quarta-feira, 30 de abril de 2014

Laços de tortura


06 de abril de 2014 | 2h 10

KENNETH SERBIN - O Estado de S.Paulo
As Forças Armadas vão investigar torturas e mortes ocorridas em sete instalações militares usadas para prender e interrogar presos políticos durante a ditadura (1964-1985). A decisão, divulgada na terça-feira, foi tomada após pedido da Comissão Nacional da Verdade.   Enquanto os brasileiros refletiam, na semana que passou, sobre os 50 anos do golpe de 1964 e sobre os esforços das comissões da verdade para lançar uma nova luz sobre as atrocidades da ditadura militar, a imprensa americana revelava que a Agência Central de Inteligência (CIA) enganou os americanos quanto ao uso oficial da tortura depois dos ataques terroristas do 11 de Setembro.
Segundo as conclusões de um relatório de 6.300 páginas elaborado pelo Comitê de Informações do Senado americano, a CIA ocultou detalhes da severidade de seus métodos e exagerou a importância dos planos terroristas e dos prisioneiros.
O relatório revelou ainda que a agência levou crédito por elementos cruciais da coleta de informações quando, na realidade, os suspeitos os revelaram antes de serem submetidos a tortura.
Embora as notícias da imprensa refletissem a tendência de alguns americanos de substituir o termo "tortura" por eufemismos como "técnicas avançadas de interrogatório", alguns dos detalhes que vazaram do relatório deixaram claro que a CIA cometeu o que muitos considerariam graves violações dos direitos humanos.
O jornal The Washington Post, por exemplo, descreveu o tratamento dispensado aos prisioneiros nos black sites, locais de detenção secretos, inclusive um deles no Afeganistão conhecido como o Salt Pit (poço de sal). Ali, os torturadores mergulhavam a cabeça de um indivíduo num tanque de água gelada por períodos prolongados, espancaram-no e bateram sua cabeça numa parede.
Outros prisioneiros foram submetidos a tortura com água fria. O relatório do Senado afirma que os médicos da CIA verificavam a temperatura dos presos para impedir que chegassem à hipotermia.
O presidente Barack Obama eliminou os locais de detenção secretos em 2009.
O emprego da tortura não proporcionou grandes avanços em matéria de coleta de informações, concluiu o relatório. O Post citou um funcionário a par do documento segundo o qual a CIA apresentou "reiteradamente" seu programa de interrogatórios "ao Departamento de Justiça e até ao Congresso como indispensável para obter informações específicas, que, de outro modo, não seria possível colher, e que permitiram aniquilar os planos terroristas e salvar milhares de vidas. Era verdade? A resposta é não".
As revelações provavelmente reacenderão o debate sobre a eficácia da tortura na eliminação do terrorismo e a moralidade dessa prática. Por enquanto, os adversários da tortura aparentemente ganharam um ponto fundamental para seu lado.
Os abusos descritos têm uma série de paralelos com as atitudes e práticas das forças de segurança da ditadura brasileira. É notório que o regime empregava em alguns casos médicos para verificar o estado de saúde dos presos submetidos a tortura para determinar, por exemplo, se haviam chegado ao limite. Manter a cabeça dos presos na água por longos períodos de tempo era uma prática comum.
Os torturadores do Brasil tiveram o apoio implícito dos líderes do regime até que o presidente Ernesto Geisel começou a reduzir o poder das forças de segurança, em 1974. Na época, o Congresso brasileiro não tinha nem o poder nem o desejo de investigar a tortura.
Somente agora - quase 30 anos depois do fim do regime - a Lei da Anistia talvez possa ser revista para permitir a punição dos torturadores. Pela primeira vez, o povo brasileiro é favorável a uma revisão da lei.
Por solicitação da Comissão Nacional da Verdade, as Forças Armadas do Brasil concordaram em investigar os abusos ocorridos em alguns dos locais de interrogatório mais ativos durante a ditadura. O ministro da Defesa, Celso Amorim, afirmou que o processo levará 30 dias - um período excessivamente curto para um assunto dessa gravidade.
Nos Estados Unidos, jamais foi criada uma comissão da verdade para investigar a conduta de militares nas várias guerras internas e externas em que o país se envolveu desde 1776, embora militares tenham sido condenados por atrocidades, inclusive assassinato.
Alguns cidadãos americanos pediram a instalação de uma comissão para investigar os abusos da era pós-11 de Setembro. A proposta teve pouca cobertura da imprensa e não recebeu grande impulso em termos políticos.
De acordo com essa tendência, e apesar dos fatos incriminadores contidos no relatório do Senado, é improvável que um funcionário da CIA seja punido pela prática da tortura.
Usando pareceres jurídicos secretos, o governo de George W. Bush (2001-2009) autorizou oficialmente o uso da tortura. Por isso, o relatório não investigou os motivos dos envolvidos nessa prática, e não recomendou nenhuma ação criminal ou administrativa contra eles.
Além disso, o Senado divulgará somente as "apurações, as conclusões e o resumo técnico do documento", afirmou no início de março a presidente do Comitê de Informações, senadora Dianne Feinstein. O grosso do relatório permanecerá secreto - em grande parte porque a própria CIA será encarregada de determinar os trechos a serem divulgados.
A questão que fica no ar tanto nos EUA quanto no Brasil é: alguém, em algum momento, irá para a cadeia pela prática da tortura política? / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
 KENNETH SERBIN É DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO , E AUTOR DE DIÁLOGOS NA SOMBRA: BISPOS , E MILITARES,  TORTURA, JUSTIÇA SOCIAL , NA DITADURA (COMPANHIA DAS LETRAS)

Endireitar, no bom sentido


06 de abril de 2014 | 2h 10

SÉRGIO AUGUSTO - O Estado de S.Paulo
A cultura brasileira ia muito bem em todos os setores e com pelo menos um fenômeno internacional em seu crédito, a bossa nova, quando os militares usurparam o poder. Com apenas nove dias de mando, baixaram seu primeiro ato institucional e invadiram o câmpus da modelar Universidade de Brasília. Estava iniciada a guerra santa contra a inteligência nacional, que pelo gosto do comandante da invasão, coronel Darcy Lázaro, teria durado três décadas. "Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos", ameaçou o truculento invasor.
Passados 30 anos, a cultura brasileira permanecia viva e o coronel, historicamente morto. Àquela altura, quem fazia história era outro Darcy-o antropólogo Darcy Ribeiro, reitor da UnB enxotado pelo xará fardado em abril de 1964. Mas o coronel não foi totalmente esquecido. Se não ganhou uma estátua equestre, ao menos batizaram com seu nome um estande de tiro, no Distrito Federal. Sic transit gloria mundi.
Não foi por falta de empenho que os templários do obscurantismo verde-oliva perderam sua cruzada. Enquanto a UnB era invadida, tocaram fogo no prédio da União Nacional dos Estudantes, depredaram o Instituto de Estudos Brasileiros, ambos no Rio, e criminalizaram o ativismo do Centro Popular de Cultura (Rio e São Paulo) e do Movimento de Cultura Popular (Recife), dois antros de perigosos comunistas, na avaliação do novo regime. Em seguida vieram os expurgos e demissões em massa em colégios e universidades, os inquéritos humilhantes e sem fundamento jurídico, as ameaças, prisões e tortura de intelectuais, jornalistas e artistas; livros foram apreendidos e destruídos, jornais, filmes, peças, músicas e exposições censurados e proibidos.
Horrorizado, o mais respeitado intelectual católico da época, Alceu Amoroso Lima, desabafou: "Até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter".
Quando beleguins do Dops recolheram numa livraria do Rio vários exemplares do romance O Vermelho e o Negro, de Stendhal, por suspeitá-lo "subversivo", o humorista Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, não se conteve: "A revolução está descambando para o perigoso terreno da galhofa". E deu por inaugurado o Febeapá, o festival de besteiras que começava a assolar o País. E continuaria assolando até depois da morte do humorista, quatro anos mais tarde. De enfarte, esclareça-se.
Ainda havia margem para críticas e gozações aos generais nos primórdios do regime militar. Mas nem por isso a revista de humor Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes em 1964, conseguiu suportar as pressões da censura - no oitavo número, bateu mesa. Pif-Paf seria o embrião do semanário O Pasquim (lançado com o AI-5 já em vigor) e Sérgio Porto, seu patrono. Apesar de ameaçado de todas as formas pelo governo e até por atentados à bomba pelas forças de direita, O Pasquim logrou blefar a censura e sobreviver à ditadura. Já uma publicação séria, como a Revista Civilização Brasileira, aguerrida trincheira da intelectualidade liberal e de esquerda, viu-se obrigada a capitular após duas dezenas de edições.
Uma cultura de resistência, manifesta nas imagens ásperas de dois filmes de 1964, Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha), e no show Opinião, espetáculo musicado de contestação criado no ano seguinte por Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa, Paulo Pontes e Augusto Boal para o Teatro de Arena do Rio, com Nara Leão (substituída por Maria Bethânia), Zé Keti e João do Vale, indicou um novo rumo para o cinema, a música popular brasileira, o teatro e as artes plásticas. De parâmetros renovados pela pop art e outras vertentes da arte conceitual, a geração de Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Cildo Meireles elaborou estratégias simbólicas e metafóricas para burlar o cerco à liberdade de expressão, aproximar-se de formas criativas mais populares, criticar o mercantilismo e desviar sua mirada para os horizontes do social, do político e do econômico.
A cultura mais viva, portanto, continuou à esquerda do regime, buscando manter-se à margem do sistema vigente de produção e consumo. Glauber Rocha, o Hélio Oiticica do Cinema Novo, fechou com a Estética da Fome, renegando o padrão narrativo das cinematografias hegemônicas. Oiticica, o Glauber das artes plásticas, optou por uma "nova objetividade", descentralizando a experiência estética das galerias e dos museus. Nem todos, mesmo à esquerda, apreciaram de estalo a exuberância alegórica de Terra em Transe (1967), por exemplo. José Celso Martinez Corrêa apreciou e, juntando a fome com a vontade de comer antropofagicamente, montou, na mesma clave, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. A música de Caetano Veloso e Gilberto Gil e a pança de Chacrinha completaram o sarapatel tropicalista.
A geleia geral do tropicalismo foi a mais jubilosa contribuição que oferecemos à reviravolta cultural de 1968. Para tudo se acabar na diáspora provocada pelo AI-5. Bem que Millôr profetizara: "Ainda vamos sentir saudades do governo Castelo Branco". Quando abrimos os olhos, Caetano, Gil, Chico Buarque, Glauber, Ferreira Gullar e outros já haviam partido, como o irmão do Henfil, num rabo de foguete.
Quem ficou ou seguiu a receita que Brecht ensinara aos intelectuais alemães, antes de Hitler assumir o poder ("Num tempo em que você não pode dizer o que quer, continue trabalhando, faça o possível para que, no dia em que haja condições reais de você dizer o que quer, saiba fazê-lo melhor") ou conformou-se com contribuir involuntariamente para o "vazio cultural" que por um tempo desertificou nosso panorama intelectual e artístico.
No início dos anos 1970, antes de também partir para a Europa e dar prestígio internacional a sua Estética do Oprimido, Boal arriscou um palpite: o melhor do teatro brasileiro estaria confinado nas gavetas da censura. Mas quando as gavetas afinal foram abertas, a única obra fora de série que dela saiu foi Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho.
No vácuo deixado pelo Grupo Oficina, quem mais viço deu à arte cênica foi Antunes Filho, com uma memorável encenação de Macunaíma, de Mário de Andrade, não por acaso a base de outro ponto luminoso nas trevas pós-64, o homônimo filme de Joaquim Pedro de Andrade. Além de nos salvar do marasmo criativo, a antropofagia e o tropicalismo, elas sim, ajudaram a endireitar, no bom sentido, a cultura brasileira.

O tapeceiro do passado

Na História de Jacques Le Goff, os contornos dos tempos perdidos ganham sutileza, cor, verdade

05 de abril de 2014 | 15h 09

Gilles Lapouge - O Estado de S. Paulo
Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.
Viajante. Ele via a Idade Média feita de sombras, mas também de luz sublime - Divulgação
Divulgação
Viajante. Ele via a Idade Média feita de sombras, mas também de luz sublime
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Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.
Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.
Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.
Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.
A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.
Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.
"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."
Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.
Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.
Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.
É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA