Para professor de ética, é difícil saber se acusações procedem, mas importa entender por que a reencenação da história caiu em terreno fértil
08 de fevereiro de 2014 | 17h 09
Renato Janine Ribeiro
Por que a ruptura entre Woody Allen e Mia Farrow, assunto já antigo, volta à cena com tanta paixão? Penso que é porque expõe duas histórias de incesto, atribuídas a um cineasta que tematizou tanto a própria vida que acreditamos conhecer sua personalidade e, sobretudo, suas falhas. Tentemos destrinchar esse emaranhado.
Ann Clifford/Time Life/Getty Images
Da esquerda para direita: Allen, Ronan, Mia, Dylan e Soon-Yi; à frente, Moses.
Datam de 1992 duas histórias, diferentes, mas paralelas, que muitos confundem. Primeira, Allen deixa Mia para ficar com a filha adotiva dela, Soon-Yi (que não era filha dele, mas do maestro André Prévin). Consta que nunca teve vida familiar com Soon-Yi; não seria uma figura paterna para ela. É incesto por derivação, não por definição. É incesto aos olhos, sobretudo, de Mia. Eis uma tragédia familiar, que traz problemas éticos, porque ambos traíram Mia, namorada de um, mãe da outra – mas não é um crime. E o final, para os "cúmplices", é feliz: Allen e Soon-Yi se casaram e têm dois filhos.
Segunda história: no meio dessa tormenta, Allen teria acariciado sexualmente Dylan, de 7 anos, filha adotiva dele e de Mia. Aqui temos incesto, sim, na forma do abuso sexual de menor – ação odiosa, pois fere um ser duas vezes vulnerável, pela idade e pelo laço com o agressor. Mia processa Allen, mas sem sucesso: os peritos psiquiatras do tribunal opinam que a menina e seu irmão mais velho, Moses, teriam sido treinados ("coached") pela mãe para depor. Esse caso, e apenas ele, seria crime, mas não foi provado.
A história ressurge agora, graças a jornalistas amigos de Mia. Principia com ela dizendo à revista Vanity Fair que seu único filho biológico com o cineasta talvez não seja dele, mas do ex-marido Frank Sinatra: revela que manteve um longo caso com Sinatra quando já estava com Allen. Depois, o New York Times divulga uma longa carta de Dylan acusando o ex-pai do abuso sexual de 1992.
Esse escândalo afeta gente decente, liberal, empenhada em boas causas. Mia é ativista social. Allen nunca rodou um filme defendendo a violência ou o preconceito, e uma virtude de vários de seus filmes é a empatia com o infeliz. O conflito dos simpatizantes dele e dela é uma guerra civil dividindo pessoas de bem.
No meio disso, muitas complicações. Há mudanças de nomes (Dylan virou Malone; o filho biológico, Satchel, hoje é Ronan), de filiação (Allen perde o acesso aos adotivos e talvez não seja pai do biológico), de lado (um adotivo, Moses, que em 1992 pediu que Allen "se suicidasse", hoje apoia o pai). É mais confuso do que romance russo. Bem disse o ex-filho biológico, Satchel que virou Ronan: é complicado ser filho do cunhado, irmão da madrasta.
Mas o desabafo de Satchel-Ronan se refere à primeira história, à traição, não ao abuso sexual. O dano que se abateu sobre o clã quando as figuras materna e paterna romperam, e o "pai" fugiu com a "irmã" foi devastador – mas não é crime. Como diz Andrea Pachá num ótimo livro, "a vida não é justa". Crianças sofreram, mas devido a uma separação apenas pior que as litigiosas "normais". E o final, para os dois que saíram do clã (André Prévin diz que Soon-Yi "não é mais minha filha"), foi feliz. É a relação mais duradoura que Allen já teve. Uma família feliz, um happy end, ainda que só para eles: por isso mesmo, como culpá-los, hoje, pela ruptura de 1992? Eles entraram na banalidade das relações sem tormenta. Assim, como a história dos dois perdeu o charme do proibido, o foco passou para o possível abuso, o caso que então era secundário, a agressão sexual à menina menor.
Entra em cena a segunda história. Aceitamos casamentos rompidos, mas temos ódio crescente ao abuso sexual; esse tema saiu do armário. (Por coincidência, Allen é acusado de abusar de Dylan dentro de um armário.) Mas aconteceu? Sim: aos sete anos se entende melhor o que são carícias sexuais do que aos quatro – idade que tinham as crianças da Escola Base, quando os donos dela quase foram linchados sob acusações de abuso sexual que eram, afinal, fantasias infantis. Ou não: o próprio irmão Moses, que testemunhou com Dylan em 1992, hoje diz que Mia pressionava as crianças para ficarem contra Allen. Não consigo ter posição. As decisões da Justiça, embora tomadas em momentos distintos, deram em empate. Mia não conseguiu condenar Allen, mas ele perdeu o acesso aos filhos. Uma decisão estranha, porque se era culpado deveria pagar por isso, se era inocente não havia por que perder as crianças.
Há mais. Por que essa história volta à cena? Há as hipóteses menores, como a possível aposta do ex-filho talvez biológico de Allen numa carreira profissional ou a irritação da ex-família com as homenagens ao diretor. Mas o importante não são as motivações de Mia e dos seus filhos, e sim: por que a reencenação da história caiu em terreno fértil.
Começo pela crise da família. Uma coisa é ter ex-marido, ex-mulher. Uma separação pode doer, mas conseguimos conceituá-la. Agora, dos laços de família, os de pai e filho são eternos. Mas são mesmo? No caso, não foram. Por isso falei, com espanto meu inclusive, em ex-pai, ex-filho, ex-filha. Se os últimos mudaram de nome, foi para consumar a ruptura. O susto nos vem do que deve ser um temor fundo, talvez ancestral: nem mesmo os laços do sangue, nem mesmo os vínculos a nossa origem, hoje estão garantidos. O clã Farrow era um grande experimento de filiação: filhos adotados por ela com Prévin, com Allen, um concebido por ela e Allen – como se fossem uma tipologia das diferenças que há no mundo. De repente cai um raio sobre essa tribo, que não sabemos se era feliz, mas pretendia sê-lo. A mãe, vértice da família, é traída.
Isso perturba nossa talvez última garantia, quando tudo ficou líquido, até as alianças mais firmes: a família como espaço dessexualizado. O casal é sexualizado e por isso resiste mal à perda do desejo. Mas a relação pais-filhos é de amor porque não tem sexo. Pode durar para sempre, deveria durar para sempre. Só que a histoire de cul, como os franceses chamariam o caso de Allen com Soon-Yi, afetou as filiações, fraternidades e, para termos um equilíbrio de gênero entre homens e mulheres, as "sororidades" do clã. A experiência ambiciosa de criar laços de família entre pessoas que não têm relação de sangue quase foi pelos ares.
Dessa história, ou resulta que Allen é o pai-negação-de-pai, que abusou da filha, ou que Mia é a mãe-negação-de-mãe, Medeia que sacrificou os filhos para se vingar dele. Pai e mãe que neguem sua condição são fantasmas atuais, amedrontadores. Até nossa origem, nossa filiação, se torna precária. (O único que parece ter escapado da maldição foi o que mudou de lado, Moses, atravessando as águas do ódio.)
Some-se que o incesto "falso" deu certo, e o incesto "real" ficou impune. Mil aspas! Incesto falso foi o amor de Allen e Soon-Yi. Não eram pai e filha, mas aos olhos da família um era tabu para o outro. Não violaram a lei, mas o choque afetivo é igual. Porém, esse incesto revelado, publicado, gerou um casal feliz. Quanto ao suposto abuso, aí sim teríamos um incesto de verdade, real, entre pai e filha, pouco importando que fosse adotiva. Mas não se sabe a verdade. Porém, a contaminação dos casos é inevitável. Basta suspender um pouco as dúvidas que a imagem de Allen despenca. Imagem, para um cineasta, é muito. Depois de privá-lo da paternidade, Mia tenta tirar-lhe a homenagem, e a filha pede que ninguém veja os filmes do ex-pai. (Luiz Zanin comentou muito bem esse ponto em seu artigo no Estado: mesmo que ele seja culpado, sua obra subsiste).
Mas há uma relação entre os dramas de 1992 e a obra de Woody Allen. Lembram temas seus. Se ele rodasse westerns ou thrillers, sua história pessoal nada teria a ver com seus filmes. Mas Allen dirige e protagonizou, inclusive contracenando com suas parceiras Diane Keaton e Mia Farrow, várias películas como um personagem neurótico, atrapalhado, que se equilibra entre a busca da felicidade e a da sanidade. Difundiu assim a crença de que ele, ator e personagem, é ele, pessoa. O contrário exato do que diz Fernando Pessoa sobre o poeta, fingidor que finge que é dor a dor que deveras sente. Essa identidade mais que duvidosa entre ator e personagem, no caso dele, é tomada como uma certeza. Daí que tantos acreditem vê-lo em seus filmes. Há quem cultue, ainda hoje, a ideia de que a obra expressa a verdade íntima de seu autor.
Ora, dá para fazer um filme de Woody Allen com uma dessas histórias? Sim e não. Com o abuso sexual, nem pensar. Nenhuma película dele trata de uma violência tão dura, no limite do irrepresentável, que impossibilita qualquer humor. Já o caso de amor com Soon-Yi poderia dar um filme seu, mas de final diferente. Seria um amor platônico, com muitas palavras, mas provavelmente sem toque físico, ao fim do qual a moça e a mãe encontrariam novos parceiros, com o personagem masculino frustrado e, ao mesmo tempo, enunciando uma frase final com aquele toque de humor que é a maneira de Allen lidar com a frustração, a derrota. A realidade foi mais bem-sucedida, foi melhor (para o casal) do que teria sido um filme. Mas no horizonte permanece esse imaginário alleniano sobre a dificuldade atual das relações amorosas.
Provavelmente nunca saberemos se Allen fez mal a Dylan. Mas, partindo do princípio de que o abuso sexual é sempre repugnante, parece-me que a história vai além dele, tratando de medos atávicos, a traição, a traição pelo pai e pela mãe, a traição pela filha. Talvez por isso, mereça ser falada. A fala pode libertar. Mas sob a condição de que falemos de nossos medos, em vez de gastar tempo discutindo quem é culpado, num enredo inextricável e provavelmente sem saída.
RENATO JANINE RIBEIRO, PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP, É AUTOR DE A UNIVERSIDADE E A VIDA ATUAL