22 de março de 2014 | 2h 03
Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
É fato, os peixes vão pagar o pato. O Sistema Cantareira está quase vazio. É a primeira vez que o reservatório não acumula água no período de chuvas. Vamos entrar na seca sem água. Para garantir um futuro sem racionamento (em ano de eleição, o futuro termina em novembro), o governo vai aspirar o volume morto das represas do Sistema Cantareira. O problema é que, o "volume morto", de morto não tem nada. Na verdade ele deveria ser chamado de "volume vivo".
Muitas pessoas imaginam que um reservatório como o Cantareira é uma imensa caixa d'água, um local onde estocamos água para usar no futuro. É um erro. Essas represas são um imenso, lindo e exuberante aquário, com dezenas de espécies de peixes, plantas aquáticas, algas, crustáceos e milhares de outras espécies de seres vivos. Quando um rio é represado, o ecossistema da região vai aos poucos se reorganizando e lentamente se torna estável e sustentável. São os seres vivos desse novo ecossistema, e o equilíbrio que se estabelece entre eles, que mantêm a qualidade da água e garantem a sustentabilidade do suprimento ao longo de décadas.
Mas, ao contrário do que ocorre nos lagos naturais, o nível dos reservatórios varia muito ao longo do ano. Nas chuvas, os rios levam mais água para a represa do que é retirado pelos túneis. Elas enchem. Na seca, o volume retirado pelos túneis é maior do que o que chega ao reservatório. Elas esvaziam. É como se nosso lindo aquário fosse lentamente esvaziado durante a seca e novamente completado com água durante as chuvas. Assim, a cada ano, a flora e a fauna que vivem na represa se concentram em um pequeno volume durante a seca, e se espalham por um volume maior durante as cheias.
Quando esses reservatórios são planejados, os túneis que coletam a água nunca são construídos no fundo do reservatório. Eles são colocados de maneira que seja impossível drenar completamente a represa. É como se em nosso aquário imaginário o ralo estivesse na parede lateral, a 10 centímetros do fundo. Mesmo se deixarmos o ralo aberto o tempo todo, os últimos 10 centímetros de água permanecem no aquário. Isso garante um volume mínimo para que todos os seres vivos possam sobreviver até que o aquário seja completado. É o "volume vivo".
O volume de água que sobra em uma represa quando o nível baixa tanto que os túneis de captação não conseguem mais transportar água é o chamado "volume morto", o volume a que não temos acesso pois não pode ser retirado pelos túneis. Mas do ponto de vista biológico é o "volume vivo", aquele em que se concentram todos os seres vivos durante a seca, garantindo a sobrevivência da flora e da fauna.
Ao permitir que a Sabesp utilize bombas flutuantes para sugar o "volume vivo", estamos correndo o risco de literalmente matar todos os habitantes do aquário. É possível que parte do volume vivo possa ser retirado sem prejudicar de maneira irreversível nosso aquário, mas também é possível que o "volume vivo" atual já seja menor que o suficiente para manter o ecossistema equilibrado. Sem dúvida o colapso de nosso aquário vai ocorrer muito antes de retirarmos a última gota e observarmos os peixes estrebuchando na lama.
Para saber se podemos invadir o "volume vivo" é necessário fazer um estudo cuidadoso do impacto. Que eu saiba esse estudo não existe e se existe seria bom que fosse divulgado. O interessante nessa história é que os ambientalistas, talvez iludidos pelo nome "volume morto", parecem não estar preocupados com a potencial destruição do aquário. Se já estivessem no poder, o que decidiriam?
Concordo, este parece ser uma ano atípico, e talvez seja melhor sacrificar os peixes que a eleição. A vida e o conforto dos eleitores valem mais que a sobrevivência de meros peixes. Mas, que ninguém se iluda, essas bombas flutuantes, verdadeiras armas de destruição em massa, vão continuar a boiar no Cantareira depois de passar a emergência. E tal qual as usinas térmicas, que só deveriam ser utilizadas em situações de emergência e agora fazem parte da nossa rotina, essas bombas aos poucos serão incorporadas à rotina e podem matar nosso aquário. Mas tudo bem, a eleição terá passado e o futuro, que hoje se estende por 8 meses, vai se expandir para longos 4 anos.
*É BIÓLOGO
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