quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS SENTIMENTOS DE AMOR E ÓDIO NA CAMPANHA ELEITORAL



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Leonardo Boff
Dizer que o brasileiro é um “homem cordial” vem do escritor Ribeiro Couto, expressão generalizada por Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido livro “Raízes do Brasil”. Ele entendia a cordialidade no sentido estritamente etimológico: vem de “coração”. O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio.
Escrevo isso para entender os sentimentos cordiais que irromperam na campanha presidencial de 2014. Houve declarações de entusiasmo e de amor para os dois candidatos do segundo turno e de ódio profundo de ambas as partes do eleitorado.
Talvez em nenhuma campanha anterior tenham-se expressado os gestos cordiais dos brasileiros no sentido de amor e ódio contidos nessa palavra. Quem seguiu as redes sociais se deu conta dos níveis baixíssimos de polidez, de desrespeito mútuo e até falta de sentido democrático como convivência com as diferenças. Essa falta de respeito repercutiu também nos debates entre os candidatos, transmitidos pela TV.
Para entender melhor essa nossa cordialidade, cabe referir duas heranças que oneram nossa cidadania: a colonização e a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento de submissão. Em consequência, criaram-se a casa-grande e a senzala. Elas foram internalizadas na forma de um dualismo perverso: de um lado, os senhores que tudo possuem, e, do outro, o servo que pouco tem. Essa estrutura subsiste na cabeça das pessoas e se tornou um código de interpretação da realidade.
ESCRAVIDÃO
Outra tradição muito perversa foi a escravidão. Houve uma época em que mais da metade do Brasil era composta de escravos. Hoje, cerca de 60% da população possui algo em seu sangue de escravos afrodescendentes. A escravidão foi internalizada na forma de discriminação e preconceito contra o negro.
As consequências dessas duas tradições estão no inconsciente coletivo brasileiro em termos de status social. Diz-se que o negro é preguiçoso, quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo que temos em nossas cidades. O nordestino é ignorante porque vive no semiárido sob pesados constrangimentos ambientais, quando é um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do Nordeste nos vêm grandes escritores, poetas e atores. No Brasil de hoje, é a região que mais cresce economicamente, acima da média nacional. Mas os preconceitos os castigam à inferioridade.
Todas essas contradições de nossa cordialidade apareceram nas redes sociais. Somos seres contraditórios em demasia.
AMBIGUIDADE
Acrescento ainda um argumento de ordem antropológica para compreender a irrupção dos amores e ódios nessa campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade frontal da condição humana. Cada um possui a sua dimensão de luz e de sombra, de simbólica (que une) e de diabólica (que divide). Cada um deve saber equilibrar essas duas forças.
Esses meses de campanha eleitoral mostraram quem somos por dentro, cordiais no duplo sentido: cheios de raiva e de indignação e, ao mesmo tempo, de exaltação positiva e de militância séria.
Devemos procurar entender e buscar formas civilizadas de cordialidade nas quais predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeite o legítimo espaço de uma oposição inteligente e se acolham as diferentes opções políticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos e externos, num projeto por todos assumido, para que se transforme o país na “terra da boa esperança” (Ignacy Sachs).

Um projeto de extorsão contra a patuleia, Elio Gaspari

Empreiteiras querem se passar por Madres Teresas

Dois diretores de empreiteiras disseram à Justiça que foram extorquidos pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e seu operador financeiro, Alberto Youssef. Se não pagassem, teriam seus contratos prejudicados ou até mesmo cancelados. A tese é engenhosa. Pressupõe que empresas angelicais que fazem negócios com a Petrobras tornaram-se vítimas de dois demônios. Para que a pizza fosse ao forno, faltaria só o orégano.
A primeira denúncia da extorsão veio de Sérgio Mendes, vice-presidente e herdeiro da tradicional Mendes Junior, fundada em 1953 por seu avô. Ele contou que em 2011, a mando de Paulinho, pagou R$ 8 milhões a Youssef. Se não fizesse isso, estariam fechadas as portas e os guichês da Petrobras. A Mendes Junior opera com o governo brasileiro há três gerações e com a Petrobras há pelo menos duas. Teve negócios bilionários (em dólares) com a cleptocracia de Saddam Hussein no Iraque. Admita-se que jamais molhou mãos alheias. Tendo sido obrigada, em 2011, não denunciou o malfeito. Seria tudo coisa do Paulinho e do Youssef.
A segunda denúncia de extorsão veio do diretor de Óleo e Gás da Galvão Engenharia, doutor Erton Medeiros. Seu advogado, José Luis de Oliveira Lima, explicou por que a Galvão ficou calada: “Se ele denunciasse o que estava acontecendo, era ameaçado de perder os contratos. Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef estão longe de serem Madres Teresas de Calcutá”.
Bingo! Paulinho e Youssef são delinquentes, mas colaboram com a Viúva. Madres Teresas seriam a Galvão Engenharia e suas colegas. Segundo o doutor Erton, na origem de tudo estaria o deputado José Janene (morto um ano antes), e o dinheiro do achaque iria para o Partido Progressista. Bingo de novo, e surge mais uma Madre Teresa: o PT.
Durante a última campanha eleitoral, a Galvão Engenharia deu R$ 1,4 milhão ao Diretório Nacional do PT, partido da doutora Dilma. Portanto, a empresa foi achacada por dois delinquentes, não se queixou, e fez uma bela doação ao partido que, governando o país, nomeou Paulinho para uma diretoria da Petrobras. Entre 2006 e 2012, as grandes petroempreiteiras torraram R$ 856 milhões em doações para campanhas eleitorais. O PT ficou com R$ 266 milhões.
Nessa batida, a coisa fica assim: os dois delinquentes que estão colaborando com a Viúva achacavam empresas, e uma delas entrou na dança levada por um deputado que morreu, em benefício de um partido subsidiário. Tudo o mais seria golpismo, terceiro turno, e coisa de uma elite contrariada. Já a elite lubrificada, à qual ascendeu o comissariado petista, vai bem, obrigado.
UM GABINETE DE CRISE PARA AS TARIFAS
É conhecida a piada segundo a qual os generais combatem nas novas guerras as batalhas de guerras passadas.
O palácio do Planalto criou um “gabinete de crise” para cuidar dos escândalos da Petrobras. Se tivesse feito isso em março, quando a Polícia Federal prendeu pela primeira vez o “amigo Paulinho”, talvez pudesse ter evitado protegê-lo, considerando até mesmo “satisfatório” o acervo de patranhas que ele despejou sobre a CPI antes de decidir colaborar com a Viúva.
Se a doutora Dilma quiser criar um gabinete de crise necessário e eficaz, poderia começar a cuidar do aumento das tarifas de ônibus em São Paulo. Não é para já, mas está na agenda.
Em 2013, o prefeito Fernando Haddad baixou o aumento e foi para Paris acompanhando o governador Geraldo Alckmin. Juntos, cantaram “Trem das onze” num evento. As manifestações contra a nova tarifa, que haviam começado mornas, viraram o que viraram.
O TAMANHO DE PRESTES
Está nas livraria “Prestes — Um revolucionário entre dois mundos”, do historiador Daniel Aarão Reis. A vida do chefe comunista, que morreu em 1990, aos 92 anos, mistura-se com a história do século XX, da esquerda e até mesmo com a da anarquia militar do período. Aarão Reis lidou com essas dimensões e mais a história pessoal às vezes trágica e amarga de um estoico. Pesquisou arquivos russos, entrevistou dezenas de pessoas e compôs um grande retrato do comandante do PCB. Prestes foi um chefe maior que seu partido. Encolheu com ele, encolhendo-o. Ao final, extinguiram-se tanto sua liderança como a importância da organização.
“Prestes” passa longe da mitologia do “Cavaleiro da Esperança”. É uma biografia elegante e arduamente trabalhada. Ela acrescenta informações à vida de Olga Benário, mãe de sua primeira filha, entregue por Vargas à polícia nazista. Quando Olga veio para o Brasil era casada com um russo e tinha um filho na União Soviética. Graças a uma gravação de uma reunião do PCB, ocorrida em Praga, Aarão Reis mostra que em 1979 o debate dos “capa-pretas” estava contaminado por uma denúncia de tráfico internacional de drogas.
Aarão Reis juntou a esse cenário a vida familiar de Prestes, que teve sete filhos com sua segunda mulher, Maria, um grande personagem. A clandestinidade obrigava as crianças a chamá-lo de “Tio”. Quatro delas montaram em Moscou o quarteto musical “Saci-Pererê”.
Prestes perdeu todas, em 1927, 1935, 1945 e 1964. Terminando-se o belo livro de Aarão Reis, fica uma pergunta: sem ditaduras, polícias e militares a persegui-lo, de que tamanho ele ficaria?
DIÁRIO DE MÁRCIO
Como o advogado Márcio Thomaz Bastos fixou a abertura do diário que manteve durante o tempo em que foi ministro da Justiça, para 50 anos depois de sua morte, o comissariado pode pôr um teto na sua expectativa de vida tranquila:
Lula, 119 anos; José Dirceu, 118 anos; Antonio Palocci, 104 anos.
O poderoso Oxalá fez com que Márcio, um defensor das cotas raciais, morresse no dia da Consciência Negra.
MILAGRE
Com jeito de quem não quer nada, a doutora Dilma congelou o projeto do Trem Bala, estimulado durante o governo de Nosso Guia. Antes que o BNDES mostrasse que a primeira proposta era fantasia em estado puro, a ideia chegou a encantá-la.
Se a coisa tivesse andado, acabaria num escândalo bilionário, parecido com o da Petrobras. Custaria no mínimo R$ 35 bilhões e já custou perto de R$ 70 milhões com nuvens, papéis e burocracia. Em benefício das grandes empreiteiras, foram elas quem pisaram no freio.
O primeiro comissário encarregado do projeto, José Francisco das Neves, ou “Doutor Juquinha”, passou alguns dias na cadeia em 2012, por conta de outros malfeitos.
TORCIDA
Há uma forte torcida para que a lista dos parlamentares apanhados pelo Ministério Público seja divulgada antes da eleição para a mesas da Câmara e do Senado.
Se for possível, o ministro Teori Zavascki poderá apressar o serviço, evitando a desmoralização do Congresso. Apesar disso, seria injusto cobrá-lo, pois lá não há bobos. Os congressistas podem não saber quem está na lista, mas sabem quem deveria estar.
Elio Gaspari é jornalista


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/um-projeto-de-extorsao-contra-patuleia-14637777#ixzz3Jtz5HVz2 
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As cruzes do gabarito

JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
15 Novembro 2014 | 16h 00

Somos um povo cansado de responder. A educação só liberta quem aprende a perguntar

WILTON JUNIOR/ESTADÃO
Na praia. Folclore dos atrasos ofusca os milhões que cumpriram o horário
Passados os momentos de ansiedade do Exame Nacional do Ensino Médio - Enem 2014 - já é hora de uma primeira reflexão sobre esse momento decisivo na vida de milhões de jovens brasileiros. De modo geral, no noticiário os aspectos folclóricos e irrelevantes do acontecimento prevaleceram sobre as questões substantivas com ele relacionadas. Muito destaque se deu para os que se atrasaram e perderam o exame, o destino adiado e talvez interrompido. Nenhum destaque, porém, para a imensa maioria que zelosamente incluiu no roteiro de sua preparação o cuidado com a serenidade do espírito e a prudência com a questão dos horários. Não temos nenhum apreço pelos cumpridores do dever, pelos que se esforçam para executar pontualmente e completamente as obrigações que a todos cabem na trajetória da vida. Não temos nenhuma admiração pelos que se devotam a seus compromissos como missão, como dever de cada um para com o destino de todos e não só com o interesse próprio. É disso que se trata quando nos submetemos às provas que nos habilitam a dar o passo seguinte em direção ao mundo responsável dos adultos. 
Rimos dos que se perdem no caminho ou dos que se deixam ficar, o que só por acaso não ocorreu com os vitoriosos. Heróis do acaso, gostamos de ter pena e até precisamos de vítimas das adversidades para nos justificarmos quanto ao menos que fizemos em relação ao muito que poderíamos ter feito. Fazemos do fracasso alheio o prazer do nosso triunfo relativo. Daí a descabida importância das cenas de jovens correndo para atravessar o portão que se fecha ou se dependurar na cerca intransponível que se ergue em seu caminho. Estão entre os sem sorte na multidão dos supostos sortudos, os que chegaram em tempo para fazer a prova, para completar a travessia da escola média, até mesmo para ingressar numa escola de terceiro grau ou numa escola superior ou, quem sabe, na universidade. 
No entanto, entre os que atravessaram em tempo essa barreira física e simbólica, há histórias épicas que desconhecemos e pelas quais não nos interessamos. Podemos adivinhá-las nos flagrantes cheios de significados das muitas imagens que ilustraram a saga daqueles cujas faces e cujos gestos ficaram nos instantâneos dos periódicos e da TV. São os examinandos de mais idade, cujas fotografias vimos e nos falam de biografias de esforço, de gente que não sucumbiu às tantas armadilhas da vida, às muitas adversidades, à demagogia dos discursos baratos contra o diploma, gente que não aceitou ficar para trás, gente que estudou trabalhando, que se privou dos pequenos e ilusórios prazeres de que dispôs quem desistiu, ou quem não insistiu, ou nem mesmo tentou. São os vários que em cadeiras de rodas atravessaram os portões dos lugares do exame empurrando-se corajosamente sobre as barreiras demarcatórias das grandes passagens da vida, os que não temeram pontes estreitas sobre largos abismos e as cruzaram. 
A predileção pelos episódios de fracasso não nos permitiu ver a beleza azul da esperança de milhões de jovens que não se renderam às tentações deste cenário de pessimismo, de desalento, de falta de perspectiva em que estamos mergulhados nestes tempos cinzentos de intenso calor e pouca perspectiva. A vida e o destino medidos e demarcados pelas quadrículas de um gabarito que diz quem passa e que diz quem fica, quem tem amanhã e quem tem apenas o ontem ou, quando muito, o hoje.
Os 2,5 milhões que se inscreveram e não vieram, os que partiram e não chegaram, o que quiseram dizer-nos ou, mais que tudo, dizer a si mesmos? Os que não atravessaram os muitos portões que em diferentes pontos do País se fecharam às 13h do horário de Brasília, conforme foi anunciado, horário que mais nos fala de poder do que de saber? O que nos dizem seu silêncio e sua ausência? Que estranho caminho é esse em que tantos se perdem, tantos ficam, tantos não passam? E os gabaritos de cruzinhas disfarçadas no preenchimento a lápis das quadrículas de respostas, que crucificam mais do que redimem do peso provisório da adolescência, que encolhem sonhos, que encerram esperanças? Que saber revelam as cruzes dos gabaritos, que saber escondem? Que calvário é esse atravessado no meio do caminho do começo da vida? O que sabem os que fazem as cruzes nas quadrículas certas? O que sabem os que as fazem nas erradas? Em quais se esconde o destino das novas gerações? E o Brasil, em que quadrícula está sua cruz? Em que dissertação está sua voz? Que Brasil é esse que passa na prova? Que Brasil é esse que a prova reprova? Quem educará o educador? Somos um povo cansado de responder a uma escola que insiste em não nos ensinar a construir a poesia da pergunta. A educação só liberta quem aprende a perguntar. 
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José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto)