segunda-feira, 24 de março de 2014

Sabesp recusa previsões para áreas específicas


Instituto da USP e empresa privada propuseram monitorar o Cantareira
Estatal, que usa os serviços meteorológicos do Inpe, afirma que a situação atual do sistema é "excepcional"
EDUARDO GERAQUEHELOISA BRENHADE SÃO PAULO
Responsável pelo fornecimento de água para quase 28 milhões de pessoas no Estado de São Paulo, a Sabesp não tem um serviço de previsão do tempo para monitorar áreas específicas de seus sistemas de abastecimento.
O principal deles, o Cantareira, tem um histórico de secas e cheias bruscas, que submeteram a Grande São Paulo a racionamentos (como os de 2001 e 2003) e a alagamentos devido à abertura de comportas (caso de Franco de Rocha, em 2011).
Hoje, o Cantareira passa pela pior crise da história, operando em torno dos 14,5% de sua capacidade e pondo em risco o fornecimento de água para 8,8 milhões de pessoas na região metropolitana.
A Sabesp afirma usar as previsões meteorológicas do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais), que "também é contratado por diversas outras empresas, inclusive pela imprensa".
A estatal defende que a situação no Cantareira é "excepcional" e que, no boletim emitido pelo instituto no início do verão, a previsão era de chuva sobre o sistema.
Folha apurou que o informe do Inpe para os meses de verão indicava, na verdade, três situações na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, onde ficam os reservatórios do Cantareira.
Segundo o boletim, havia 33% de possibilidade de chover muito, 33% de chover dentro da média e 33% de chover abaixo da média. Ou seja, chances iguais para os três cenários. Outras companhias, porém, trabalhavam com um panorama diferente.
"Desde meados de 2013, já sabíamos que haveria pouca chuva [no verão]", afirma Willians Bini, meteorologista da Somar, empresa privada que faz previsões meteorológicas a clientes do setor energético e de bebidas.
A Somar enviou à Folha informes divulgados no ano passado nos quais já projetava um cenário de seca sobre o Sudeste do país. Segundo os boletins, existe um fenômeno natural que altera o regime de chuvas nessa região a cada década.
Bini conta que, há três anos, a Somar montou um projeto específico para a Sabesp, para monitorar e gerenciar o desempenho do sistema Cantareira.
O contrato, que não foi fechado na época, custaria de R$ 5 mil a R$ 20 mil por mês, dependendo do pacote de análise contratado.
O IAG (Instituto Astronômico Geofísico), da USP, também fez um projeto de monitoramento climático. Segundo professor Augusto Pereira Filho, a proposta era combinar previsão do tempo com projeções de consumo.
"Se prevermos quando haverá mais chuva e mais consumo, podemos produzir mais água nesse momento e baratear os custos de produção com energia elétrica, por exemplo", diz Pereira Filho.
O projeto foi encaminhado em junho do ano passado à Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que tem uma linha de pesquisa vinculada à Sabesp. Ao custo aproximado de R$ 1,5 milhão, sua implantação daria mais segurança ao abastecimento, segundo o professor.
"Na Austrália, que tem estiagens severas, as companhias de saneamento têm seus próprios serviços de previsão do tempo. Toda região com escassez hídrica como São Paulo precisa de um, pois a meteorologia é estratégica nessa área", diz.

sábado, 22 de março de 2014

Volume morto ou vivo?


22 de março de 2014 | 2h 03

Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
É fato, os peixes vão pagar o pato. O Sistema Cantareira está quase vazio. É a primeira vez que o reservatório não acumula água no período de chuvas. Vamos entrar na seca sem água. Para garantir um futuro sem racionamento (em ano de eleição, o futuro termina em novembro), o governo vai aspirar o volume morto das represas do Sistema Cantareira. O problema é que, o "volume morto", de morto não tem nada. Na verdade ele deveria ser chamado de "volume vivo".
Muitas pessoas imaginam que um reservatório como o Cantareira é uma imensa caixa d'água, um local onde estocamos água para usar no futuro. É um erro. Essas represas são um imenso, lindo e exuberante aquário, com dezenas de espécies de peixes, plantas aquáticas, algas, crustáceos e milhares de outras espécies de seres vivos. Quando um rio é represado, o ecossistema da região vai aos poucos se reorganizando e lentamente se torna estável e sustentável. São os seres vivos desse novo ecossistema, e o equilíbrio que se estabelece entre eles, que mantêm a qualidade da água e garantem a sustentabilidade do suprimento ao longo de décadas.
Mas, ao contrário do que ocorre nos lagos naturais, o nível dos reservatórios varia muito ao longo do ano. Nas chuvas, os rios levam mais água para a represa do que é retirado pelos túneis. Elas enchem. Na seca, o volume retirado pelos túneis é maior do que o que chega ao reservatório. Elas esvaziam. É como se nosso lindo aquário fosse lentamente esvaziado durante a seca e novamente completado com água durante as chuvas. Assim, a cada ano, a flora e a fauna que vivem na represa se concentram em um pequeno volume durante a seca, e se espalham por um volume maior durante as cheias.
Quando esses reservatórios são planejados, os túneis que coletam a água nunca são construídos no fundo do reservatório. Eles são colocados de maneira que seja impossível drenar completamente a represa. É como se em nosso aquário imaginário o ralo estivesse na parede lateral, a 10 centímetros do fundo. Mesmo se deixarmos o ralo aberto o tempo todo, os últimos 10 centímetros de água permanecem no aquário. Isso garante um volume mínimo para que todos os seres vivos possam sobreviver até que o aquário seja completado. É o "volume vivo".
O volume de água que sobra em uma represa quando o nível baixa tanto que os túneis de captação não conseguem mais transportar água é o chamado "volume morto", o volume a que não temos acesso pois não pode ser retirado pelos túneis. Mas do ponto de vista biológico é o "volume vivo", aquele em que se concentram todos os seres vivos durante a seca, garantindo a sobrevivência da flora e da fauna.
Ao permitir que a Sabesp utilize bombas flutuantes para sugar o "volume vivo", estamos correndo o risco de literalmente matar todos os habitantes do aquário. É possível que parte do volume vivo possa ser retirado sem prejudicar de maneira irreversível nosso aquário, mas também é possível que o "volume vivo" atual já seja menor que o suficiente para manter o ecossistema equilibrado. Sem dúvida o colapso de nosso aquário vai ocorrer muito antes de retirarmos a última gota e observarmos os peixes estrebuchando na lama.
Para saber se podemos invadir o "volume vivo" é necessário fazer um estudo cuidadoso do impacto. Que eu saiba esse estudo não existe e se existe seria bom que fosse divulgado. O interessante nessa história é que os ambientalistas, talvez iludidos pelo nome "volume morto", parecem não estar preocupados com a potencial destruição do aquário. Se já estivessem no poder, o que decidiriam?
Concordo, este parece ser uma ano atípico, e talvez seja melhor sacrificar os peixes que a eleição. A vida e o conforto dos eleitores valem mais que a sobrevivência de meros peixes. Mas, que ninguém se iluda, essas bombas flutuantes, verdadeiras armas de destruição em massa, vão continuar a boiar no Cantareira depois de passar a emergência. E tal qual as usinas térmicas, que só deveriam ser utilizadas em situações de emergência e agora fazem parte da nossa rotina, essas bombas aos poucos serão incorporadas à rotina e podem matar nosso aquário. Mas tudo bem, a eleição terá passado e o futuro, que hoje se estende por 8 meses, vai se expandir para longos 4 anos.
*É BIÓLOGO

Berçário hídrico


Para prevenir a escassez, é preciso cuidar dos mananciais e bacias

22 de março de 2014 | 16h 00

João Campari e Samuel Barreto
Os paulistanos vêm sendo confrontados com imagens desalentadoras de leitos de represas rachados que remetem a memória ao Semiárido brasileiro. No entanto, elas são do Sistema Cantareira, no Estado de São Paulo, um dos maiores sistemas de abastecimento de água do mundo, responsável por atender mais de 12 milhões de habitantes nas Regiões Metropolitanas de São Paulo (RMSP) e Campinas (RMC). Até o fim de semana, o sistema estava operando com menos de 15% de sua capacidade, o menor nível registrado desde que foi criado, no início da década de 1970.
Essas imagens, símbolo da crise atual, também têm evidenciado que a água não tem origem nas torneiras pelas quais chega a nossas casas. As soluções que chamam a atenção dos usuários para a racionalidade do uso da água são respostas necessárias, mas estão longe de ser suficientes para resolver o problema. Fechar a torneira não basta. É necessário cuidar da oferta de água onde ela nasce. Assim, uma resposta sistêmica passa pelo manejo de bacias hidrográficas e recuperação de seus mananciais, que, em grande parte, encontram-se degradados, poluídos e cujo entorno foi severamente desmatado. Apenas o Sistema Cantareira perdeu 70% da cobertura florestal original, o que agrava o assoreamento dos rios e represas, diminuindo a vida útil desses ambientes. A degradação da vegetação nativa potencializa ainda o efeito das secas.
A interação de todos esses fatores leva a uma situação de risco extremo e representa uma ameaça ambiental, social e econômica. Esse cenário é ainda mais alarmante, pois as RMs de São Paulo e Campinas, juntas, são responsáveis por mais de 22% do PIB do País. Portanto, é mais que prioritário haver uma resposta estratégica e robusta aos problemas crescentes e urgentes de acesso e fornecimento de água em quantidade e qualidade nos centros urbanos.
É premente irmos além das intervenções convencionais, tais como obras de engenharia. Fazem-se necessárias respostas sistêmicas, e essas não são de responsabilidade exclusiva dos governos. Existe corresponsabilidade das empresas e da sociedade civil na busca de soluções, pois essas criam valor compartilhado. Assim, é correto que o governo exerça papel de protagonista para fomentar e implementar soluções múltiplas que atinjam diversos setores de uma vez.
A sociedade civil organizada deve ajudar a criar voz cívica para alertar sobre o problema e trazer ao conhecimento de governos e empresas seus melhores exemplos de projetos. ONGs ambientalistas têm o dever de reportar os resultados de seus projetos inovadores para ajudar na construção de políticas públicas e também orientar empresas nos esforços de responsabilidade social corporativa para o meio ambiente. Uma das frentes mais importantes de colaboração para se chegar a um equilíbrio entre oferta e demanda de água em São Paulo se dará com o fortalecimento dos Comitês de Bacias Hidrográficas.
Damos ênfase ao investimento necessário à recuperação da "infraestrutura verde", que ocorre por meio da restauração florestal de áreas degradadas, e para a conservação dos remanescentes florestais. Tais iniciativas asseguram a saúde de uma bacia hidrográfica. Essa intervenção, quando bem manejada, minimiza o risco de eventos extremos e reduz a vulnerabilidade de populações a enchentes e estiagens prolongadas. Além disso, reduz a erosão e o assoreamento dos rios e represas e melhora substancialmente a integridade do solo, retendo e armazenando água. Ou seja, as florestas prestam um serviço ambiental de regulação e segurança hídrica à população.
Nova York ilustra bem essa equação. Há décadas a administração da cidade optou por purificar a água filtrando-a naturalmente pelas florestas, a um custo inicial de US$ 1 bilhão a 1,5 bilhão no período de dez anos. Esse valor foi sete vezes menor que os US$ 6 bilhões a 8 bilhões que seriam gastos na forma tradicional de tratar e distribuir água potável, mais US$ 300 milhões a 500 milhões anuais em custos operacionais.
Estudo recente da ONG ambiental The Nature Conservancy (TNC) revelou que, recuperando-se 12 mil hectares de áreas desmatadas e corrigindo processos erosivos em 2 mil hectares nas bacias dos Rios Piracicaba, Capivari, Jundiaí e Alto Tietê, o nível de sedimentos que corre para os rios diminuiria em 50%. Ou seja, a capacidade dos reservatórios aumentaria, ao passo que diminuiriam os investimentos feitos em dragagem e tratamento para remoção de sedimentos.
A oportunidade de aprendermos com a crise atual está posta. Se tivermos discernimento para atuar de forma sistêmica e capacidade política e interinstitucional poderemos reduzir os riscos de um desabastecimento. E, mais que isso, temos a oportunidade de promover a integridade das bacias hidrográficas e a segurança hídrica de seus diferentes usuários, fatores indispensáveis para a estabilidade social e econômica de São Paulo.
JOÃO CAMPARI É Ph.D. EM ECONOMIA AMBIENTAL E DIRETOR DE PROGRAMAS DE CONSERVAÇÃO DA THE NATURE CONSERVANCY (TNC)
SAMUEL BARRÊTO É ESPECIALISTA EM RECURSOS HÍDRICOS E COORDENADOR DO MOVIMENTO ÁGUA PARA SÃO PAULO (MAPSP) DA TNC 

NOTÍCIAS RELACIONADAS: