quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Boas cinzas, Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo



Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?


14 Fevereiro 2018 | 02h00
A Quarta-Feira de Cinzas marca o fim do carnaval cuja fórmula era o oposto do nosso cotidiano. Vejo eu mesmo com 14 anos, berrando com a minha turma um inútil: “É hoje só/ Amanhã não tem mais!”. Protesto e mantra daquilo que nos leva à lua nessas jornadas curtas - tão ligeiras e gozosas como a própria vida que passa, ela própria, como um carnaval.
Vivemos num mundo marcado pelo proibido e pelo “amanhã” - um futuro que justificava as negativas porque seria vivido como realidade. Menino e moço, eu não fui cidadão na “terra do nunca” como o mítico moderno Peter Pan, mas no país do “não”. Na terra no “não temos”, “não pode”, “não é possível”, “a lei não permite”, “proibido para menores de 18 anos” ao lado do “daqui a pouco eu faço...”. Essas foram as expressões que - sem exagero - eu mais ouvi na minha rotina caseira, escolar e religiosa, bem como quando estava com a minha “turma” na esquina da rua Dr. Romualdo com a avenida Rio Branco, em Juiz de Fora; ou no “muro branco” de Icaraí, aqui em Niterói.
Em casa, eu internalizava o não entrelaçado ao “tenha muito cuidado”, essa outra dimensão da vida moral brasileira. A “turma” que competia com a minha família e aliava a vivência de proibições permanentes me dava uma certa saúde mental, embora tivesse também suas formas de negação e limites. Nela, eu aprendi o significado do pecado e do correto - essas dissimulações do velho não.
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Nascemos no mundo do controle. É proibido fumar, a mentira é descoberta no olhar das pessoas e até o vento e a chuva (vindos de fora) - tal como os desconhecidos - são perigosos. Um universo de proibições e restrições permeia nossa morada. O perigo moral ronda o mundo. Muito antes de ler Guimarães Rosa, eu sabia que viver era muito perigoso. É claro que era! Nesse nosso Brasil, tudo - até mesmo usar calça comprida e fazer a barba - era regulado. Quando apareci na turma usando um sapato sem cadarço, perguntaram se, na loja onde eu o havia comprado, vendiam artigo para homem! Homem deveria ser duro, calado e feio. Não poderia usar camisa colorida nem sentar juntando as pernas. Se você apreciasse filmes musicais, você era imediatamente colocado no “gelo”. Ninguém seria seu amigo porque todas as pontes potenciais eram tão condenadas quanto as “desquitadas” num país que, em matéria de casamento, a questão básica não era se ele deveria durar para sempre, mas ser tão eterno quanto o outro mundo. As pessoas não escolhiam casar; era o casamento que as escolhiam.
Hoje, eu vejo que esse Brasil do não, do proibido e do amanhã estava centrado numa religiosidade cuja promessa era o paraíso a ser conquistado pelos obedientes, pelos pacientes, pelos que aceitavam o seu lugar - mesmo quando eram escravos, desviantes, marginais ou miseráveis. Neste mundo, tudo é proibido, mas, em compensação, “no céu”, no paraíso, no verdadeiro mundo real que era ironicamente o outro mundo, havia a felicidade eterna ao lado dos anjos, dos santos e de Deus. O paraíso seria a terra sem fronteira do sim.
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Este mundo e o outro formam as margens ideológicas do imenso rio nacional. Num lado, fica o sim da minoria dos que podem fazer tudo; do outro, há o não da maioria proibida de tudo fazer. Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?
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No país do carnaval, há uma pergunta que não quer calar: por que, com toda essa roubalheira abusiva e nessa falência estrutural de serviços públicos essenciais, os brasileiros não reclamam em bloco e o País não explode numa reversão momesca?
Seria porque nas sociedades densamente antimodernas, fundadas na mais profunda opressão, existem mecanismos sociais de evasão, de compensação e de mistificação - válvulas de escape bem estabelecidas, como o carnaval?
Nesse caso, o carnaval seria o momento festivo do “sim” e do “pode tudo” na terra do não. E, como a liberdade licenciosa do reino de Momo está relacionada ao riso, ao canto, à dança, e aos desfiles nos quais os subordinados viram deuses e os ricos os aplaudem dos seus luxuosos camarotes, o carnaval é um drama fugaz que reverte o cotidiano. Tal teatro tem que terminar em cinzas.
Percorremos mais um carnaval. Fomos da opulenta carne fantasiada e sensualizada (boa de comer) dos desfiles, blocos e bailes, onde a regra é exibir sem vergonha todos os excessos. Sobretudo o de ter o direito e nada fazer num sistema que foi tocado a escravidão.
Não há como todo esse fogo não terminar em cinzas. Nesta pungência fria da morte.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Piano Na Mangueira Tom Jobim , das Carnavalescas de 18


 

Mangueira
Estou aqui na plataforma
Da estação primeira
O morro veio me chamar
De terno branco
E chapéu de palha
Vou me apresentar
À minha nova parceira (majestosa)
Mandei subir o piano
Prá mangueira
A minha música não é de
Levantar poeira
Mas pode entrar no barracão
Onde a cabrocha pendura
A saia ao amanhecer da
Quarta-feira, Mangueira
Estação primeira
Pela vida inteira
Mangueira


“São demasiado pobres os nossos ricos” – por Mia Couto

A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.
A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos «ricos». Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.
O maior sonho dos nossos novos-rícos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas, muito convexos e estradas muito concavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.
As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. Por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam. O fausto das residências não os torna imunes. Pobres dos nossos riquinhos!
São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam de ser sustentadas com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.
Mia Couto, in ‘Pensatempos’