a ser seguido pelas crianças da periferia e de oferecer a elas a única possibilidade de melhorar de vida. A guerra contra o crime será longa, sofrida e infrutífera.
Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

1968: o ano que não acabou também na zona sul de São Paulo, FSP



Estátua de Borba Gato com a Linha Lilás do metrô, que está inaugurada, mas não completa
Estátua de Borba Gato com a Linha Lilás do metrô, que está inaugurada, mas não completa - Eduardo Anizelli/Folhapress
Fui de metrô ao Borba Gato, o monumento paulistano que, de tão cafona, já virou cult. Depois, voltei aos trilhos e corri a uma sorveteria perto da Igreja de Moema. Talvez fosse o sabor do sorvete, mas senti em todo o passeio uma sensação de “déjà vu”, algo meio estranho, como se estivesse saindo de um túnel do tempo, vendo a cidade pular 50 anos.
Nos anos 1960, muita gente achava que o melhor hot dog de São Paulo ficava numa rua do Brooklin, perto dos trilhos que passavam na avenida Vereador José Diniz. Naquele tempo, quando ainda era chamado de cachorro-quente, o sanduíche era mais popular que os onipresentes hambúrgueres de hoje. Alguns fanáticos pegavam o trem para Santo Amaro para comer o petisco e tomar o delicioso milk-shake, sorvido em canudinhos de papel, mais sustentáveis que os de plástico.
Dizem que 1968 não terminou. Uma das evidências disso é o fato de que, naquele ano, o prefeito Faria Lima interrompeu o serviço de transporte público sobre trilhos (chamado, então, de bonde; hoje, os engenheiros preferem VLT), prometendo substituí-lo por metrô, mais eficiente. A rota do centro a Santo Amaro, seguindo roteiro semelhante ao da nova linha 5-Lilás, foi enterrada em fevereiro daquele ano insepulto. 
Tanta fé o prefeito tinha, ou fingia ter, na rapidez da construção do novo sistema que nem se preocupou em criar corredores de ônibus para a transição. A cidade ficou sem bonde, sem metrô e sem ônibus
eficientes. As vias asfaltadas viraram monumentos ao automóvel.
Quem fazia a viagem apenas para se divertir buscou outros destinos na cidade. Talvez por isso o delicioso hot dog não esteja mais lá. 
Em seus deslocamentos para o trabalho no centro, os moradores de Santo Amaro e dos bairros da zona sul, que não pararam de crescer, foram jogados no congestionamento, dentro de ônibus ou de carros,
sem opção de coletivo eficiente.
Só em 2008 foi inaugurado o corredor de ônibus da Vereador José Diniz. E agora, meio século depois de aposentados os bondes, começa a ser possível ir de Moema a Santo Amaro de metrô. Mas o trajeto até o centro ainda não foi reconstituído. O ano de 1968 não acabou.


Leão Serva
Jornalista, foi coordenador de imprensa na Prefeitura de São Paulo (2005-2009). É coautor de "Como Viver em São Paulo sem Carro".

Direita sem Clube, FSP

Fernando Henrique Cardoso jura que é de esquerda, embora muitos brasileiros enxerguem o PSDB no outro lado da régua política. Durante seu governo, 31% dos eleitores diziam que os tucanos eram de direita. Anos depois, FHC ainda tentava convencer: “Se eu disser que sou de esquerda, as pessoas não vão acreditar, embora seja verdade”.
As bússolas ideológicas são desorientadas no Brasil, mas não há partido forte que se assuma de direita por aqui. O ícone conservador do momento, Jair Bolsonaro, atrai quase 20% do eleitorado, mas precisou alugar o nanico PSL para poder disputar a Presidência este ano.
Ainda que muitos brasileiros concordem com valores liberais na economia e tradicionalistas nos costumes, a estrutura política nacional parece repelir o rótulo da “direita”. O PFL, que nasceu como dissidência do partido de sustentação do regime militar, chegou a mudar de nome em 2007 para se livrar da marca.
“O sistema partidário atual nasce negando a ditadura, uma visão conservadora da sociedade”, pondera Marco Antônio Teixeira, da FGV. “Hoje, há uma estruturação do pensamento de direita em torno de pessoas, como Bolsonaro, ou movimentos, como o MBL. Não há partidos que reivindiquem esse legado.”
Plataformas conservadoras fazem mais sucesso com grupos suprapartidários, como as frentes temáticas do Congresso. A bancada BBB (boi, bala e Bíblia) agrega políticos de diversas siglas, defendendo com fervor o setor rural, a linha dura na segurança e interesses religiosos.
A onda de Bolsonaro representa terreno fértil para a organização de um partido de direita? O cientista político Jairo Nicolau acha possível. “Temos uma direita que saiu do armário. A opinião pública se plasmou nos últimos tempos, talvez falte um partido para vocalizar isso”, diz.
Há um entrave para isso, segundo Marco Antônio Teixeira. “O elo de Bolsonaro é com eleitores. O partido não é mediador do processo. Ele não expressa um projeto de sociedade, mas palavras de ordem.”