domingo, 13 de julho de 2014

Maus perdedores - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O GLOBO - 13/07


Sete a um e você via que os alemães não fizeram mais por constrangimento


Quando eu era estudante nos Estados Unidos, numa distante década do século passado, tive um excelente professor de Ciência Política, dr. William Bruce Storm. Ficamos amigos e de vez em quando eu ia a seu escritório no campus, onde batíamos papo e ele sempre me ensinava alguma coisa, nem sempre de política. Até hoje, por exemplo, sou um cachimbólogo razoável, porque ele me fez algumas fantásticas palestras sobre cachimbos, que ele pitava sem cessar, inclusive nas aulas, bons tempos. Um dia ele se queixou de que o time de futebol americano da universidade tinha perdido outra vez, parecia que queria acumular uma derrota atrás da outra. Sem conhecer nada de futebol americano, mas querendo responder alguma coisa, comentei brilhantemente que esporte é assim mesmo, um dia se perde, no outro se ganha.

— Son — disse ele — show me a good loser, and I’ll show you a loser.

Botei esse inglês aí porque gosto me lembrar da cara e da voz dele, quando me falou isso, e para quem souber inglês e quiser citar o original. A tradução é “Filho, me mostre um bom perdedor e eu lhe mostrarei um perdedor.” Sofridíssimo torcedor do Vitória, o mais antigo clube de futebol da Bahia e o último a ganhar um campeonato estadual, eu cansei de me prometer, sem nunca conseguir, parar de esbravejar, discutir e até romper com amigos, quando, na decisão e jogando pelo empate, o Vitória fazia um a zero e a gente já começava a comemorar, só que Carlito, um idolatrado centroavante do Bahia, fazia um gol de bunda e outro de joelho, nos últimos 15 minutos do jogo, e o Bahia mais uma vez levava a taça. Tenho sempre que recorrer à lição do professor Storm, para resignar-me à minha condição de péssimo perdedor, que sempre fui.

Claro que, a esta altura, eu não devia mais estar falando sobre a Copa (cartas de reclamação para o editor, por misericórdia). Todo mundo já falou e escreveu tudo sobre a Copa e agora os assuntos são outros, além de eu não entender de futebol e perder todas as discussões no boteco. Mas ainda escrevo sem saber o resultado do jogo de ontem (ontem, sábado, mas não para mim, que escrevo antes) e que pode ter sido outra vergonheira, além de, naturalmente, não ter visto o jogo de daqui a pouco, no qual sou Alemanha, não por qualquer animosidade contra os argentinos, mas em homenagem a meu neto alemão. Ele ainda é bebê, mas vocês precisam ver como chora bem em alemão, é um povo muito adiantado. E — nunca se sabe do futuro — pode ser o primeiro passo para a Alemanha aceitar a imigração de um avô de alemão.

Além disso, há os amigos. Não tenho ido a Itaparica recentemente e, como se diz hoje em dia e creio que é mais chique, não tive participação presencial na repercussão do enxovalhamento de nossas cores realizado no Mineirão. Mas Zecamunista me telefonou.

— Sibéria! — gritou ele — Sibéria! Nos tempos gloriosos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, você sabe muito bem o que acontecia, não sabe? Aquele time soviético que tomou dois a zero do Brasil na Suécia, depois que o famoso cérebro eletrônico deles previu vitória para eles, aquele time, com técnico, massagista e tudo, foi mandado para a Sibéria com passagem só de ida! Foram todos ficar lá na Sibéria, no Baixo Curugustão ou na Alta Eslobóvia, com o rabo gelando pela eternidade e obrigados a ver o dia todo um filme com Garrincha passando e deixando quatro russos estatelados na lama! E isso foi dois a zero, não foi aquela ninhada de ratos do Mineirão, sete a um e você via que os alemães não fizeram mais por constrangimento, podia ser no mínimo uns dezesseis! Você viu, os alemães dançavam uma polcazinha leve até a área brasileira e um perguntava ao outro: Mein Kamaraden, focê quer fazer essa gol? Nein, nein, muita obrigadas, muito gentilische de seu parte, fá focê, por fafor. Ach, nein, enton deischa pro Karl, que ainda non fez a dele, fai lá Karl! No quarto gol, eu pensei que era replay, não dava nem para assimilar, botaram o Íbis em campo, de camisa amarela.

— Mas, Zeca, se bem me lembro, você costumava denunciar o futebol como um anestésico das massas e...

— Não misture as coisas! Isto é uma manobra manjada para desviar o centro da discussão, eu estou falando sobre uma catástrofe pública! Seu amigo Toinho Sabacu...

— Que é que houve com Toinho?

— Não houve nada, só que ele teve de reforçar os remédios para a pressão e ficou dois dias sem sair de casa, aqui muita gente passou mal e quiseram até jogar pedra na televisão de Manolo. Em vez de escrever as besteiras de costume, você devia botar no jornal um artigo sério contra a Lei da Palmada. Vai ver que foi por causa dela que a família Scolari degringolou. Se Felipão pudesse dar umas palmadas em seus meninos, uns puxõezinhos de orelha no vestiário ou meia dúzia de bolos, botar de cara para um canto da sala, mandar escrever duzentas vezes, com boa letra, “de agora em diante só vou chorar na cama”, essas coisas, talvez a hecatombe não tivesse acontecido, esses irresponsáveis em Brasília fazem as leis e não medem as consequências. Eu estive pensando e agora tenho certeza de que os brasileiros devem esquecer futebol e se concentrar naquilo em que nós somos bons. Você viu o inglês que dizem que faturou duzentos milhões, vendendo bilhetes desviados? Mas que pretensão, a desse inglês. Roubo de duzentos milhões aqui eu acho que nem sai do jornal, de tão fichinha, aqui é roubo municipal no interior, esse inglês não tem qualificação nem para uma deputança. Esqueçamos o passado, vêm aí as eleições, hora de escolher democraticamente o seu ladrão!

quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Brasil está mudando para melhor. Não dá para contestar isso.", por Ladislau Dowbor, no Blog do Zé Dirceu


Dowbor, que lutou contra a ditadura militar, mostra como a desigualdade social fez parte do modelo adotado pela ditadura e como o Brasil vem mudando.


Ladislau Dowbor, para o Blog do Zé Dirceu
Blog Zé Dirceu
A relação entre as transformações do Brasil nas últimas duas décadas e a luta para superarmos a herança nefasta de 21 anos de ditadura militar é o tema da entrevista concedida ao Blog do Zé pelo economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP.

Dowbor, dentre os mais atentos observadores e analistas da cena política e econômica brasileira, que não apenas viveu o período militar, mas lutou contra a ditadura, mostra como a desigualdade social e regional fizeram parte do modelo adotado pela ditadura militar. Destrincha o milagre econômico e aponta o que estava por trás da máxima daqueles anos “deixar o bolo crescer primeiro, para depois distribuir”.
 
No alto de sua experiência em consultoria para as Nações Unidas e outras entidades, além de diversas passagens pela máquina pública, tanto no Brasil como no exterior, Dowbor alerta para a inconsistência das análises econômicas que atualmente pululam na mídia. Didaticamente, ele mostra o caminho: “É preciso fazer a lição de casa”, ou seja, o trabalho do economista: procurar os números, analisar os dados, comparar, checar…
 
Em seu site, www.dowbor.org, vocês podem encontrar e baixar os trabalhos do professor Dowbor. São mais de trinta anos destinados à economia e ao esforço de traduzi-la para um conjunto cada vez maior de pessoas. Seu mais recente trabalho, “Os Mecanismos Econômicos” (confira a íntegra aqui), mostra exatamente como funciona o sistema econômico e porque interessa a alguns setores que esses mecanismos permaneçam desconhecidos pela maioria da população.
 
Acompanhem a entrevista:
 
Uma das coisas que exploraram e usaram de pretexto para dar o golpe é que a inflação do governo João Goulart, o Jango era altíssima. Depois, durante a Ditadura, em longos períodos, tivemos inflação altíssima…
 
[ Ladislau Dowbor ] Em seus trabalhos, o Celso Furtado deixou muito claro que a inflação é um mecanismo de transferência de recursos. De forma geral, dos pobres para os ricos. Mais especificamente, das pessoas que têm renda fixa para os que têm renda variada. Uma empresa cuja matéria prima teve seu preço aumentado, acaba aumentando seu preço de venda. Ela tem formas de acompanhar a evolução da inflação. Um banco, se passa a captar dinheiro com um preço mais alto, ele joga isso nos juros. Eles têm como repassar o processo inflacionário para a frente. Agora, quando a inflação bate no trabalhador, ele fica esperando o reajuste salarial. Só que ela é empurrada durante todo o mês. Então, quando ele recebe o pagamento, na semana seguinte, o salário já vale muito menos.
 
Os assalariados, os aposentados e os pequenos produtores, que não têm como passar o preço para frente acabam perdendo a capacidade de compra que é transferida para as elites. Em particular para os bancos que criaram todo um sistema de aplicações de alta rotatividade. Neste sistema, eles aplicam o montante que o depositante deixa no banco. Com isso, os correntistas estavam perdendo o seu dinheiro e os bancos não. Todo processo de inflação se constituiu na transferência de concentração da renda nas elites. É importante pensar a inflação assim, porque as pessoas dizem “os preços subiram”. Inflação não aparece, de repente. Alguém subiu os preços para ela existir. E são esses grupos que sobem os preços, em particular os mercados financeiros, que jogam com a inflação como uma forma deles conseguirem reforçar a concentração de renda.
 
Isso é tão enraizado na cultura das elites brasileiras que em 1993, com o Plano Real, quando se quebra a inflação, foi feito uma troca: os bancos pararam de ganhar o que vinham obtendo com a inflação e passam a ganhar com os juros com duas vertentes: com os juros comerciais e com a taxa Selic. Apresentar juros ao mês é uma desonestidade
 
Tão alta e constante elevação dos juros, chega a ser, então, uma desonestidade?
 
[ Dowbor ] No caso dos juros comerciais, as pessoas não se dão conta, até porque não conhecem os juros internacionais e do resto do mundo. Só para citar alguns exemplos. Houve um escândalo nos EUA porque eles estavam cobrando 16% de juros ao ano no cartão de crédito. No Brasil o índice é 238% ao ano. O juro é calculado ao ano. Apresentá-lo ao mês, como ocorre no Brasil, é uma desonestidade, porque você esconde que ele é cumulativo. A pessoa pensa “é só 3%”. Eu sou professor da PUC-SP. Ela me paga no Santander e o cheque especial aqui no Brasil é de 160% ao ano. Agora, lá na Espanha, o correntista do Santander tem o direito de entrar no cheque especial até 5 mil euros, por seis meses e com juros zero. Isso é lógico. Como as pessoas deixam ali um dinheiro não aplicado – mas que o banco aplica – se o correntista entrar um pouco no vermelho, as coisas se equilibram. Existe uma lei para isso.
 
De certa maneira, o processo de concentração de renda nas mãos das elites (dos rentistas, principalmente aplicadores financeiros de diversos tipos), garantida pelo sistema da inflação, acentuada em 1964, se manteve por meio do sistema dos juros dos bancos comerciais a partir de 1993, quando entra o Plano Real. Basicamente hoje isso está na faixa de 60% ao ano para pessoa jurídica e 110% ao ano para pessoa física. A média do que se paga aqui no Brasil ao mês é o que se paga no resto do mundo ao ano. Em outras palavras, temos uma gigantesca transferência de recursos dos produtores, dos assalariados, das empresas produtoras para os intermediários financeiros, os rentistas.
 
E via a alta taxa SELIC?
 
[ Dowbor ] A outra via dessa transferência, além dos bancos comerciais, é a SELIC. Quando o Lula assume em 2003, a taxa SELIC estava a 24,5%, risco zero e liquidez total. Eu coloco a minha poupança no banco, ele usa esse dinheiro e me paga 8% ao ano. Mas, ele pega esse dinheiro e compra títulos do governo. O governo está pagando ao banco 24,5%, risco zero. No governo FHC a SELIC chegou a 46% ao ano. Mas, de onde o governo tira esses 24,5% para pagar? Ele tira dos impostos. Da minha aplicação, o banco me paga 8% ao ano, mas tira 24,5% do governo. Isso é uma transferência de renda que funciona atualmente, chegando à ordem de R$ 150 bi/ano transferido dos nossos impostos para pagar os bancos.
 
Ladislau Dowbor3
 
Eles acabaram com a CPMF que era um imposto razoável e eram os bancos que pagavam, porque eles fazem as transações financeiras, os demais pagavam pouco. Acabar com a CPMF foi uma forma de absolver os bancos dos impostos que chegava a R$ 60 bi. A SELIC chega a R$ 150 bi ao ano, é dinheiro dos nossos impostos transferido para os intermediários financeiros. Além disto, cobram juros exorbitantes, basicamente a mesma taxa ao mês que no mundo se paga ao ano. A isto temos de acrescentar os crediários comerciais, com os juros que eles obram, tipicamente de 100%. Pensem no exemplo das que têm dedicação total a nós. Tipicamente, um fogão que sai a R$ 200,00 da fábrica, eles vão pagar 40% de imposto, e vão ganhar bem mesmo vendendo à vista, cobrando por exemplo R$ 420 a vista. A prazo sai R$ 820,00. O consumidor está pagando $820,00 por um fogão que sai a R$ 200,00 da fábrica. É na venda a prazo, com juros exorbitantes, que se faz realmente o lucro. É mais uma atividade de intermediação financeira do que prestação de serviços comerciais.
 
Existe uma máquina de intermediários que drena as capacidades produtivas, tanto por reduzir a capacidade de investimentos dos produtores, como de obtenção por parte da população. Esse era o sistema contra o qual o João Goulart queria tomar medidas – estava em suas propostas de reformas de base. Foi o sistema que a ditadura militar reforçou mantendo a inflação e é o sistema que continua no tripé juros dos bancos / juros dos crediários / e taxa SELIC. Você pode me perguntar, mas por que esse negócio funciona? Funciona por uma razão muito simples: porque ninguém entende o sistema financeiro. Tanto isso é verdade que o Joseph Stiglitz, que foi economista-chefe do Banco Mundial, ganhou um prêmio Nobel porque ele mostrou como funciona. Mostrou esses mecanismos com base na assimetria da informação.
 
Vamos supor que você tenha um dinheiro e queira fazer uma aplicação. Você chega no banco e vai perguntar para o gerente de crédito no que deve aplicar. No final das contas, vai acabar fazendo o que ele achar. Você não acha nada.
Com Lula, o Brasil dá uma guinada
 
No regime militar, havia arrocho salarial e a máxima “o bolo precisa aumentar para depois dividir”. A partir do governo Lula, com o aumento dos salários acima da inflação, especialmente do salário mínimo – política consagrada por aquele governo – houve uma mudança?
 
[ Dowbor ] A partir do governo Lula, pela primeira vez, o Brasil teve uma guinada. O conceito de arrocho salarial está baseado em uma visão de economia que não se aplica mais. Todos os avanços tecnológicos na área produtiva hoje se baseiam no pouco que tivemos de investimentos nas áreas sociais. Quando uma empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, esse rapaz representa 25 anos de investimento social. É uma pessoa que vai ajudar o país a desenvolver atividades sofisticadas. Se não tivermos esse investimento no homem – no conjunto de setores que tornam a pessoa efetivamente capaz de produção – nenhuma área funciona e você não tem bolo nenhum. Nós aumentamos a capacidade produtiva e vimos o tamanho do déficit no social, porque não se investiu de maneira equilibrada nos processos produtivos diretos. Ou seja, no vetor que faz funcionar o conjunto da máquina produtiva – os trabalhadores, as pessoas.
 
Nós tivemos uma modificação profunda a partir do governo Lula. Isso é discutido pelo Guido Mantega e por toda a equipe econômica. E a mudança não é só no Brasil, em termos de teoria economica. Estou falando também do Amartya Seen (Nobel de Economia em 1998), no conjunto da teoria econômica das Nações Unidas. Não é fazer o bolo e distribuir. Mas, primeiro, distribuir para poder fazer o bolo.
 
Nada gera mais capacidade produtiva do que investir nas pessoas
 
Fazer distribuindo?
 
 
[ Dowbor ] Mais do que isso. Há um relatório da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL, da ONU), de primeira linha, A Hora da Igualdade , que hoje orienta nosso continente. Ele mostra que os países que investiram nas pessoas, na educação, na saúde, na cultura etc, foram os que mais se desenvolveram e não o contrário. A explicação é que o mecanismo econômico que todos chamavam de “gasto do Estado” nas pessoas é, na verdade, investimento. Investimento no homem, no trabalhador.
Nada gera mais capacidade produtiva do que investir nas pessoas. O Japão, a Coreia, a China seguiram esse caminho. Existe um filme muito interessante chamado Os Caminhos da Escola, de 50 minutos, sobre o sistema educacional de Xangai. Lá, existe um professor para cada dez alunos. Eu visitei a China várias vezes. Agora, pergunta: o que é para uma professora aqui no Brasil tentar manter 40 moleques quietos numa sala de aula? Você tem um outro conceito, outro nível de importância para a educação lá.
 
O que significou o milagre econômico, na prática?

Dowbor ] Essa ideia de “crescer” do período da ditadura casava muito bem com os interesses da elite de abocanhar mais dinheiro, mas não fechava o ciclo. A produção como um investimento nas pessoas faz parte de um circulo completo, porque sem esse investimento não se aumenta a produtividade.
 
O resultado é que você teve um milagre econômico, mas basicamente de multinacionais que vieram aqui produzir para as elites. O que se produzia na época? Automóvel, televisão, geladeira. Os apartamentos para a classe média e a classe média alta. Isso casava bem com o que foi o regime militar. A concentração de renda era necessária para eles para expandir o mercado, porque eles trouxeram para um país pobre produtos que eram generalizados nos Estados Unidos. Só que esses produtos não estavam dentro da capacidade de compra dos mais pobres. A maneira de você expandir o mercado para bens relativamente sofisticados era concentrar a renda. Daí que se aumentou essa bolha de classe média e, até hoje, a gente se sente nela. Mas, isso reforçou a elitização e quando se preencheu a bolha de prosperidade, todo o sistema caiu de novo.
 
Ladislau Dowbor2
 
O sistema só foi retomado, efetivamente, a partir do governo Lula. O povo fala do Bolsa Família, mas muito mais importante foi o aumento sistemático do salário mínimo. Nós tivemos em 10 anos, um aumento de compra efetiva da ordem de 60%. Isso é gigantesco para quem está lá embaixo. Um pouco de dinheiro embaixo gera muita transformação. Esse mesmo dinheiro em cima não muda nada. O fato do dinheiro ser muito mais produtivo quando vai para a base da sociedade é uma clareza desse processo que tivemos apenas nos últimos 10 a 15 anos.
 
O Joseph Stiglitz (o Prêmio Nobel de quem ele falou acima) disse sobre o Brasil: “não só fizeram, mas mostraram que dá certo”. Saiu recentemente um estudo de indicadores de progresso social, da Universidade de Havard, que não é nada de esquerda, mostrando os avanços do Brasil. Na realidade, não tem muito mistério. Você amplia a base, faz uma pirâmide de base muito mais ampla, gera um mercado muito mais amplo, aumenta a escala de produção, de custos unitários e gera uma dinâmica de crescimento com mercado interno, inclusão social e impactos concretos.
 
Falas como essa do Stiglitz e tantas outras acabam não ganhando o devido destaque. Onde as pessoas podem procurar informações?
 
[ Dowbor ] Nós temos agora uma pesquisa de fundo realizada em 2013, o Atlas Brasil 2013, que trabalhou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de todos os 5.565 municípios brasileiros (confira a íntegra). A pesquisa tem uma escala inter-institucional que não permite maquiagem de cifras. Ela é das Nações Unidas, IBGE, IPEA e Fundação João Pinheiros de Minas Gerais. Todos esses órgãos se associaram, participaram do seu levantamento. Eu participei de reuniões nesse processo e garanto que, pela primeira vez, nós temos uma imagem correta de IDH agora. E, até para que ninguém venha dizer que são cifras do PT ou qualquer bobagem do gênero.
 
A gente pegou como intervalo de análise 20 anos – entre 1991 e 2010 – e os dados são impressionantes. Em 1991, nós tínhamos 85% dos municípios brasileiros classificados com IDH muito baixo. Isso significa, abaixo de 0,50. Uma situação catastrófica em 85% dos municípios brasileiros. Em 2010, são apenas 32 municípios nesta situação, ou seja, 0,6% da totalidade.
dados: Atlas Brasil 2013





 
Nesses 20 anos, o aumento de esperança de vida foi de 9 anos. Isso é gigantesco. Passamos de uma média de 65 anos de esperança de vida (em 1991) para 74 anos. Isso significa que o Brasil, o brasileiro, em duas décadas, ganhou 9 anos. Qualquer um que disser que o país está em crise está falando uma besteira monumental de quem não fez lição de casa. Ou seja, simplesmente, não viu os números.
 
Vários outros indicadores provam a melhora. Por exemplo, a população brasileira de 18 a 20 anos, com curso secundário completo, passou de 13% para 41%. Isso também é gigantesco. Claro que ainda é muito pouco, mas o ponto de partida era dramaticamente baixo. É bom lembrar que a ditadura não investiu na área humana. Estamos pagando o preço disso até hoje. O avanço educacional e de esperança de vida, só para citar exemplos, indicam um resultado de fatores aí, como aumento da cobertura do sistema de vacinas, saneamento, acesso a alimentação para as crianças etc. Essas coisas impactam.
 
A média de moeda estável de aumento da renda per capta familiar foi de R$ 346,00. Em uma família de 4 pessoas, isso significa ter mais R$ 1 mil por mês. Significa poder comer carne, ir ao cinema com as crianças. Isso tudo se soma com os números do governo. Foram tiradas da miséria 36 milhões de pessoas pelos vários programas sociais dos governos Lula e Dilma Rousseff.
 
Isso a partir de 2003, primeiro ano de governo Lula?
 
[ Dowbor ]  Sim, a partir de 2003, (esses programas) se aprofundaram muito. E eu digo isso com muita tranquilidade, porque a Ruth Cardoso (falecida esposa do presidente FHC), no tempo do governo de seu marido, pediu para eu dar uma assessoria naquilo que ela chamava de Comunidade Solidária. Dei, foi uma atividade não paga, algumas vezes por ano e eu não me fiz de rogado. Dei os conselhos que precisava dar para o interesse do país. Quando começa o governo Lula, nós tínhamos 60 milhões de pessoas – na ordem de grandeza, 1/3 da sua população – sem carteira de identidade, conta bancária, endereço postal. Enfim, 60 milhões de brasileiros não existiam para a administração pública.

Tanto que foram necessários dois anos para que o governo pudesse chegar até toda essa gente, identificando e cadastrando. Só nesse investimento do cadastro, foram incluídas 60 milhões de pessoas na cidadania. Em termos de Bolsa Família, isso é muito mais do que transferência do dinheiro, até porque o programa é condicionado a vacinas, educação etc.

Na realidade, a partir desse cadastro foi possível um conjunto de outros programas que passaram a se enraizar a partir deste conhecimento. Um exemplo é o Luz para Todos que levou eletricidade para quem ainda não tinha. Você puxou 60 milhões de excluídos e isso gerou uma base política muito forte que permitiu, inclusive, a reeleição do Lula e a eleição da Dilma. Até porque, por mais que as elites e a classe média gritem, por mais que a mídia distorça as coisas, a base da população se baseia no concreto, no bife que agora consegue comprar.
 
 
Avanço no Brasil é gigantesco
 
O avanço no Brasil é gigantesco. Eu me irrito um pouco como as pessoas pensam o Bolsa Família. Ou não estão fazendo a lição de casa ou estão de má fé. O aumento do salário mínimo atinge cerca de 26 milhões de trabalhadores, permitindo efetivamente aumentar o poder de compra e cerca de 18 milhões de aposentados. O Bolsa Família atinge cerca de 50 milhões de pessoas. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) passou dos ridículos R$ 2,5 bi para cerca de R$ 15 bi o orçamento do financiamento. Pela primeira vez, o pequeno produtor começou a poder investir, a se desenvolver. São cerca de 2 milhões de famílias. É muita gente. Há outros programas da maior expressão, como o Territórios da Cidadania e o ProUni, que permite o acesso à universidade para cerca de 1 milhão de moleques que não tinham esperança alguma de entrar na universidade e outros.
 
O avanço se explica por um mecanismo que não é a bolha de prosperidade classe média/elites, como era na época da ditadura, mas um embasamento do conjunto da máquina econômica, da sociedade em geral. Essa rearticulação não é só puxar os pobres para cima, mas também reduzir as distâncias regionais, as distâncias raciais, as distâncias de remuneração entre os gêneros que continua sendo precária – a mulher ganha mais ou menos 70% em média do salário de um homem para fazer a mesma atividade.
 
Uma coisa interessante de se dizer é que como a gente pegou nessa pesquisa do Atlas Brasil 2013, os anos de 1991 a 2010, apareceram as cifras do governo FHC e neles houve fortes progressos também. Esses progressos se devem, essencialmente, ao Plano Real. A inflação era uma punção tão forte na capacidade de compra da sociedade em geral, que o Plano Real fez com que a década fosse muito positiva. O que aconteceu com o governo Lula é que passou a existir uma sistemática, uma política de Estado de inclusão que gerou emprego e aí a coisa adquiriu um ritmo forte. Se olharmos duas décadas de Brasil fica claro: o país está mudando e para melhor. Não dá para contestar isso, a não ser por motivações políticas ou interesses específicos.
 
Na sua visão, como se explica então esses ataques contra o país?
 
[ Dowbor ] Respondo com o meu exemplo. Eu fiz a lição de casa. Peguei os números no Ministério do Desenvolvimento Social. Os números estão ali, online, qualquer um poderia, qualquer jornalista com um mínimo de consciência pode fazer e ver como estão os projetos, seu andamento, a atualização física, financeira. No site do Ministério há os contatos para quem tiver dúvidas. Isso dá para fazer. São 149 projetos. Eu fiz esse tipo de avaliação durante muitos anos para as Nações Unidas e sei o que são cifras reais e o que é maquiagem. Até porque os números têm de bater. Eu não tenho dúvida: o movimento gerado no Brasil é muito forte. Só cego não vê.
 
Eu pego e analiso os indicadores – Atlas Brasil 2013, PNADs, sínteses de indicadores sociais do IBGE, e os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, um documento magistral que o IBGE vem produzindo.O Joseph Stiglizt, que não é um cara desinformado, está dizendo “está dando certo”. Michael Porter (professor de Havard) e o pessoal da Universidade de Havard também dizem “está dando certo”.
 
Esse imenso ataque que estão fazendo, em parte, é por desinformação. Mas, em grande parte, ele é feito por uma elite que quer resgatar os tempos de antigamente. Por que aparece de volta uma Marcha da Família? A saudade dos militares? “Eu era feliz e não sabia”? Além disso, a classe média tem força e essa mídia que, no Brasil, pertence basicamente a quatro famílias tem como perturbar e travar um processo de progresso que se constata.
 
Quais as heranças da ditadura?
 
[ Dowbor ] Uma das principais é que nas últimas décadas nós tivemos deslocamentos profundos. O tipo de concentração de renda que as multinacionais exigiam aqui no Brasil foi somente com o regime militar. Essa herança da desigualdade permanece e isso apesar de uma década de uma política sistemática de Estado, de se puxar o pessoal de baixo para cima, de fazer inclusão produtiva, social etc. Nós continuamos sendo um dos 10 países mais desiguais do mundo. Nós temos muito caminho ainda de inclusão, apesar de sentir-se que para as elites e a classe média, nesse quesito, já deu, já chegamos ao máximo. elas dizem: “Oh, meu Deus, essa gente está chegando e invadindo a nossa praia…”
 
Agora, quando nós pensamos nas multinacionais lembramos do setor automobilístico etc. Com razão, mas a gente esquece o campo. A guerra das commodities pelos grãos no planeta é muito forte. O Brasil tem uma das maiores extensões de terra agricultáveis parada e com água, o que hoje é chamado de ouro azul. Contra a reforma agrária se gerou tudo. O presidente João Goulart, o Jango, estava propondo um mínimo de reforma agrária. Francamente, o agricultor não ter acesso em um país que tem por baixo 160 milhões de hectares de terra agrícola parada é um absurdo.
 
E o que é hoje a bancada ruralista? Ela é um sistema interligado com os grandes tradersinternacionais – como Bunge, Cargilletc – que trabalham para a exportação e pagam muito pouco imposto. Não há imposto para comprar terra no Brasil. É uma baba comprar em grandes quantidades e o imposto territorial é uma piada. Se você comprar no exterior vê a abissal diferença… Na Europa por exemplo, se você tiver uma terra que não usa, o imposto é de um tamanho tal que ou você vende ou produz. Por que isso é importante? Com o massacre das Ligas Camponesas e a liberação geral dos jagunços no interior, ou seja, com a generalização da violência no campo, você forçou violentamente a expulsão do homem do campo. Isso gerou essa massa de miseráveis nas cidades que temos de enfrentar até hoje. São Paulo, Recife etc. Foram pessoas expulsas do campo que migraram para cidades controladas pela direita na época, onde só se investia nas classes média e nas elites.Cidades que incharam, não é que cresceram.
 
Agora, estamos em 2014. Você vai nas periferias e nas favelas e vê como as pessoas ainda vivem. Está sendo feito todo um trabalho. Foi criado o Ministério das Cidades no governo Lula, mas o que temos é ainda um imenso atraso. Nós somos um país com 85% de população urbana. Nos anos 50, nós tínhamos 2/3 de nossa população na área rural. Há poucos exemplos no mundo de êxodo rural por expulsão do campo tão profundo e tão violento – porque foi muito mais expulsão do que por atração das cidades. Essa é outra herança da ditadura.
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Agora, esse processo de urbanização e criação de periferias miseráveis em torno das cidades é extremamente difícil de mudar, porque se enraízam estruturas de poder. Como a indústria das drogas. O que aconteceu na realidade? Você jogou o rico e o pobre e os aproximou compulsoriamente. Você tem uma reação dos ricos hoje. Eles constroem suas ilhas, seus Alfavilles (um dos mais estritos e luxuosos bairros-condomínios fechados de São Paulo), com controle e cercas elétricas, tal como os senhores feudais com seus castelos e sua ponte. Isso é patológico. É patológico, inclusive, para as crianças que nascem ali e têm medo do mundo. Não conhecem as coisas.
 
Heranças trágicas
Além do exôdo rural forçado, quais outras heranças você citaria da ditadura?
 
 
[ Dowbor ] Nós temos outra herança maldita que é esse peso dos juros, a taxa SELIC, o rentismo etc. que carregamos até hoje. E tem uma herança política trágica que é a Lei de 1997 que liberou o financiamento corporativo das campanhas eleitorais. A partir de 1997, com essa lei, as empresas podem colocar 2% do seu capital para financiar candidatos. Isso é trágico. Repito: 2% do capital, não do lucro. O que é muito dinheiro. Com o financiamento das corporações, você passa a ter uma bancada dos bancos, uma bancada dos ruralistas, uma bancada das grandes empreiteiras. Eu te pergunto: cadê a bancada do cidadão?
 
Está na nossa Constituição, “o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Corporação não é povo, a corporação é um instrumento econômico, legítimo, mas não é povo. Com essa lei, gerou-se uma grande dificuldade para você introduzir transformações no país, transformações extremamente fortes.
 
Além disso, tem uma dimensão que ninguém fala – imagino eu, por prudência – que é a dimensão do Judiciário. Quando a gente olha o Judiciário, por exemplo, a imensa expulsão de pequenos produtores durante o governo militar, com os juízes regionais que em geral são das famílias dos grandes proprietários dali, gerou-se uma grilagem generealizada e legalizada. Todo sistema de cartórios, que levou a uma expropriação monumental, tem uma tradição de conluio do Judiciário com esses grandes interesses. Daí você ter juristas de alta relevância no país dizendo tranquilamente “a ‘revolução’ gera sua própria legalidade”. Ou seja, você faz o que quer e declara o que é legal. Francamente…
 
Sem falar que a revolução a qual eles se referem é o golpe de 64…
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[ Dowbor ] Não é possível falar de revolução sendo que o golpe que o que o golpe fez foi assegurar a continuidade de reforços em relação às elites. O sentido do golpe é o de manter e aprofundar os privilégios e os desequilíbrios na base da força e do porrete. A classe média é sempre muito barulhenta. Ela fica histérica. É curioso o tipo de bobagens que se escuta e se lê. A gente estuda isso em outro plano, que é a formação das pessoas, das visões sobre economia, sobre a política. Quando se trata de proteger privilégios, a tendência das pessoas é trancar completamente a cabeça e raciocinar com o fígado.
 
Todos esses dados que mencionei e outros que estão aí que atestam os avanços, quando você vai mostrar, tudo isso não passa. As pessoas estão buscando argumentos para dizer “não, isso não pode ser verdade”, “é tudo maquiagem”. As pessoas se crispam na defesa dos seus privilégios. Há um economista francês, muito interessante, o Delavoye, que afirma ser muito mais fácil tirar o necessário do pobre, do que o supérfluo do rico. Essa é a tensão que a gente enfrenta.
 
A ditadura teve grandes escândalos, mas o que ouvimos sempre é que não havia corrupção naquele tempo, ou que depois dela, na redemocratização, na democracia, foi muito maior. Por que isso?
 
[ Dowbor ] Dizer que há mais corrupção agora do que em outros tempos é, simplesmente, uma bobagem. Quando você tem um regime de exceção no qual você não pode denunciar, não pode falar as coisas, tudo fica enrustido. E, quando as coisas ficam menos visíveis, uma série de gente gosta de dizer “não, nós somos melhores”. Veja bem, foi o governo Dilma que criou em 2012, a Lei da Transparência. Uma Lei que obriga todos a produzirem e divulgarem os seus dados.

 
Agora, a Lei da Transparência vale para o setor público. Nós não temos uma Lei da Transparência para o setor privado. Quando você fala em corrupção, as pessoas pensam em política e em políticos. Ninguém raciocina que você não tem corrupção do político sem que ele receba dinheiro de alguém. Não existe apenas metade da laranja. Eu publiquei um livro agora, pela Fundação Perseu Abramo, chamado “Os Estranhos Caminhos do Nosso Dinheiro” (confira aqui a íntegra) no qual eu analiso como os mecanismos de corrupção funcionam no Brasil e no plano internacional.
 
No livro você detalha esse funcionamento também no plano internacional?
 
 
[ Dowbor ] Sim, porque com a crise, a partir de 2008, as fraudes dos grandes grupos financeiros foram tão monumentais que, em diversos países, foram feitos esforços muito grandes para puxar os números e descobrir o que estava acontecendo. A crise desabou em cima da gente. Na época, inclusive, o (banco) Lehman Brothers estava classificado pelos índices de cotação das agências de risco como o Triplo A, ou seja, o máximo.
 
 
Por isso, o Zé Dirceu escrevia que essas agências não tem mais a menor legitimidade, porque dentre outras razões, elas não previram, nem denunciaram aquilo, aquela iminente quebra…
As pessoas não sabem que essas empresas (agências de risco) são pagas pelas pessoas que elas auditam. E são apenas três.
 
As agências de risco?
Ladislau Dowbor4
 
[ Dowbor ] Sim. Não são agências públicas, não é coisa pública. Elas são pagas pelo serviço. O que faziam, por exemplo, com a Enron antes da Lehman Brothers? A equipe de auditoria ia lá para ver os números, sentavam com os contadores da empresa, aconselhavam “olha, melhora isso assim, aquilo assado”. Eles ganhavam como consultores. Aí, depois, voltavam para a empresa para fazer a auditoria.
 
Com a crise, gerou-se um grande pânico e as cifras vieram à tona. Saíram coisas muito interessantes. Por exemplo, os números dos paraísos fiscais. O PIB mundial hoje é de US$ 70 trilhões. Mas, segundo a principal pesquisa, da Tax Justice Network, dirigida pelo James Henry, ex-economista da McKinsey (uma grande empresa), nesses paraísos fiscais existe entre US$ 21 trilhões a US$ 30 trilhões. E a estimativa é que o Brasil teria cerca de US$ 520 bilhões – quase R$ 1 trilhão. O PIB do Brasil é R$ 4 trilhões, ou seja, estamos falando de 25% do PIB brasileiro desviado para paraísos fiscais. Isso acontece por evasão fiscal, corrupção, o que você quiser. Os diversos caminhos de desvio dos recursos da sua utilidade social e da sua legitimidade são avassaladores.

E os mecanismos de desvios e fraudes aqui no Brasil são semelhantes aos utilizados internacionalmente?

[ Dowbor ] São muito semelhantes, mas com algumas diferenças. Por exemplo, os desvios de dinheiro através dos sistemas bancários na Europa e nos Estados Unidos se dão mais por alavancagem. No Brasil, mais por taxas de juros. A alavancagem é interessante. É bom explicar porque a maior parte das pessoas não sabem. Por exemplo, se eu tenho a minha poupança no banco e eles me pagam 8% sobre a minha poupança e aí se eles emprestam esse dinheiro a 20%, eles dizem “estou emprestando a 20%, mas tenho de pagar 8% ao dono deste capital”.


Banco ganha emprestando o dinheiro que não tem
 
Como a pessoa não retira esse dinheiro, o que os bancos fazem? Eles emprestam 20% desse dinheiro para um cliente; mais 20% do mesmo dinheiro para outro; mais 20% para outro e assim por diante. É isso que se chama alavancagem. Todos os bancos conhecem isso. Eu estudei na Suíça, onde se formam os banqueiros, e eles diziam que a principal forma do banco ganhar dinheiro não é emprestando dinheiro e ganhando com o spread entre o que custa para ele e o que ele empresta, o que seria no nosso exemplo 12%. Não. O banco ganha dinheiro emprestando o dinheiro que ele não tem (que é do cliente), com a alavancagem.
 
O Lehman Brothers, quando chegou a crise, tinha uma alavancagem de 31. Isso significa que ele tinha US$ 10 bilhões em caixa, mas havia emprestado US$ 310 bilhões. E se todos os clientes, de repente, inventam de buscar esse dinheiro? Aí eles diziam, “a gente empresta do Citbank”. O problema é que o Citbank estava fazendo a mesma coisa e o outro banco idem. E e por aí vai. Estou falando da alavancagem, mas existem outros mecanismos. O mercado de futuro, os derivativos que permitem aos bancos emitirem direitos de opção de compra sobre produtos, como se fossem moedas. Mas não são moedas, são apenas papéis que circulam. Eles são muito usados aqui. Para você ter uma ideia, o PIB mundial é de US$ 70 trilhoes e os derivativos emitidos pelos bancos já superam US$ 600 trilhões. É por isso que o pessoal da área econômica diz que é o rabo que abana o cachorro e não o contrário.
 
Os produtores, os trabalhadores, os empresários efetivamente produtivos, todos são prejudicados por esse sistema, porque ele gera apropriação pelos intermediários. Os traders e todos os sistemas financeiros que foram criados rompem qualquer lógica. Esse sistema, mundialmente aceito, de financeirização da economia é o principal vetor do refluxo da igualdade. Nesse sentido, um país como o Brasil está na contra-corrente, porque nós estamos aumentando a base da nossa igualdade.


Mas, se o governo, se a presidenta Dilma perder a eleição em outubro, não vem um retrocesso nessa usca pelo aumento da igualdade?
 
Sem dúvidas. Volta aquilo que havia anteriormente (antes dos governos do PT). Veja a guerra das elites na América Latina. Basta observar o que aconteceu na Venezuela, em Honduras, as tentativas no Chile, na Bolívia. Tirar o supérfluo dos ricos é complicado. Agora, há um conjunto de produtores sérios. O fato de se expandir o mercado externo melhorou muito, porque nós tivemos a criação de pequenas e médias empresas em uma quantidade impressionante. Gente que responde a novas demandas que estão aparecendo nas populações, que está comprando e gerando pequenas empresas.
 
É importante dizer que o PIB não mede de maneira adequada o resultado. O PIB não mede resultados, mas os esforços da economia. Mede, por exemplo, a velocidade da máquina, mas não o que se faz. Por exemplo, se eu faço educação, esse pessoal que hoje está entrando via ProUni vai se tornar produtivo daqui uns anos, não agora. Hoje, nós estamos no esforço (de fazer, mas…), o resultado vem lá na frente. O mesmo em relação às infraestruturas que estão sendo criadas e que vão gerar capacidades. Agora nós estamos fazendo o esforço, o resultado virá lá na frente. Isso não conta como investimento no PIB. Aí você escuta a gritaria de que o PIB é pequeno. Mas, ora, 2% a 3% de crescimento de PIB ao ano é razoável e você tem o menor desemprego da história. As pessoas não entendem isso.
 
A Maria Conceição Tavares (professora, economista, ex-deputada) acabou de publicar uma entrevista em que ela diz: “PIB, pibinho…? eu acredito nos clássicos, emprego, elevação de salário mínimo, inclusão da base social e investimentos” (vejam aqui a entrevista). A Conceição faz parte desse conjunto de economistas que hoje estão afluindo muito rapidamente. A coisa é bem diferente.








Créditos da foto: Blog Zé Dirceu



quarta-feira, 9 de julho de 2014

A INVASÃO URBANA COMO PRÁTICA POLÍTICA, no Aliás do Estadão


PABLO PEREIRA - O ESTADO DE S.PAULO
06 Julho 2014 | 02h 02

Professor de classe média, que lidera MTST, defende pressão popular para aumentar base do movimento e é criticado por cerco a imóveis em São Paulo

Ele fez curso de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), mora em casa própria, diz que vive do salário de professor e lidera invasões de terrenos urbanos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Guilherme Castro Boulos, de 32 anos, casado com uma sem-teto, dois filhos, nascido em uma família de classe média paulistana, se diz um marxista com a missão de acumular forças políticas para a revolução socialista. Para atingir sua meta, ele intensifica ações urbanas dos sem-teto e põe proprietários e mercado imobiliário em alerta.
Com base em sete Estados - mais de 50 mil famílias, 20 mil delas em São Paulo -, Boulos chefiou a pressão que durou sete dias na frente da Câmara Municipal da capital para abrir brecha no Plano Diretor e beneficiar uma dezena de assentamentos do MTST, entre eles o Copa do Povo, em Itaquera, na zona leste.
"Vitória, vitória!", gritava Boulos ao microfone no alto do carro de som diante da Câmara, convocando os sem-teto para o churrasco de comemoração após a votação da nova lei de planejamento urbano, que vai vigorar pelos próximos 16 anos. Quando o acampamento no Viaduto Jacareí terminou, estava aberta a porta para a tentativa do MTST de obter a posse de terrenos como o da Construtora Viver, na Rua Malmequer do Campo, que está coalhada de barracos de lona dos sem-teto desde o dia 2 de maio, a cerca de 4 quilômetros do Itaquerão. Ao descer do caminhão, Boulos quase não conseguiu andar. Cercado, foi abraçado e festejado pelos companheiros.
Criticado por usar a política de invasões de imóveis como forma de pressão, Boulos já foi chamado de "fascista à la Venezuela" pelo vereador Andrea Matarazzo (PSDB), em entrevista à Rádio Jovem Pan, durante a votação. Matarazzo disse que o movimento age "na base do coquetel molotov, da gritaria e da depredação".
Para o vereador Floriano Pesaro (PSDB), a atuação de Boulos no País é "inaceitável". Pesaro diz que já foi procurado por empresas preocupadas com as invasões em São Paulo. Ele ressalta que há 680 imóveis tomados à força na cidade, segundo a Polícia Militar. "É um absurdo o que o MTST está fazendo. Isso estimula as invasões e prejudica os investimentos", alega Pesaro, que estuda projeto para impedir que a Prefeitura use imóveis invadidos em programa de habitação, como ocorre com o Movimento dos Sem Terra (MST). Na Viver, ninguém comenta o caso. A ordem é o silêncio.
Para o vereador José Police Neto (PSD), acusado pelos sem-teto de tentar favorecer empreiteiras, o MTST "comemorou uma derrota" para não assumir que perdeu. "Ele não conseguiu o que queria, que era furar a fila", declara o vereador. "O que o Boulos está fazendo é negócio", diz Police.
Ex-militante estudantil do Partido Comunista Brasileiro (PCB), corintiano, ex-integrante da Gaviões da Fiel, torcedor da seleção de Felipão, Boulos se diz também um sem partido. A causa política imediata dele passa por dois espaços bem definidos.
O primeiro, assegurar a posse de áreas para o MTST construir moradias nas periferias de grandes cidades. A ferramenta para essa expansão é a mobilização dos sem-teto e de gente que mora de aluguel. De olho em terrenos para habitação popular, e usando o programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, como fonte de financiamento, Boulos repete nas cidades a prática de pressão que o MST exerceu no campo, principalmente a partir de 1994.
Com especialização em Psicologia pela USP, onde entrou em 2000, ele tem bem claro que seu segundo objetivo é bem mais ousado: acumular apoios de massas das periferias urbanas para uma revolução socialista, discurso encontrado também no ideário dos sem-terra.
Filho do médico infectologista Marcos Boulos, que não fala sobre ele a pedido do militante dos sem-teto, o ativista entrou no MTST em 2002, influenciado pelas técnicas de organização ensinadas por líderes como João Pedro Stedile e José Rainha, artífices de centenas de acampamentos de lona preta em estradas e fazendas que o MST escolheu para reforma agrária nas últimas duas décadas.
Na esteira do enfrentamento rural a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, o MTST foi criado em 1997. Desde então dá suporte para mobilização nas periferias das grandes cidades. Nasceu no auge da ação dos sem-terra, após o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em abril de 1996, que provocou a criação do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, entregue por FHC a Raul Jungmann, então presidente do Ibama, mais tarde, em 2003, eleito deputado pelo PPS. Boulos, a esta altura, vivia na militância estudantil. Primeiro, secundarista. Depois, na USP.
No ano da primeira eleição do presidente Lula (2002), a vizinha Argentina também passava por delicados momentos políticos e econômicos. E os sem-teto de Buenos Aires estavam em polvorosa. Em junho daquele ano, foram reprimidos pelo governo de Eduardo Duhalde.
Boulos estava em Buenos Aires estudando o assunto. Lá, conheceu piqueteiros do acampamento da ponte Pueyrredón, local da repressão governamental, na divisa da capital com Avellaneda, onde a polícia atacou e matou dois manifestantes, Darío Santillan e Maximiliano Kosteki. Três anos depois do crime, dois policiais, Alfredo Fanchiotti e Alejando Acosta, foram condenados à prisão perpétua pelos assassinatos.
Boulos acompanhou de perto esse episódio. E viu o trabalho de um grupo de psicanalistas argentinos que atendiam sobreviventes e a cerca de 30 manifestantes que ficaram feridos na desocupação da ponte. Ele recorda que foi entre os sem-teto portenhos que se decidiu pela psicanálise, influenciado pelo grupo de lacanianos seguidores de Enrique Pichón-Riviére, fundador do Instituto de Psicologia Social de Buenos Aires. De lá voltou ao Brasil, concluiu o curso superior por este viés, em 2006.
"Guilherme tem uma excelente capacidade de articulação e um discurso claro e objetivo", explica padre Jaime Clowe, religioso que apoia o MTST em São Paulo. "É um líder, um homem dedicado à causa, uma pessoa de vida simples, que merece ser apoiada", afirma Clowe. Morador do Jardim Ângela, o padre acompanha a operação de Boulos no MTST na região sul e periferia da capital há tempos. Para o religioso, que trabalha com os sem-teto do assentamento Nova Palestina, na região de M'Boi Mirim, onde "8 mil famílias estão acampadas desde novembro", a "questão da moradia no Brasil é urgente".
O padre acrescenta que as mobilizações são legítimas. Mas ele discorda de algumas práticas dos sem-teto. "Sou contra quando fecham estradas e ruas e atrapalham a vida de muita gente", declara. E conclui: "Mas esse jovem deve ser apoiado na luta", afirma.
Sozinho. A primeira experiência efetiva de Boulos com os sem-teto ocorreu em um acampamento Carlos Lamarca, em Osasco, invasão ocorrida em 2002, onde ele morou em barracos com os sem-teto. Hoje, morador do Campo Limpo e acumulando 12 anos de militância, Boulos costuma dizer que não faz nada sozinho. E rejeita o papel de herói ou de principal líder do movimento. Ele insiste que as decisões no MTST são tomadas sempre em colegiados. "Há outros companheiros de luta, coordenadores que deveriam ser procurados para entrevistas", responde, sustentando que, embora atue como porta-voz e negociador do movimento, é contra o que chama de "fulanização de lideranças".
Na quinta-feira, em audiência judicial no Fórum Regional de Itaquera, onde representava o MTST no acordo judicial com representantes da CDHU, governo federal, Secretaria da Habitação do Município e a Construtora Viver, dona da área do acampamento Copa do Povo, Boulos estava acompanhado por Maria das Dores, também da coordenação do MTST. Os dois já trabalharam juntos na ocupação urbana do Jardim Salete, em Taboão da Serra, que virou condomínio popular projetado para 930 apartamentos de dois e três dormitórios, com 54 m2 e 63 m2, e é usado como modelo de habitação pelo movimento via programa Minha Casa Minha Vida Entidades. O Jardim Salete foi o primeiro, mas o MTST já tem mais 921 unidades planejadas em ocupação em Santo André. / COLABOROU WILLIAM CASTANHO