ENCHENTES: RETER AS
ÁGUAS DE CHUVA EM RESERVATÓRIOS DOMÉSTICOS E EMPRESARIAIS
Esse é o terceiro artigo de uma série de textos dedicados à
demonstração da importância das medidas ditas não estruturais no combate às
enchentes urbanas. Esses textos estão concebidos para, o mais didaticamente
quanto o espaço permite, demonstrar a imperiosa necessidade da adoção de uma
nova cultura técnica para a gestão dos problemas urbanos e orientar ações que
podem perfeitamente ser adotadas pela sociedade e pelas administrações públicas
e privadas desde já, por sua simples deliberação, sem nenhuma necessidade
burocrática que as desestimule a tanto.
Com os dois primeiros artigos tratamos dos bosques
florestados, da serapilheira, das calçadas drenantes e das valetas drenantes,
hoje trataremos dos reservatórios domésticos e empresariais destinados à
acumulação de águas de chuva.
Mas antes vamos recuperar o que, no primeiro artigo, já foi
esclarecido sobre as principais causas das enchentes urbanas. E vamos todos
também saber que as medidas não estruturais são aquelas que, inteligentemente,
atacam diretamente as causas das enchentes e não somente suas conseqüências.
Sobre as principais causas de nossas enchentes urbanas não
há hoje mais a menor dúvida sobre quais sejam: a impermeabilização generalizada
da cidade, o excesso de canalização de cursos d’água e a redução da capacidade
de vazão de nossas drenagens pelo volumoso assoreamento provocado pelos milhões
de metros cúbicos de sedimentos que anualmente provém dos intensos processos
erosivos que ocorrem nas frentes periféricas de expansão urbana.
Esse quadro determina o que podemos chamar a equação das
enchentes urbanas: “Volumes
crescentemente maiores de água, em tempos sucessivamente menores, sendo
escoados para drenagens naturais e construídas progressivamente incapazes de
lhes dar vazão”.
Para se ter uma idéia da dimensão desse problema da impermeabilização
considere-se que o Coeficiente de Escoamento - índice que mostra a relação
entre o volume da chuva que escoa superficialmente e o volume que infiltra no
terreno - na cidade de São Paulo está em torno de 80%; ou seja, 80% do volume
de uma chuva escoa superficialmente comprometendo rapidamente o sistema de
drenagem. Em uma floresta, ou um bosque florestado urbano, acontece exatamente
o contrário durante um temporal, o Coeficiente de Escoamento fica em torno de
20%, ou seja, cerca de 80% do volume das chuvas é retido.
Diante de um cenário assim colocado, qual seria a providência mais
inteligente e imediata para combater as enchentes (e que estranhamente as
administrações públicas, todas muito simpáticas às grandes obras e aos seus
impactos político-eleitorais, não adotam)? Claro, sem dúvida, concentrar todos
os esforços em reverter a impermeabilização das cidades fazendo com que a região
urbanizada recupere ao menos boa parte de sua capacidade original de reter as
águas de chuva, seja por infiltração, seja por acumulação. Concomitantemente,
promover um intenso combate técnico à erosão provocada por obras pontuais ou
generalizadas de terraplenagem. Ou seja, fazer a lição de casa, parar de errar.
Parece fácil, mas não é. Essa mudança de atitude exigirá uma verdadeira
revolução cultural na forma como todos, especialmente nossa engenharia e nosso
urbanismo, até hoje têm visto suas relações com a cidade.
Tomada a decisão dessa mudança cultural, haverá à mão, inteiramente já
desenvolvido, um verdadeiro arsenal de expedientes e dispositivos técnicos para
que esse esforço de redução do escoamento superficial das águas de chuva seja
coroado de sucesso: calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos
drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, reservatórios para
acumulação e infiltração de águas de chuva em prédios, empreendimentos
comerciais, industriais, esportivos, de lazer, multiplicação dos bosques
florestados, ocupando com eles todos os espaços públicos e privados livres da
cidade.
Dentro desse elenco os dispositivos de acumulação de águas de chuva,
seja por simples reservação para utilização ou posterior descarte, seja por reservação
com infiltração, pelo que muito agradeceriam nossas águas subterrâneas, destacam-se
dos demais pelo grande volume que podem reter e pelos resultados rápidos que
proporciona; isto é, esses
dispositivos aumentam em muito a capacidade de retenção das águas pluviais no
momento de pico de um episódio pluviométrico com potencial de causar
inundações. Importante
ainda considerar que os dispositivos e providências a seguir descritos não são
frutos de uma imaginação criativa, são com sucesso e largamente utilizados em
cidades americanas, européias e japonesas que, como São Paulo, são submetidas
ao risco de enchentes.
Sua adoção deve ser
de obrigatoriedade legal, mas seria extremamente recomendável que, ao menos em
uma fase inicial, houvesse do poder público algum tipo de incentivo fiscal que em
parte compensasse os gastos privados em sua implantação.
Há já para o Estado
de São Paulo a inovadora Lei das Piscininhas, Lei n.º 13.276, de 4 de
janeiro de 2002, a qual obriga lotes urbanos que tenham mais de 500 m2
de área impermeabilizada a implantar reservatórios para acumulação de águas de
chuva. Uma lei pioneira, mas que por um inegável desinteresse das
administrações públicas e por alguma complexidade de seu entendimento acabou
não gerando os resultados esperados. Pode-se evoluir nessa legislação,
tornando-a mais abrangente e de fácil entendimento e fiscalização. O autor
desse texto sugere que uma nova legislação deva trabalhar com uma expectativa
de acumulação de 2 m3 de água para cada 100 m2 de área do
lote urbano ocupado por edifícios
com mais de três (3) andares ou edificações de qualquer altura com área
impermeabilizada maior que trezentos metros quadrados (300 m2), e de
acumulação de 1 m3 para cada 100 m2 do lote urbano
ocupado por edificações térreas com área impermeabilizada menor que 300 m2.
Uma legislação assim concebida deverá ter validade tanto para áreas privadas
como para áreas públicas. Áreas extensas, privadas ou públicas, com baixa ou
nenhuma ocupação predial, como praças, parques, terrenos desocupados, também
deverão estar submetidos a uma legislação específica que os obrigue a acumular
águas de chuva.
Para se ter uma idéia aproximada da eficiência desses
sistemas de acumulação/infiltração considere-se uma quadra urbana de 10.000 m2
dividida em lotes de 1.000 m2 ocupados por prédios de
apartamentos. A uma proporção de acumulação de 2 m3 / 100 m2 teríamos
para toda a quadra uma capacidade de acumulação/infiltração de 200 m3 de
águas pluviais. Considerada uma chuva crítica de 60 mm – que corresponderia a
um volume total de 600 m3 de água sobre a área considerada - somente
com esses dispositivos teríamos reduzido o Coeficiente de Escoamento dessa
quadra em cerca de 35%. Considerando que as áreas que por legislação existente
devem ser deixadas permeáveis retenham, em projeção conservadora, algo próximo
de mais 15% do volume total dessa chuva, e mais 10% tenham se consumido como
água de molhamento e perdas por evaporação, teríamos chegado para a referida
quadra de 10.000 m2 a um Coeficiente de Escoamento em torno de 40%;
ou seja, somente 40% do volume de águas de chuva que nela incidissem chegariam
ao sistema urbano de drenagem. Sem dúvida, um índice compatível com uma cidade
tecnicamente civilizada na gestão de suas águas pluviais.
Para que se obtenha a maior funcionalidade desses
dispositivos dentro de um programa de combate as enchentes a operação de
acumulação e esgotamento deverá ser coordenada centralizadamente pelo
município, de forma que frente a cada nova possibilidade de chuvas críticas a
capacidade de acumulação esteja sempre totalmente disponível.
Quantos aos famosos píscinões, grandes reservatórios de
retenção de águas de chuva que têm sido construídos no espaço urbano público, o
grande problema é que, diferentemente das cidades de países desenvolvidos que os
adotam, nossas grandes cidades apresentam dois fenômenos gravíssimos, que
obrigam técnicos, administradores públicos e sociedade entenderem o piscinão
como a última das alternativas técnicas a se lançar mão para o retardamento da
velocidade de escoamento das águas de chuva: a enorme e perigosa carga de
poluição de suas águas superficiais e a fantástica carga de sedimentos
originados especialmente da erosão nas zonas periféricas de expansão urbana
que, acrescidos de lixo e entulho de construção civil, acaba por assorear e
entulhar rapidamente esses dispositivos. Assim, além dos transtornos
urbanísticos a eles associados, os piscinões constituem gravíssimos focos de
riscos sanitários e ambientais, fato comprovado pela desvalorização imobiliária
que provoca em sua área de entorno.
A seguir são ilustrados vários exemplos de dispositivos de
acumulação e infiltração de águas pluviais, ressaltando-se, entretanto, que o
tema admite ainda uma extensa dose de criatividade e inventividade técnicas, ou
seja, de inovações tecnológicas que permitam a escolha mais adequada para cada
situação particular considerada.
Geól.
Álvaro Rodrigues dos
Santos (santosalvaro@uol.com.br)
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Ex-Diretor de
Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
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Autor dos livros
“Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da
Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos” e “Cubatão”
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Consultor em Geologia
de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
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Membro do Conselho de
Desenvolvimento das Cidades da Fecomércio