CLARISSA THOMÉ | RIO - O ESTADO DE S. PAULO
02 Maio 2015 | 16h 00
Imbróglio judicial envolvendo obras de Portinari, Di e Volpi é mais um episódio conturbado da derrocada dos Mayrink Veigas
Em julho de 2007, o anúncio de que quadros e aparelhos de jantar da socialite Carmen Mayrink Veiga iriam a leilão movimentou o mercado de artes. Quinze mil convites foram distribuídos. Atraídos pelo sobrenome famoso, sinônimo de luxo e requinte, 3,5 mil pessoas visitaram a exposição de pouco mais de 40 lotes, que incluíam telas de Guignard, Milton Dacosta, Volpi e Di Cavalcanti. A venda foi um sucesso, com arrecadação de R$ 2,5 milhões em valores da época - meio milhão a mais do que o esperado para pagar credores como o Banco do Brasil e o falido Banco Nacional. E poupou Carmen de vender um de seus quadros mais queridos: um retrato dela pintado por Cândido Portinari.
Quase oito anos depois do leilão, as paredes enfeitadas pelos quadros que pertenceram à “locomotiva do Rio de Janeiro”, como Carmen era chamada por Ibrahim Sued, o mais importante colunista da sociedade carioca, correm o risco de ficar nuas. A juíza Milena Angélica Drumond Morais Diz, da 38.ª Vara Cível, entendeu que houve fraude na execução de outra dívida, contraída junto ao antigo Banco Real, e determinou que os quadros sejam retomados. “Todo mundo conhece a família Mayrink Veiga das colunas sociais. Quem comprou sabia que eles estavam quebrados. A juíza entendeu que os arrematantes assumiram o risco”, diz Guilherme Ferreira, executivo de um fundo de investidores, o Jive Investments, que cobra a dívida.
Para evitar oficiais de Justiça à porta, pelo menos um comprador já recorreu da decisão. E um dos argumentos usados é tão curioso quanto a retomada dos bens: ele reivindica que a tela Vênus, de Milton Dacosta, é sua por usucapião (direito à posse em função do uso contínuo e prolongado de um bem, o termo costuma ser mais empregado para casas e terrenos).
O imbróglio judicial é mais um capítulo conturbado na derrocada da família Mayrink Veiga, iniciada no início dos anos 1990. Até então, o que se noticiava sobre o casal Tony e Carmen eram os jantares sempre pontuais e com lugares marcados, regados a champanhe - ela não gostava de servir vinhos e nunca tolerou atrasos. Falava-se das viagens internacionais, dos vestidos usados por Carmen, feitos por estilistas como Givenchy, Valentino, Guy Laroche, Guilherme Guimarães, todos amigos da socialite, que a levaram ao hall da fama da Vanity Fair como uma das mais bem-vestidas do mundo, em 1981.
Pais de Antenor e Antonia, educados na Europa, o casal dividia-se entre o apartamento de mil metros quadrados no Morro da Viúva, no Flamengo, com vista para o Pão de Açúcar, a mansão em Angra dos Reis e o apartamento em Paris, uma exigência de Carmen. O empresário preferia Londres como base europeia da família.
Enquanto a mulher se divertia em jantares, bailes e desfiles de moda, Tony, mais discreto e avesso a badalações, gostava de safáris. Certa vez, pagou US$ 150 mil por uma expedição à África para abater elefante, búfalo e rinoceronte. Um bimotor abastecia o acampamento - a água servida era da marca francesa Evian, contou ele em entrevista à revista Veja, comentando sobre o livro que preparava a respeito de suas caçadas.
Todo esse luxo era sustentado por uma holding de oito empresas do setor de armamentos e equipamentos para embarcações. A Casa Mayrink Veiga, fundada em 1864, forneceu armas para o Exército desde a Guerra do Paraguai - nos anos 1980, passaria de representante a fabricante de armamentos. Tony foi dono ainda da Rádio Mayrink Veiga, fechada pela ditadura militar em 1965, em represália por ter integrado a Cadeia da Legalidade de Leonel Brizola, criada três anos antes.
As empresas começaram a fazer água com o confisco da poupança no governo de Fernando Collor, em 1990. Em 1993, o conglomerado inglês Ferranti, fornecedor de sistemas de defesa, foi à falência. Tony, representante no Brasil do grupo, dizia que tinha deixado dívidas com a Casa Mayrink Veiga. Também se disse prejudicado pela quebra da Indústria Verolme, que ficou com dois navios equipados pela Mayrink Veiga no estaleiro.
O que se seguiu foram empréstimos e tentativas de renegociação da dívida. No ápice da crise, oficiais de justiça e advogados do Banco do Brasil estiveram no apartamento da família, em Botafogo, para penhorar os bens dos Mayrink Veigas - estavam acompanhados da imprensa. Era maio de 1995. Em setembro daquele ano, ocorreria o primeiro leilão judicial para o pagamento das dívidas: venderam o Rolls-Royce 1951, em que Carmen chegou à igreja no dia do seu casamento.
Na tentativa de quitar parte do débito com o Banco Nacional, bens penhorados foram levados a leilão com autorização da 29.ª Vara Cível, em 2007. O Banco do Brasil também se habilitou. A socialite mineira Anna Vitória Motta Zammit foi uma das principais compradoras: levou um aparelho de jantar Imari (porcelana japonesa do século 16) de 125 peças, quatro quadros de Milton Dacosta, e dois quadros chineses, presenteados por Germano Gerdau, seu então namorado. O pecuarista paraense Benedito Mutran Filho ficou com outros dez quadros de Dacosta. A construtora Andrade Gutierrez adquiriu a tela Aula de Anatomia, de Chico Caruso. A lista incluía Cena de Folclore, de Di Cavalcanti, Igreja com Campanário, de Lasar Segall, Jurujuba, de Guignard, e Paisagem Rural com Figuras, de Volpi.
São esses os bens que a Jive Investments foi autorizada a retomar pela 38.ª Vara Cível. Além do Nacional e do BB, os Mayrink Veigas deviam R$ 3,5 milhões para o Banco Real - a dívida está atualizada em R$ 14 milhões. Em garantia, Tony havia oferecido a Ilha Savaratá, no Rio de Janeiro. Só que o bem já estava hipotecado. Duas vezes.
A Jive especializou-se em adquirir créditos vencidos e não pagos, principalmente de bancos. São 52 pessoas trabalhando em 800 créditos comprados de empresas que deixaram dívidas. Adquirem as dívidas sem grandes informações sobre os inadimplentes. “A grande tecnologia é identificar bens que estão escondidos, que caminhos tomaram ou se estão em nome de laranjas”, afirma Guilherme Ferreira.
Na busca por caloteiros contumazes, houve caso insólito. Um pecuarista deu como garantia de pagamento bois, que receberam chips na orelha, para serem monitorados. Como a dívida não foi quitada, a Justiça determinou o recolhimento dos animais com “brincos”. Montou-se operação com 20 tropeiros e caminhões. Quando chegaram à fazenda, em Minas Gerais, encontraram 400 orelhas no pasto. “O pecuarista mutilou o gado para fugir da execução. O juiz ficou revoltado com a crueldade e com o desafio à Justiça. Determinou o arresto de todos os bois no pasto. O pecuarista voltou à mesa de negociação e nós recebemos a dívida. Nosso objetivo não era ficar com os bois”, conta.
Guilherme diz que é preciso ter veia artística às vezes. Um cafeicultor falido retomou os negócios com outra empresa: tornou-se fornecedor de cafeterias gourmet. “Ele deixou a empresa ruim morrer e abriu outra, com outra razão social, outro CNPJ. Nos passamos por negociantes interessados em abrir franquia de cafés em São Paulo”, lembra. Compraram R$ 3 mil em pó de café, alegando que testariam o produto. “Tudo isso serviu para embasar o pedido de sucessão da empresa para assumir as antigas dívidas. Tivemos acesso ao novo nome da empresa, ao CNPJ, aos e-mails. Nosso objetivo é fazer o devedor entender que é mais vantajoso negociar com a gente, resolver nosso crédito. Ou vai ter de pagar a todo mundo.”
No caso dos Mayrink Veigas, o caminho para chegar aos bens foi pedindo a quebra do sigilo fiscal. Os quadros e obras de arte estavam nas declarações do imposto de renda de Tony e do filho, Antenor, avalistas da dívida. “Havia uma execução dessa dívida. Não é a família que decide quem vai receber, mas a Justiça.”
Antenor, afastado das empresas da família desde 1994, lembra que o leilão teve autorização judicial. “Esse dinheiro nunca passou pela conta do meu pai ou da minha mãe. Houve um leilão autorizado pela Justiça, foi feito acordo para a venda desses quadros. Essas empresas pegam créditos podres e tentam salvar algum. O cara só quer fazer tumulto”, afirmou.
O advogado Luiz Eduardo Cavalcanti Correa, que defende o investidor financeiro Angelo Romano, comprador de um Milton Dacosta, lembra que o leilão foi autorizado pela Justiça e amplamente divulgado, e que os autos do processo foram retirados do cartório judicial por dois anos pela então advogada do Banco Real, quando houve o leilão. “Mas, se nada disso for aceito, meu cliente tem usucapião. Ele está com o quadro há mais de sete anos na parede. Ficou absolutamente surpreso com essa decisão.”
Soraia Cals, dona do escritório de arte que organizou o leilão, também se surpreendeu. “Em 20 anos, isso não tem precedentes. O leiloeiro tem fé pública, é um agente do Estado. O que estão fazendo é totalmente sem propósito.”
Soraia diz que mesmo que a empresa retomasse os quadros, dificilmente conseguiria os valores de anos atrás. “Um Milton Dacosta, que hoje sairia por R$ 40 mil, foi vendido pelo dobro porque havia pertencido à Carmen Mayrink Veiga. Era o valor agregado por ser da Carmen”, afirmou. Episódio semelhante aconteceu com itens que pertenceram à Lily de Carvalho Marinho, viúva de Roberto Marinho. “Vendi por R$ 14 mil copinhos que em qualquer loja de antiguidade sairiam por R$ 100.”
Se os primeiros leilões foram traumáticos para Carmen, os últimos foram por decisão própria. Desfez-se de todos os móveis e objetos de decoração. Os vestidos de alta costura foram doados para o acervo do Instituto Zuzu Angel. As roupas, bolsas e sapatos, vendidos em bazares para as amigas.
Ainda mora no apartamento do Morro da Viúva. Agora reformado, o enorme imóvel foi dividido. A parte mais ampla está fechada. Ela vive apenas com o marido no espaço menor. Tony, de 87 anos, fuma desde os 13. Sofreu três enfartes e contabiliza onze stents. Carmen, de 86, locomove-se em cadeira de rodas por causa de uma doença degenerativa que lhe tolhe os movimentos das pernas e lhe causa dores. Sai cada vez menos de casa. Quando perguntada em entrevistas se se ressente de ter se desfeito dos bens, responde que nunca foi apegada a nada na vida. Só aos filhos. E aos gatos.