06 de abril de 2014 | 2h 10
KENNETH SERBIN - O Estado de S.Paulo
As Forças Armadas vão investigar torturas e mortes ocorridas em sete instalações militares usadas para prender e interrogar presos políticos durante a ditadura (1964-1985). A decisão, divulgada na terça-feira, foi tomada após pedido da Comissão Nacional da Verdade. Enquanto os brasileiros refletiam, na semana que passou, sobre os 50 anos do golpe de 1964 e sobre os esforços das comissões da verdade para lançar uma nova luz sobre as atrocidades da ditadura militar, a imprensa americana revelava que a Agência Central de Inteligência (CIA) enganou os americanos quanto ao uso oficial da tortura depois dos ataques terroristas do 11 de Setembro.
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Segundo as conclusões de um relatório de 6.300 páginas elaborado pelo Comitê de Informações do Senado americano, a CIA ocultou detalhes da severidade de seus métodos e exagerou a importância dos planos terroristas e dos prisioneiros.
O relatório revelou ainda que a agência levou crédito por elementos cruciais da coleta de informações quando, na realidade, os suspeitos os revelaram antes de serem submetidos a tortura.
Embora as notícias da imprensa refletissem a tendência de alguns americanos de substituir o termo "tortura" por eufemismos como "técnicas avançadas de interrogatório", alguns dos detalhes que vazaram do relatório deixaram claro que a CIA cometeu o que muitos considerariam graves violações dos direitos humanos.
O jornal The Washington Post, por exemplo, descreveu o tratamento dispensado aos prisioneiros nos black sites, locais de detenção secretos, inclusive um deles no Afeganistão conhecido como o Salt Pit (poço de sal). Ali, os torturadores mergulhavam a cabeça de um indivíduo num tanque de água gelada por períodos prolongados, espancaram-no e bateram sua cabeça numa parede.
Outros prisioneiros foram submetidos a tortura com água fria. O relatório do Senado afirma que os médicos da CIA verificavam a temperatura dos presos para impedir que chegassem à hipotermia.
O presidente Barack Obama eliminou os locais de detenção secretos em 2009.
O emprego da tortura não proporcionou grandes avanços em matéria de coleta de informações, concluiu o relatório. O Post citou um funcionário a par do documento segundo o qual a CIA apresentou "reiteradamente" seu programa de interrogatórios "ao Departamento de Justiça e até ao Congresso como indispensável para obter informações específicas, que, de outro modo, não seria possível colher, e que permitiram aniquilar os planos terroristas e salvar milhares de vidas. Era verdade? A resposta é não".
As revelações provavelmente reacenderão o debate sobre a eficácia da tortura na eliminação do terrorismo e a moralidade dessa prática. Por enquanto, os adversários da tortura aparentemente ganharam um ponto fundamental para seu lado.
Os abusos descritos têm uma série de paralelos com as atitudes e práticas das forças de segurança da ditadura brasileira. É notório que o regime empregava em alguns casos médicos para verificar o estado de saúde dos presos submetidos a tortura para determinar, por exemplo, se haviam chegado ao limite. Manter a cabeça dos presos na água por longos períodos de tempo era uma prática comum.
Os torturadores do Brasil tiveram o apoio implícito dos líderes do regime até que o presidente Ernesto Geisel começou a reduzir o poder das forças de segurança, em 1974. Na época, o Congresso brasileiro não tinha nem o poder nem o desejo de investigar a tortura.
Somente agora - quase 30 anos depois do fim do regime - a Lei da Anistia talvez possa ser revista para permitir a punição dos torturadores. Pela primeira vez, o povo brasileiro é favorável a uma revisão da lei.
Por solicitação da Comissão Nacional da Verdade, as Forças Armadas do Brasil concordaram em investigar os abusos ocorridos em alguns dos locais de interrogatório mais ativos durante a ditadura. O ministro da Defesa, Celso Amorim, afirmou que o processo levará 30 dias - um período excessivamente curto para um assunto dessa gravidade.
Nos Estados Unidos, jamais foi criada uma comissão da verdade para investigar a conduta de militares nas várias guerras internas e externas em que o país se envolveu desde 1776, embora militares tenham sido condenados por atrocidades, inclusive assassinato.
Alguns cidadãos americanos pediram a instalação de uma comissão para investigar os abusos da era pós-11 de Setembro. A proposta teve pouca cobertura da imprensa e não recebeu grande impulso em termos políticos.
De acordo com essa tendência, e apesar dos fatos incriminadores contidos no relatório do Senado, é improvável que um funcionário da CIA seja punido pela prática da tortura.
Usando pareceres jurídicos secretos, o governo de George W. Bush (2001-2009) autorizou oficialmente o uso da tortura. Por isso, o relatório não investigou os motivos dos envolvidos nessa prática, e não recomendou nenhuma ação criminal ou administrativa contra eles.
Além disso, o Senado divulgará somente as "apurações, as conclusões e o resumo técnico do documento", afirmou no início de março a presidente do Comitê de Informações, senadora Dianne Feinstein. O grosso do relatório permanecerá secreto - em grande parte porque a própria CIA será encarregada de determinar os trechos a serem divulgados.
A questão que fica no ar tanto nos EUA quanto no Brasil é: alguém, em algum momento, irá para a cadeia pela prática da tortura política? / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
KENNETH SERBIN É DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO , E AUTOR DE DIÁLOGOS NA SOMBRA: BISPOS , E MILITARES, TORTURA, JUSTIÇA SOCIAL , NA DITADURA (COMPANHIA DAS LETRAS)