sábado, 5 de outubro de 2013

Baile sem máscaras


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Manifestações políticas são feitas por cidadãos que devem ter o orgulho e a responsabilidade de serem autores de seus gestos
Suspensa entre o rosto do indivíduo e o olhar da cinade, amáscara serve como síntese perfeita para um dos mais complexos desafios enfrentados pelas sociedades democráticas, que é o de estabelecer as condições de legitimidade para as ações individuais no espaço público. Permitindo simultaneamente ocultar a identidade e ampliar a expressão, a imagem da máscara traz à to na uma diferenciação que, embora fundamental para enfrentar justamente esse desafio de legitimidade, tem sido amiúde es-quecidano debate recente: indivíduo e cidadão são conceitos distintos. Nosso tempo gosta de esquecer essa diferença, mas, sem ela, não se pode construir a democracia.
O conceito de indivíduo refere uma existência biográfica, particular, definida pela sua irredutível singularidade. Suas trocas preferenciais se dão com aqueles que pensam e sentem como ele e sua tendência é a de construirum espaço de relativa homogeneidade a partir do individual. O conceito de cidadão, por outro lado, refere uma existência política, uma pertença a um coletivo ordenado segundo regras que, por definição, se aplicam a todos igualmente. Sua vocação é a do convívio em um espaço de heterogeneidade. Sérgio Buarque de Holanda, com a agudeza habitual, já alertava para o perigo de se confundirem as duas esferas. Ele enfatizava que a família não é a extensão do Estado, como crê muitas vezes o senso comum, mas seu maior inimigo. Isso porque a família, que é o âmbito em que prospera o indivíduo, se rege pela lógica do afeto e da pessoalidade. O Estado, por sua vez, é o espaço em que age o cidadão, e se estrutura pela lógica do direito e da impessoalidade. Misturar os campos leva ao arbítrio, porque permite que aqueles que ocupam o poder se utilizem da máquina do Estado, que deveria estar a serviço de todos, segundo alei, parabeneficiar alguns indivíduos, segundo alógica dos afetos privados.
A lição de Sérgio, escrita em 1936, permanece atual e emerge ainda mais relevante agora, nos tempos que sevão chamando de pós-modernos. Mais e mais, a conveniência individual arrisca se erigir como único fundamento legítimo para as ações humanas, mesmo no espaço público. O ideal pós-moderno de autenticidade de que fala Sennett – isto é, a ansiedade em comunicar invariavelmente aos outros aquilo que sinto, que faz sentido para mim, no momento e naformaque me parecerem necessários- vai silenciosamente triunfando sobre a virtude política da civilidade. Essa, como o nome já sugere (pois vem de civis), é a virtude do cidadão. Ela implica a capacidade de moldar as ações próprias tendo por referência a conveniência coletiva, e o compromisso de respeitar as normas livremente pactuadas para a convivência com outros que são diferentes de mim.
Por supor uma limitação vinda de fora, isto é, por ser umavirtude política, a civilidade é vista com suspeição por leituras de mundo que elegem o indivíduo e suas razões como único elemento capaz de legitimar qualquer ação. De maneira mais ou menos aberta, essas leituras parecem querer elevar a princípio organizador de todas as trocas sociais a lógica do consumo que é a de oferecer, cada vez mais, produtos que sejam userfriendly, isto é, que se adaptem perfeitamente às necessidades do indivíduo, que o tenham por parâmetro e que o eximam de qualquer esforço adicional de adaptação. Elas veem com outopia antiquada os grandes projetos coletivos que pressupõem, necessariamente, composição de interesses e algum grau de limitação dos próprios desejos em favor do benefício geral.
Libertárias na superfície, tais proposições naverdade convidam e podem mesmo abrir caminho a um terrível autoritarismo. Negando legitimidade aos laços supraindi-viduais da cidade, elas permitem sujeitar o coletivo ao individual. Separando indivíduo de cidadão, elas desvinculam o ser humano da responsabilidade pelo contexto político de alteridade e diferença em que se desenvolve a vida quotidiana. No limite, elas tendem a construir não uma liberdade cidadã, mas uma anomia individualista que iguala, perversamente, poder de agir e direito de agir. No processo, escamoteiam que a capacidade de agir exige meios que estão, de forma muito clara, desigualmente distribuídos. Creio ser por isso que Alain Touraine indica que uma sociedade de indivíduos pode destruir uma sociedade de cidadãos.
Nos debates sobre as máscaras, essa diferença entre rosto individual e face política é crucial. Manifestações políticas são feitas por cidadãos que devem ter o orgulho e a responsabilidade de serem autores de seus gestos. A reivindicação dentro do espaço coletivo implica para o Estado a responsabilidade de garantir a livre expressão e para quem manifesta a renúncia ao anonimato do privado. Renovar nossa democracia exige que busquemos o difícil equilíbrio entre essas duas demandas e que o façamos agindo como cidadãos.JOSÉ GARCEZ GHIRARDI É PROFESSOR DE FORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO ESTADO BRASILEIRO DA DIREITO GV
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Sombra do meio-dia


Dor ou alegria, sol ou nuvens, para a depressão tanto faz. Quando ela decide atacar, a única defesa é atacar antes, diz autor de best-seller

14 de setembro de 2013 | 12h 50

Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Quando Andrew Solomon escreveu O Demônio do Meio-Dia, mergulhou fundo nas imagens. Só assim, quem sabe, alguém que nunca viu a cara da depressão poderia entender essa dor. Uma das imagens era a da trepadeira que tomou conta de um carvalho centenário. "Só bem de perto se podia ver como haviam sobrado poucos ramos vivos, e quão poucos e desesperados gravetos brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco maciço."
Veja também:
link A dor e a performance
‘Mulher de braços dobrados’-Man Ray (1931) - Reprodução
Reprodução
‘Mulher de braços dobrados’-Man Ray (1931)
O carvalho centenário era o carvalho da sua infância, e a trepadeira de fato o sugou. A depressão Solomon a viveu na alma, num estágio severo, depois de a mãe morrer num suicídio assistido, após longo tratamento de câncer. "No final, eu estava compactado e fetal, esvaziado por essa coisa que me esmagava sem me abraçar." Esse americano-britânico, a um mês dos 50 anos, tinha 31 na época. Levou mais cinco anos para compor uma anatomia da doença que em 2001 ganhou o National Book Award e em 2002 foi finalista do Pulitzer.
Se O Demônio do Meio-Dia, lançado no Brasil pela Objetiva, emerge aqui nessa semana, é por causa do Dia Internacional de Prevenção ao Suicídio. Na terça-feira foi lembrada a taxa mundial de suicídio divulgada pela OMS: entre 10 e 30 por 100 mil habitantes. O Datasus soltou o número de 9.852 brasileiros que se mataram em 2011. Considerando-se a subnotificação, presume ser maior. No geral, com o que corroboram vários estudos, cerca de 90% dos suicídios estão associados a estados depressivos.
"Depressão e suicídio são entidades separadas que com frequência coexistem, influenciando-se mutuamente", afirma Solomon. Por falta de uma, ele propõe políticas públicas para as duas, com formação de profissionais de saúde e ferramentas na medida para distúrbios ainda sub ou sobretratados.
Nesta entrevista, feita a partir de Cleveland, Ohio, o escritor menciona o novo livro, Longe da Árvore, que será lançado em outubro pela Companhia das Letras. São mil páginas sobre o universo de famílias cujos filhos são marcados pela excepcionalidade. Seu foco na nossa conversa, porém, é o tratamento daquilo com que Solomon precisa conviver eternamente, à espreita de que a trepadeira queira subir novamente pelos seus pés: "Toda manhã e toda noite, olho para as pílulas na minha mão: branca, rosa, vermelha, turquesa. Às vezes parecem uma escrita, hieróglifos dizendo que o futuro pode ser muito bom, e que devo a mim viver para vê-lo".
O senhor costuma dizer que a depressão ceifa mais anos do que a guerra, o câncer e a aids juntos. Em suas palavras, ela pode ser "a maior assassina da Terra". Como explicar a escala do problema?
A variação do estado de ânimo é uma vantagem da evolução da espécie. Sem a capacidade de ser triste, por exemplo, não teríamos o amor como o conhecemos, já que ele contém necessariamente a sensação da perda antecipada, que aumenta nosso apego à pessoa. A depressão é uma disfunção desse espectro. No entanto, como é contígua à tristeza e à ansiedade, é difícil regulá-la. Ainda assim, provavelmente temos mais casos de depressão nestes tempos modernos do que tivemos ao longo da história. São tempos eletrônicos, superconectados e superpovoados, que nos impõem tensões não vividas no passado. Com novos discernimentos, diagnosticamos a doença com mais frequência. E porque temos um tratamento mais eficaz, há um incentivo para que as pessoas se identifiquem com essa condição. Contudo, apesar dessas ferramentas clínicas (drogas, psicanálise, terapia cognitivo-comportamental, terapia eletroconvulsiva, etc), a maioria das pessoas com depressão não recebe tratamento, o que é um desastre para a saúde pública.
Por que não recebem tratamento?
A depressão é, em geral, resultado de uma vulnerabilidade genética desencadeada por circunstâncias externas. Podemos supor que a vulnerabilidade atinja todas as classes sociais - e, em seguida, perceber que a experiência dos pobres é mais estressante e, portanto, deve levar a uma maior taxa de depressão. A questão é que pessoas com uma vida confortável que se sentem arrasadas o tempo todo tendem a perceber a estranheza desse sentimento e procuram tratamento. Já os pobres acham que o que sentem é compatível com suas vidas, e não lhes ocorre que estejam deprimidos. Muitas vezes, nem estão deprimidos por causa de problemas externos, mas a depressão os desvitaliza de tal forma que os impede de melhorar de vida.
Não externar fragilidades também pode dificultar o diagnóstico? Vivemos em uma sociedade que não suporta lamúrias?
Não acho que o lamento tenha alguma vez sido popular. Como um amigo meu disse certa vez, "autopiedade não dá bilheteria". Mas acho que devemos fazer uma distinção entre choramingar num encontro social e identificar a depressão num quadro clínico. Depressão é uma experiência de dor intensa, por vezes tão intensa que a única opção parece ser o suicídio. Buscar tratamento para essa dor é a coisa sensata a fazer. Manter-se em silêncio não traz benefício a ninguém.
A vida virtual e a fragilidade nas relações sociais e familiares podem aumentar o sentimento de vazio existencial?
Sem dúvida. Seres humanos precisam interagir com outros seres humanos; quando interagem principalmente com uma tela de computador ou com um aparelho de televisão, tornam-se alienados e descontentes. A depressão é uma doença da solidão, e aqueles com relações familiares frágeis partem de um lugar ainda mais solitário. Muitas vezes, as pessoas que estão deprimidas acham a interação humana estressante, e se isolam. É importante lembrar que exigir reação de uma pessoa muito deprimida pode exacerbar a doença. Mas fazê-la perceber quão realmente é amada é essencial na sua recuperação.
Há muito charlatanismo nos tratamentos?
Há um charlatanismo sem fim. Mas, às vezes, o charlatanismo funciona. Se você tem câncer no cérebro e alguém disser que ficará melhor se plantar bananeira por 20 minutos toda manhã, você continuará com o câncer no cérebro e provavelmente morrerá com ele. Mas se você tem depressão, alguém disser o mesmo e você se sentir melhor com essa prática, então de fato está melhor naquele momento: afinal, a depressão é uma doença do sentir. Fazendo essa ressalva, acho perigoso perseguir tratamentos alternativos e adiar os comprovados, porque, quanto mais tempo procrastinar o tratamento da depressão, pior ela vai ficar. E tudo que se quer é dar a volta por cima quanto antes. Há pessoas que tomam medicamentos de que não precisam, e há pessoas que não recebem a medicação necessária. Estou mais preocupado com os da segunda categoria, mas ambos são problemas.
O gatilho para a depressão é necessariamente negativo?
O gatilho é geralmente uma forma de estresse, e eventos positivos podem ser tão estressantes quanto os negativos. Uma interrupção de estabilidade, uma ruptura do status quo, tudo isso pode levar à depressão. Algumas pessoas ficam deprimidas quando mudam de emprego, mesmo que quisessem fazê-lo. O mesmo acontece quando algumas se casam ou têm filhos.
Como lidar com a possibilidade de um novo colapso?
A depressão é uma doença cíclica, e a maioria das pessoas que teve um episódio terá outro. A primeira coisa é saber disso e estar preparado. A segunda é certificar-se de que você tem um bom tratamento. Eu, por exemplo, tomarei medicação e farei terapia o resto da vida. Mas, além disso, conheço os sinais de alerta e tento ser sensível a eles. Quando começo a me sentir mal, volto a ser rigoroso com meus horários de sono, com os exercícios, com tensões desnecessárias. É importante planejar essas estratégias enquanto você está se sentindo bem, caso a depressão volte a bater à porta. Às vezes, com terapia e medicação, é possível evitar uma recaída, mas muitas vezes não é. Quase sempre é possível, no entanto, que as recaídas sejam menos frequentes e profundas.
A depressão varia de cultura para cultura?
Na essência, é a mesma. Eu me propus a quebrar a ideia de depressão como uma doença da modernidade ocidental e de classe média, demonstrando que existe ao longo do tempo (Hipócrates fez uma das melhores descrições do distúrbio); que existe em todas as culturas (fui olhar a depressão entre os inuits da Groenlândia, entre os sobreviventes do Khmer Vermelho no Camboja e examinar rituais tribais para tratar a doença na África Ocidental); e em todas as classes. A ansiedade aguda pode ter um foco diferente, por exemplo. Mas sua característica fundamental é surpreendentemente consistente.
No ano 2000, 815 mil pessoas tiraram a própria vida. No Brasil, tivemos um aumento de 30% na mortalidade por suicídio entre os mais jovens, homens especialmente, nas últimas duas décadas. Mas pouco se trata do tema. O tabu em torno do suicídio pode comprometer o diagnóstico da depressão, considerada uma de suas principais causas?
É verdade: quase todo suicídio é resultado da depressão. Algumas pessoas cometem suicídios racionais porque têm, por exemplo, uma doença terminal avançada e não querem morrer sentindo uma dor insuportável. Mas, em geral, o suicídio é o ponto final de uma depressão não tratada. A natureza epidêmica do suicídio é resultado da nossa falta de cuidado com a saúde mental, a visão corrente de que as doenças mentais não são doenças reais. Elas são doenças reais, e elas matam pessoas. Prevenção é um imperativo urgente para os governos e agências de serviços sociais. As pessoas podem ser resgatadas da beira do precipício.
A depressão cresce entre as crianças?
Sim, em parte pelas razões pelas quais está aumentando em toda a sociedade, mas também porque as crianças estão sob mais pressão, são mais superestimuladas, mais levadas a se movimentar de um lugar para o outro e de escola para escola. Isso acontece porque os pais estão ambos trabalhando fora, e as crianças têm ficado com uma variedade de cuidadores que as amam menos que os pais. Isso acontece por causa do colapso da família.
No seu último livro, Longe da Árvore, o senhor conta histórias de pais que não apenas aprendem a lidar com seus filhos deficientes como acham um significado profundo em fazer isso. Por que escolher esse tema?
Eu sou o filho gay de pais heterossexuais, e sempre me impressionei com quão difícil era para a minha família me entender. Se compartilhássemos a mesma qualidade definidora de identidade, talvez fosse mais fácil. Tempos depois, numa missão jornalística, descobri que a maioria das crianças surdas nasce de pais que ouvem, e que elas se aproximam entre si na adolescência. Em seguida, um amigo de um amigo teve uma filha anã, e percebi que a maioria dos anões nasce de pais de estatura padrão. Enfim, constatei um padrão de pais que têm filhos profundamente diferentes deles, e vi que todas essas crianças tinham algo em comum, assim como essas famílias tinham semelhanças entre elas. Quando se conhece a experiência de negociação entre pais e filhos tão diferentes, de repente se está falando da maioria da humanidade. Nossas diferenças nos unem. Eu queria escrever um livro não sobre o sofrimento, mas sobre o amor - sobre quantos tipos de amor podem prosperar mesmo quando as circunstâncias parecem se armar contra eles.

Mais de 50 tons de cinza


15 de setembro de 2013 | 2h 15

CARLOS MELO, CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO , E PROFESSOR DO INSPER - O Estado de S.Paulo
Não sejamos ingênuos: é claro que entre Justiça e política há vários tons de cinza. Quanto mais o País se aperfeiçoa, essa confusão diminui. Mas ainda não chegamos lá. Política envolve paixões, interesses e projetos de poder. A Justiça deveria frear, conter as paixões, limitar interesses ao legal e ao legítimo. Política é conflito na perspectiva de construir consensos, que viram lei, pactos consignados. Lei é a expressão da política. Juízes aplicam as leis de acordo com o espírito que as embalaram. Natural que haja fricção entre esses poderes, mas, cada um na sua esfera, o normal é que acertem o passo.
Não tem sido assim, porém. Não é muito simpático admitir, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assumido posição de proa na representação dos anseios políticos de parte da população e isso abre espaço para confusão desses tons de cinza. Assim, do julgamento da Ação Penal 470, o mensalão, passou-se a esperar o resgate de uma pretensa cidadania que deveria vir pelas mãos da política. Não que exatamente se fizesse justiça, mas que se justiçasse - menos que justiça, a vingança. Em alguns momentos, pairou no ar o julgamento político, como o de Danton. Nada menos que a guilhotina foi aceitável.
Não há santos nem vítimas. Há réus e juízes, direitos e deveres, não há guerra santa. Alguém pode ser acusado por se defender? Perigoso é que o debate produza vilões e heróis, de modo que a figura enérgica do ministro Joaquim Barbosa assumisse o vulto não do juiz, mas do paladino da Justiça. Que, na criatividade dos ângulos em que foi fotografado, se revelasse um Batman - e o Brasil, sua Gotham City. O tribunal, lócus da maior expressão da racionalidade e do direito, não é a Liga da Justiça. Barbosa tem méritos, mas não é maior que a instituição que preside.
Não é salutar que assim seja. Mas, aplaudido pelas ruas, sua importância apenas revela o vazio de lideranças políticas críveis, colocadas acima da miséria dos pequenos interesses partidários. Evidencia a falência da política e sua judicialização. O clichê faz sentido: não há mesmo vácuo em política. Mas na democracia outro clichê também diz que o que se teme é a Justiça, não o juiz. Na personalização da instituição, tudo em torno do mensalão virou dramático, apaixonado, decisivo: ajuste de contas. O local da política e do espetáculo da política se deslocou: os embates entre Barbosa e Lewandowski melhor caberiam nas tribunas da Câmara e do Senado.
Há alguns meses, eufóricos apressados qualificavam o julgamento como "o maior marco histórico da Justiça do País" e o mensalão, "o maior escândalo de todos os tempos", "a maior crise". O exagero deforma imagens e, com isso, a compreensão da realidade. Dizia-se que a partir de então tudo seria diferente. Calma, o processo é necessariamente mais lento. Fez-se uma grande arquibancada com torcidas em cólera e, de cada lado, as imagens se invertiam: heróis viravam vilões; vilões, heróis. A história instantânea daqueles dias foi rapidamente produzida e publicada em pó, para ser diluída no gosto de sangue, na saliva da opinião pública.
Nessa semana, porém, nas ruas e nas redes sociais esse clima se inverteu, e tudo que parecia sólido tornou-se vertigem e frustração. Euforia e precipitação levam a isso. Do Supremo, antes redenção nacional, gritou-se: "Absurdo!" Especulou-se até - há especulação para todos os gostos na internet - que Barbosa pudesse (ou devesse) vir a renunciar à presidência do tribunal. E na expectativa do posicionamento do ministro Celso de Mello, de recentes votos tão duros, a maior apreensão: como pode ou poderá o decano dar agora pelo menos essa razão aos réus que acabara de condenar? Para os anais, ficarão os diálogos de quinta-feira entre Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso, o novato insurgente. Servir ou não às multidões foi a raiz da desinteligência de suas excelências. Mas é o "xis" do problema.
A mesma instituição decantada há apenas alguns dias agora é posta em dúvida. A euforia dá lugar a uma despropositada descrença. É essa a volatilidade de nossa autoestima. Mas nada é tão decisivo nesses embargos aflitivos. Seus críticos que resolvam se o STF que ontem puniu tem ou não legitimidade - agora e no passado. Novos eufóricos que definam: a suposta grandeza e legitimidade de agora não é a mesma de antes?
Contar a história como convém não nos retira do impasse. No mais, esses tons de cinza sempre existirão. Claro, a delonga do processo não é saudável. Provavelmente, nem mesmo para quem vive a expectativa e a agonia da aplicação das penas. O melhor para o tribunal, para o governo e para a vida que segue é que tudo tivesse finalmente seu término, página virada. Mas as coisas não são assim: há leis, direitos, interpretações e nem tudo se constrói sem contradição, idas e vindas. Juízes são humanos, possuem idiossincrasias e, como declarou Barroso, não estão acima da verdade. Nem da lei, certamente, em que pese as crenças de alguns novos heróis e de seus pares, na euforia das multidões que os seguem.