segunda-feira, 2 de maio de 2016

Solo estéril - VINICÍUS MOTA


Folha de SP - 02/05
Durante a agonia de um governo arruinado, o Brasil começou a melhorar. A substituição da equipe do calote, de Zélia Cardoso, pela do diplomata Marcílio Marques, em maio de 1991, iniciou período de 15 anos de prevalência da sobriedade na política econômica.

Sob Marcílio atuavam Pedro Malan, Armínio Fraga, Francisco Gros e Gustavo Loyola, que se tornariam protagonistas a partir da segunda metade daquela década. Collor cravejado deixou-se influenciar pelo espírito da História, levado quer pelo acaso, quer por tirocínio.

Dilma Rousseff não teve fortuna nem virtude nem presciência. Sai de cena tendo semeado coisa nenhuma para o futuro.

A fertilidade do solo é tão baixa que se avizinha troca profunda de quadros, a abranger altos escalões de formulação e decisão, na Fazenda, no Banco Central, no Planejamento, na Petrobras e no BNDES. Nem sequer a passagem de FHC para Lula registrou movimentação de pessoal estratégico nesse volume.

O desafio dos entrantes e de seus sucessores é soberbo e se confunde com a missão de renegociar os termos do pacto civil. As turmas dos anos 1990 em diante beneficiaram-se da ampla margem para elevar a dívida pública e os tributos, o que permitiu expansão contínua, absoluta e como fatia do PIB, dos gastos sociais.

Esse fator se esgotou, ainda que se imponha uma alta urgente de impostos. Dos ganhos de eficiência dos atores, privados e estatais, é que surgirão os recursos para a consecução do núcleo dos ideais de bem-estar inscritos na Constituição, partilhado pela maioria dos partidos.

O populismo dos últimos dez anos estimulou a confusão entre esses princípios constitucionais, de um lado, e a figura de um Estado paternalista a distribuir privilégios, do outro. Caberá à nova geração de autoridades e à nova maioria legislativa a espinhosa tarefa de desfazer o equívoco.

A corrupção sem graça, Por José Roberto de Toledo

Ministro da Fazenda, Joaquim Levy disse, em inglês, que “no Brasil, a maioria das empresas não gosta de pagar impostos”. E completou: “Nem quer pagar contribuição previdenciária”. Doleiro e cagueta, Alberto Youssef tem opinião sobre o tema: “Neste país, empresário não consegue nada se não tiver lobby”. Delata sua própria experiência. No caso de Levy, espera-se que não.
Nenhum dos dois se referia à Operação Zelotes, mas poderiam. “Quem paga imposto são os coitadinho (sic), quem não pode fazer acordo, negociata. Esses grandões aí estão passando tudo livre (sic), tudo isento de imposto”. A frase foi gravada pela Polícia Federal ao grampear – entre outros – um conselheiro do “tribunal” da Receita Federal notabilizado por mover zeros da direita para a esquerda em valores de dívidas tributárias.
Polícia Federal e Ministério Público estimam que a transmutação de zeros resulte em R$ 19 bilhões devidos por empresas ao Fisco mas jamais pagos – graças à ação milagrosa de consultores e conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em favor “desses grandões aí”. Além de dar razão a Levy, o papo dos milagreiros na Zelotes é de deixar mensaleiro e ministro do Supremo com complexo de inferioridade.
Por comparação, o valor dos pagamentos a deputados no mensalão os enquadraria, pela definição do conselheiro grampeado, como “coitadinhos”. Juízes daquele caso achavam que estavam julgando o maior escândalo da história, mas o superlativo ocorria em outro tribunal, sem transmissão pela TV Justiça.
Conselheiro conta ao consultor, pelo telefone, sobre a dívida contestada por um banco junto à Receita. Diz que após o julgamento favorável à empresa, um conselheiro é convidado a dar palestra em São Paulo, mas, apesar de ter ido de avião, prefere voltar de ônibus. Ao que o consultor comenta: “No aeroporto, como é que tu vai (sic) justificar uma mala cheia de dinheiro?”
Os alvos centrais da investigação são, na maioria, funcionários ou ex-funcionários de carreira, tanto da Receita quanto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Eles são os milagreiros suspeitos de transmutar zeros nas autuações de empresas. Prestam um serviço e são recompensados por ele pelos “grandões” que, graças à sua astúcia, economizam dezenas ou centenas de milhões.
É, tudo indica até agora, a velha corrupção, pura e simples. Sem complicadas operações financeiras, sem sofisticações, sem graça. Têm-se uma dívida cancelada ou abatida e paga-se uma fração do valor devido a quem operou o milagre. Não envolve caixa dois de partido, financiamento de campanha eleitoral nem nenhum outro ingrediente que seja capaz de apimentar o noticiário político.
São apenas grandes empresas que, na definição do ministro, não gostam de pagar impostos. Recorrem a advogados e consultores especializados em encontrar conselheiros e funcionários públicos dispostos a prestar seus serviços em troca de uma recompensa que, por vezes, não pode ser transportada por via aérea.
É o tipo de corrupção que não se preocupa com qual partido está no poder. Funciona cotidianamente. É parte do negócio. De tão ordinária, velha e esperada, não leva multidões às ruas. Não ganha hashtag no Twitter, nem página de protesto no Facebook. Muitas vezes, não vira nem notícia. Por isso, não seduz magistrados ocupados em projetar uma imagem de super-herói.
Não é o tipo de corrupção que pode ser resolvida pela reforma política – especialmente uma reforma proposta pelo PMDB. Muito menos pela redução da maioridade penal. É coisa de gente grande.
É o tipo de corrupção que arromba as contas públicas. Que subtrai do estado capacidade de investir em escolas e hospitais, de pagar melhor médicos e professores. E em uma crise fiscal como a de hoje, é o tipo de corrupção que provoca o aumento de impostos. Mas isso o corruptor sabe como resolver.

Audiências de custódia, opinião Estadão


Implantada há um ano em caráter experimental no Fórum Criminal da Barra Funda, com apoio do Conselho Nacional de Justiça, da Defensoria Pública de São Paulo e do Departamento Penitenciário Nacional, a medida que obriga os distritos policiais da capital a apresentar os presos em flagrante a um juiz do Departamento de Inquéritos Policiais, para a realização de uma audiência de custódia no prazo máximo de 24 horas, deu tão certo que já foi copiada e aperfeiçoada pelos Tribunais de Justiça de vários outros Estados.
O objetivo dessas audiências é analisar a legalidade das prisões em flagrante. Na audiência, o juiz decide se é necessário converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, se a prisão pode ser relaxada ou se o preso pode ser libertado provisoriamente, com ou sem a imposição de medidas cautelares, depois de entrevistá-lo, de analisar a folha de antecedentes e de ouvir as alegações de seu advogado ou de um defensor público e as manifestações da promotoria. O juiz também verifica se houve abusos durante a prisão em flagrante e se o autuado foi submetido a maus-tratos e a tortura nas horas em que ficou encarcerado. O juiz pode, igualmente, requisitar exame clínico e de corpo de delito e, quando for o caso, determinar encaminhamento assistencial. Assim, só fica preso quem representa perigo para a sociedade.
Recomendada por organizações multilaterais e prevista por convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, em matéria de respeito aos direitos humanos, a experiência do Fórum Criminal da Barra Funda foi posta em prática para evitar que pessoas presas em flagrante passem meses detidas em carceragens policiais, cadeiões e centros de detenção provisória, sem serem levadas à presença de um magistrado. Em vários países europeus, as audiências de custódia são chamadas de “juizados de garantias”. Segundo levantamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), dos 17.362 casos analisados por juízes criminais do Fórum da Barra Funda, entre março de 2015 e fevereiro deste ano, 9.424 acusados – o equivalente a 54,3% do total – tiveram a prisão preventiva decretada. Os outros 7.938 acusados (45,7% do total) puderam esperar o julgamento em liberdade.
Até o ano passado, no dia a dia dos fóruns criminais de todo o País a maioria dos juízes só tinha contato com os presos por meio dos autos do processo. Depois da iniciativa do TJSP, os Tribunais de Justiça de Roraima, Maranhão, Pernambuco, Mato Grosso e Espírito Santo também passaram a promover audiências de custódia tanto em suas respectivas capitais como em cidades do interior – e, inclusive, nos fins de semana e feriados. Foi um grande avanço para coibir eventuais casos de abuso e agressão policial e para evitar a superlotação desnecessária do sistema prisional.
Apesar de o TJSP ter sido pioneiro na implementação desse programa, em São Paulo, as audiências de custódia são realizadas somente no Fórum da Barra Funda – e, ainda assim, apenas em dias úteis. O tribunal até hoje não estabeleceu um prazo para que as audiências de custódia passem a ser realizadas também em fins de semana e feriados. A alegação é de que não há recursos orçamentários disponíveis para o pagamento das horas extras dos servidores, médicos legistas e assistentes sociais. Também por falta de verba, somente agora o tribunal estenderá o programa para as comarcas da Grande São Paulo. A estimativa é de que essa medida alcance cerca de 35% das prisões em flagrante em todo o Estado. Para as cidades do interior, a previsão do TJSP é de que as audiências de custódia passem a ser realizadas a partir de 2018 – ou seja, 18 meses após o projeto chegar à região metropolitana.
A implantação do projeto de audiências de custódia na maior Corte do País pode custar caro. Mas, mesmo com atrasos no cronograma, é um passo decisivo para desburocratizar e agilizar a Justiça e humanizar o sistema prisional.