domingo, 3 de maio de 2015

Da natureza das coisas - LUIZ FELIPE PONDÉ, in FSP


FOLHA DE SP - 20/04

Não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que vierem a sua cama


Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se que tudo seja uma construção social.

Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente por perceberem que são os limites que nos humanizam, e não o desejo sem limites.

Os inteligentinhos dirão coisas como "conservador!". Mas a vida segue, o mundo se acabará um dia, e os inteligentinhos dirão, em seu último grito de agonia, "opressão!".

Mas não quero falar de política, que trato apenas como quem lida com uma ferida para que ela não se infeccione em demasia.

Quero falar de epicurismo. Não a ideia banal de epicurista como alguém que vai muito ao shopping ou come todas as gostosas do mundo (o sonho de qualquer cara normal). Falo do epicurismo antigo, do filósofo grego Epicuro (341 a.C. "" 270 a.C.). De Lucrécio (cerca de 96 a.C. "" cerca de 55 a.C.), filósofo latino, autor do poema "Da Natureza das Coisas".

Para ambos, a natureza da realidade é ser contingente. Isso quer dizer que "o fundo da realidade" é o acaso (que é a mesma coisa que contingência em filosofia).

Esse acaso é o movimento livre e sem ordem dos átomos. Portanto, tanto Epicuro quanto Lucrécio eram atomistas, o que é a mesma coisa de dizer que eram materialistas. A alma, esse "ar", se perde no momento da morte.

Como dizia Epicuro, quando eu estou, a morte não está, quando ela está, não estou. Ou seja: não há o que temer na morte porque ela é uma libertação da eterna contingência que move um destino cego. E a melhor coisa nisso é que a "consciência" desaparece.

Essa ideia me parece insuperável como liberdade. Ter a pedra como destino é meu sonho de eternidade.

Sendo assim, morreu, acabou. Muita gente teme uma possibilidade como essa.

Eu tendo a achá-la sedutora principalmente quando suspeito que viver para sempre seria como ser obrigado a beber água para sempre, mesmo tendo passado a sede.

Vejo beleza nisso tudo. A contingência liberta, mas não no sentido moderninho de que por isso podemos nos "inventar" ao bel prazer. Isso é coisa de "teenager".

Mas, justamente o contrário: meu desejo também é contingente, como tudo mais. Dar asas a ele é ter fé de que eu, diferentemente do resto do universo, não sou também feito à semelhança do acaso.

Só os iniciantes confiam em si próprios. Meu desejo é a porta de entrada por onde a contingência se instala do seio da minha alma.

Não, a beleza está no que os antigos epicuristas viam nessa condição: sem deuses, sem eternidade, fruto do acaso, essa é a natureza das coisas, ser cega.

O prazer de Epicuro era justamente o de escapar da escravidão do desejo, não essa ideia contemporânea de que viver a realização contínua do desejo é a felicidade.

A concepção contemporânea de felicidade é brega, coisa de gente que se emociona quando um novo shopping é aberto na cidade.

Lucrécio entendia que a cegueira da natureza é a natureza das coisas.

É dela não carregar sentido em si mesma, e por isso é tão importante: porque me lembra continuamente que a vaidade e as expectativas, com o tempo, se tornam um tormento.

Não é totalmente absurdo escutarmos aqui o sábio israelita, também antigo, que escreveu o "Eclesiastes" (Velho Testamento): "vaidade, tudo é vaidade".

A grande questão é como se sustenta uma vida feliz decorrente dessa natureza das coisas. Podemos dizer que decorre, antes de tudo, do "relaxamento" do desejo que a consciência da contingência traz: a sabedoria da natureza é ela ser puro átomo e não uma lei.

Não há "missão" na vida. Viver segundo os prazeres do trabalho, da mesa e do corpo da mulher é tudo que podemos fazer. O puro prazer de existir.

Sem excessos, do contrário, nos tornamos escravos do trabalho, da mesa e do corpo da mulher.

Não porque uma danação eterna nos espera (ninguém nos vigia), mas porque o excesso do desejo destrói seu próprio usufruto na medida em que nos desesperamos com a possível falta do objeto desse desejo.

Dito de forma simples: não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que, por graça da contingência, vierem a sua cama.

História bem contada transforma traficante em mocinho vitimizado, do blog do Claudio Tognolli


(Foto: AFP)(Foto: AFP)
A história do segundo brasileiro fuzilado num paredón da Indonésia bestifica por uma única razão: o que os olhos não vêem o coração não sente. Traficantes, seja no Rio ou em São Paulo, têm executado até o Hino Nacional. Nada se fala. O bicho pega quando se executa ou um filho das “zelites”, ou um universitário.
De uns tempos para cá o protagonismo que é contar a história de vida de vítimas, com fotos e cartinhas, deu uma dilatada em seus vastos domínios. Hoje membros da chamada nova classe média, vitimizados, já podem ter suas histórias de vida relatadas na grande mídia. Afinal viraram consumidores e, portanto, converteram-se em gente, sentenciam os editores.
Há 13 anos  anos um meu aluno foi chacinado no Morumbi. Era perto de uma biqueira numa favela não pacificada, como se diz. Ganhou páginas e páginas nos então quarto maiores jornais do país. Levantei os dados: naquele dia 9 rapazes, que regulavam com a idade do universitário, tinham sido chacinados na mesma noite: mas só ele mereceu história de vida.
Há arcanos sobre isso no o prefácio de um livro de Leão Serva, chamado Jornalismo e Desinformação, escrito pelo Fernando Morais. Ele relata levantamento feito nos anos 60 pelo jornalista Argemiro Ferreira, sobre a Guerra do Vietnã. As contas são brutais: era necessário que morressem 35 vietcongs para que estes ganhassem o mesmo espaço (abre de página) que ganhava um oficial dos EUA morto (ou oito oficiais franceses e italianos).
Só nos toca o que é igual à gente: ou é vendido como se fosse igual a nós. Não?
O segundo fuzilamento na Indonésia nos toca mais o coração porque é literariamente relatado por aí. Capricham no texto, e nosso coração fala mais alto.
Aquele monstro a quem os EUA pintaram nos anos 90, o Slobodan Milosevic, teve uma sacada genial quando Bill Clinton (para tirar dos jornais o escândalo Mônica Lewinsky/sexo oral)  convenceu as Nações Unidas a invadirem o Kossovo, em abril de 1999. Slobodan contratou “n” fotógrafos que mandavam retratos de crianças  filhas de suas tropas, loiras e de olhos azuis, para a mídia dos EUA. Era o típico lance da alteridade: vejam, eles são alourados como vocês! São gente também, portanto.

Sobre homicídios
Não vi na mídia nenhum alvoroço semelhante ao do fuzilamento segundo brasileiro quando, em dezembro de 2014, foram divulgados os dados que se seguem. Eis o que a mídia estampou:


“O Brasil é o país com o maior número de homicídios no mundo, segundo um relatório divulgado nesta quarta-feira (10 de dezembro) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra. De cada 100 assassinatos no mundo, 13 são no Brasil.
Segundo o documento, o total de homicídios no mundo chegou a 475 mil. Os dados são de 2012.
O Brasil é o líder no ranking. O governo brasileiro informou 47 mil homicídios em 2012, mas a OMS estima que o número real tenha sido muito superior: mais de 64 mil homicídios. Depois do Brasil aparecem Índia, México, Colômbia, Rússia, África do Sul, Venezuela e Estados Unidos.
A OMS calcula que no Brasil a cada 100 mil pessoas, 32 sejam assassinadas.
Na outra ponta da tabela, com os menores índices de homicídio por habitante, em 1º lugar vem Luxemburgo, depois Japão e em seguida Suíça, empatada com Cingapura, Noruega e Islândia.
Esses números são referentes a homicídios, mas a OMS chama atenção para diferentes tipos de violência mais recorrentes no nosso dia a dia do que se possa imaginar.
De acordo com o levantamento, uma em cada quatro crianças sofre agressões, uma em cada cinco meninas é abusada sexualmente e uma em cada três mulheres já foi violentada pelo próprio parceiro”.

Por que tais números não ribombaram, escandalosa e demencialmente? Números não tocam corações.

Sobre narcotráfico
Do que o segundo brasileiro no paredón da Indonésia é ponta de iceberg?
Vejamos: o Relatório Mundial sobre Drogas de 2014, confeccionado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC),  destaca que o uso de drogas no mundo permanece estável. Cerca de 243 milhões de pessoas, ou 5% da população global entre 15 e 64 anos de idade, usaram drogas ilícitas em 2012. Usuários de drogas problemáticos, somaram por volta de 27 milhões, cerca de 0,6% da população adulta mundial, ou 1 em cada 200 pessoas.
O consumo de cocaína dobrou no Brasil no prazo de seis anos, enquanto em outras partes do mundo o uso dessa substância está caindo, diz o Unodoc.
O consumo de cocaína no Brasil aumentou “substancialmente” e atingiu 1,75% da população com idade entre 15 e 64 anos em 2011 - ante 0,7% da população em 2005.
Na América do Sul o uso de cocaína atinge 1,3% da população.
A dependência de calmantes e sedativos lidera todas as modalidades, com 227,5 milhões de consumidores, ou quase 4% da população mundial.
Em seguida, vem a maconha. Tem 141 milhões de adeptos, totalizando mais de 3% da população mundial. A cocaína tem 14 milhões de usuários. Cerca de 8 milhões de almas são adeptas costumazes da heroína e 30 milhões, ou 0,8% da população mundial, recentemente mergulharam no consumo desenfreado das chamadas drogas sintéticas, como ATS e meta- anfetamina.
Estima-se que sejam apreendidos em todo o mundo, pelas polícias locais, apenas de 5% a 10% de toda a droga ilegalmente produzida. Para abastecer o lote que vai pular logo mais para 400 milhões de junkies planetários, há mecanismos econômicos que lucram até US$ 400 bilhões por ano –uma soma igual à gerada pela produção mundial de artefatos têxteis.
Em todo o planeta a produção de maconha cresceu 10 vezes em 25 anos. Nos EUA, a erva agora é o cultivo mais lucrativo, com o valor de sua colheita excedendo o do milho, soja e ferro (de resto as três atividades extrativas mais lucrativas daquele país). Em solo norte-americano 500 gramas de maconha podem custar entre US$ 400 e US$ 2.000. A mesma quantidade de maconha da melhor qualidade, conhecida como “sinsemilla”(as sem-sementes, chamadas também de “juicy and seedless”, suculentas e sem-semente) é vendida por taxas entre US$ 900 e US$ 6.000 cada 500 gramas. O lucro dos narcotraficantes, no ato da revenda, é de pelo menos 20 vezes.

Esse numerário esmaece a olhos vistos porque a história de vida dos brasileiros traficantes, quando bem contada, fala mais alto que a matemática.
Não espantará se Dilma fizer de uma homenagem ao segundo fuzilado o seu discurso do Primeiro de Maio…
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terça-feira, 28 de abril de 2015

Organização Social: sinônimo de boa gestão pública? republicado Carlos Neder


Artigo publicado no ‘O Estado de São Paulo’ (“O STF deve chancelar a boa gestão pública”, de Helena Nader, Jacob Palis Junior, Rubens Naves e Thiago Donnini) faz defesa enfática da modalidade de gestão das Organizações Sociais (OSs), dando-lhe caráter público. Seus autores mostram casos de sucesso em âmbito federal.Estudos desenvolvidos pelo Ministério do Planejamento caracterizam, no entanto, essa modalidade de gestão como sendo de natureza privada. O fato de instituições privadas serem qualificadas como OSs pelo poder público, com base na Lei n.º 9.637/98, iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, não lhes confere um caráter público e tampouco os acordos administrativos estabelecidos se confundem com convênios. Inserem-se, com mais propriedade, na categoria de contratos em que pode haver conflitos de interesses na relação de prestação de serviços, sendo imprescindível controle público efetivo sobre sua atuação.
Defendidas com o argumento de agilidade administrativa e de serem sinônimo de boa gestão, inclusive para o desenvolvimento tecnológico e cientifico do País, essas entidades criaram a expectativa de que conseguiriam captar recursos privados, mas dependem de recursos públicos. Os conflitos de interesses observados por gestores públicos e órgãos de controle, tais como Controladorias, Ministérios Públicos, Legislativo, Tribunais de Contas, Judiciário e Conselhos Gestores, mostram impropriedades e inadequações no funcionamento das OSs, até mesmo em desacordo com legislações específicas que as instituíram.
São conhecidas, entretanto, alternativas de gestão pública que podem atender às mesmas exigências de agilidade, eficiência e eficácia. Experiências bem sucedidas de administração pública indireta, como é o caso do uso pelo poder público das modalidades de autarquias, autarquias especiais, fundações públicas e fundações estatais, para citar algumas. Mesmo a modalidade da administração direta, associada à ideia de inoperância por seus críticos, deve ser considerada uma boa escolha, a depender do perfil da instituição e das condições de trabalho e governança oferecidas.
Ao invés de incentivar o debate do tema, as motivações do artigo resvalam para a tentação de mobilizar a opinião pública para que critique a iniciativa do PT e do PDT de ingressar com Ação Direta de Inconstitucionalidade dessa lei federal (Adin n.º 1.923/DF) e exerça pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da urgente afirmação da integral constitucionalidade do que vem sendo praticado.
Provocam esses partidos para que reconsiderem seus questionamentos, uma vez que lançam mão das OSs em seus governos. Citam os autores que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação encaminhou em 2013 ao STF uma síntese dos benefícios proporcionados pelo modelo das OSs às atividades do setor e argumentam com o que pratica hoje o Município de São Paulo.Ocorre que não apenas esses partidos, mas a sociedade como um todo quer saber se o eventual julgamento da constitucionalidade de parte ou da totalidade dessa legislação federal dará cobertura legal para práticas que parecem estar desacordo com essa e outras legislações. O argumento do fato consumado e da demora no julgamento, decorridos quase 15 anos da iniciativa jurídica, não pode impedir que questões igualmente relevantes sejam objeto da análise e julgamento do STF, ainda mais considerando a existência de dezenas de leis estaduais e municipais que ampliaram o seu escopo e diversificaram seu uso.
Como explicar o uso de recursos públicos por entidades privadas escolhidas pelo poder público sem processo seletivo e aplicados sem o respeito à lei de licitações? Sendo entidades privadas, como justificar a cessão de servidores públicos para nelas trabalharem? Sendo teoricamente sem fins lucrativos, em quanto importa a taxa de administração embutida sem transparência nos contratos de gestão firmados e quais devem ser os critérios de contratação e remuneração do seu corpo diretivo, muitas vezes praticando valores acima da administração pública e mesmo do mercado?
Os mecanismos de controle têm se mostrado efetivos? Como explicar a associação de entidades para atender aos critérios de qualificação e impedir que se perpetuem problemas como os detectados, por exemplo, na Santa Casa de São Paulo, qualificada indevidamente como Organização Social? Os problemas detectados em auditorias, por exemplo, em relação à SPDM – Associação para o Desenvolvimento da Medicina -, alertam o Poder Judiciário para desvios de finalidade no uso de recursos públicos, com base em legislações estaduais e municipais?
Há, hoje, uma verdadeira febre na utilização desse expediente de OSs para burlar medidas consagradas na gestão pública, tais como atender aos princípios da transparência, publicidade dos atos, critérios objetivos de contratação e compras, realização de processos licitatórios, concursos públicos e respeito aos direitos dos trabalhadores e cidadãos, e naquilo que está consagrado em leis nos sistemas universais de saúde (SUS), assistência social (SUAS), previdência social e educação.
Inicialmente utilizadas nas áreas de saúde e cultura, rapidamente as OSs estão sendo elevadas à categoria de opção preferencial para todas as políticas públicas, chegando mais recentemente ao campo das pesquisas públicas e da ciência, tecnologia e inovação. Em São Paulo, o Governo Alckmin pretende extinguir fundações públicas importantes, como FUNDAP e CEPAM, e aprovou lei para que a Fundação Casa, as Unidades de Conservação Ambiental e o Investe São Paulo passem para gestão de Organizações Sociais.
Que o fato consumado de haver crescente uso dessa modalidade de gestão em governos de diferentes partidos políticos e a crise política atual não sejam utilizados como fatos determinantes para inibir o debate aprofundado e a análise jurídica que tanto clama a sociedade desse marco legal no sentido de proteger o Estado brasileiro da crescente privatização de recursos e terceirização da gestão.
​Carlos Neder, deputado estadual pelo PT, foi secretário municipal de saúde de São Paulo (90-92, Governo Luiza Erundina)