terça-feira, 27 de setembro de 2011


A saúde doente

A penalização dos hospitais públicos por uma política vesga ao primado da vida e ao direito coletivo à assistência médica e hospitalar, perfeitamente possível, degrada a disponibilidade desses serviços

25 de setembro de 2011 | 3h 08
O Estado de S.Paulo
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O boicote dos médicos a vários planos de saúde, que lhes pagam pelas consultas menos do que recomenda o índice de inflação, indica, antes de tudo, que é outra a saúde que vai mal: a da economia brasileira. A inflação crescente e preocupante, em vista de gastos perdulários e imprudentes dos três poderes, assombra os que vivem de salário e temem o pior: serem lesados no desencontro de reajustes entre os ganhos dos que lucram com a medicina e os dos que nela trabalham.
A reclamação dos médicos no fundo é um termômetro da saúde da economia. Dados exibidos em sua greve anterior, de abril, mostravam que o faturamento anual dos planos médico-hospitalares, entre 2003 e 2009 mais que dobrou: subiu 129%. Em contrapartida, o preço médio pago por consulta médica teve um reajuste de apenas 44%. Neste ano, denunciam os médicos, ainda há operadoras de companhias de seguros que pagam R$ 20 por consulta médica, dois cartuchos de pipoca numa rede de cinemas de São Paulo. Não sei se há muita gente disposta a medir o valor de sua saúde e de sua vida por esses parâmetros.
Entre 2000 e 2010, o índice de elevação dos preços ao consumidor foi de 106,33%, enquanto a Agência Nacional de Saúde autorizou aumentos que somaram 132,97% nos planos individuais e familiares de saúde. Esses aumentos se tornaram brutalmente descompassados entre 2004 e 2007, os segurados pagando pelo seguro-saúde muito mais do que a inflação de cada ano. No fim das contas, o governo impôs aos segurados a elevação do preço do seguro-saúde, mas os ganhos adicionais foram para as empresas de seguro e não para o reajuste do atendimento médico.
Há no Brasil 46 milhões de segurados, 46 milhões de brasileiros transferidos para a medicina privada, aliviando, portanto, os custos da medicina pública que deveria assisti-los. O que praticamente indica um comprometimento do ideal de termos uma medicina social adequada ao tamanho e às carências do País. O primado do lucro na questão da saúde privada revela sua irracionalidade no boicote destes dias, o segundo do ano, em face da inflação que cresce e do desgaste do valor de salários e ganhos dos que vivem de seu trabalho profissional. A previsão da Comissão Nacional de Saúde Suplementar é a de que os planos de saúde devem faturar mais de R$ 70 bilhões em 2011.
Pesquisa realizada pelo DataFolha, mostrou que 92% dos médicos da amostra já sofreram interferência dos planos de saúde em sua autonomia profissional, muitos deles no sentido de desestimular internações hospitalares, procedimentos e prescrição de medicamentos de alto custo. Portanto, os agentes do economismo que invadiu a prática médica, em nome dos interesses das seguradoras, transformaram-se em substitutos do médico sem que seus critérios tenham passado pelos rigores dos exames que comprovam quem está ou não habilitado para o exercício da medicina.
Curiosamente, a hostilidade até frequente contra médicos, enfermeiros e atendentes que se pode observar em hospitais públicos, dos que reclamam a prontidão que alegam haver na medicina privada, não alcança essas anomalias em hospitais particulares. Uma insidiosa e postiça indisposição contra os hospitais públicos deforma a avaliação popular dos verdadeiros problemas que nos hospitais públicos há, que são os do menosprezo pela saúde pública no rateio dos recursos do governo. No fim, nessa sovinice indevida, o governo se torna propagandista e corretor das companhias de seguros.
A arquitetura organizacional do SUS, no que respeita à medicina pública, é boa, bem pensada, otimiza a infraestrutura disponível. A grande questão é a insuficiência de médicos, de enfermeiros e de hospitais. O próprio estabelecimento de critérios de precedência e prioridade no atendimento já indica que estamos em face de muita gente para pouca e geralmente boa medicina. Marcar uma consulta pode levar meses. E fazer um exame solicitado pelo médico pode levar outros tantos meses. Sem contar que, depois disso, marcar e conseguir o retorno pode tomar mais meses ainda. De modo que, entre a hipótese inicial de diagnóstico e o retorno ao médico, para verificação dos resultados e recomendação do tratamento, pode decorrer longo tempo. Cabe, em certos casos, perguntar se o tempo decorrido e a evolução natural da enfermidade não invalidam o diagnóstico, além de invalidar o tratamento eventualmente recomendado depois de tanto tempo.
Há medicina de primeiro mundo também em hospitais públicos, talvez mais neles do que na maioria dos hospitais particulares para quem depende de seguro-saúde, sobretudo em face das interferências indicadas na pesquisa do DataFolha. Entretanto, a penalização dos hospitais públicos por uma política vesga ao primado da vida e ao direito coletivo à assistência médica e hospitalar, que é perfeitamente possível entre nós, nos coloca num estágio retrógrado da disponibilidade desses serviços. Até Cuba, que é muito mais pobre do que nós, não descura caráter social da medicina a todos acessível.


Emborcamento precoce Na cidade de São Paulo, um em cada três estudantes entre 15 e 18 anos já bebeu cinco ou mais doses de álcool em uma única ocasião

25 de setembro de 2011 | 3h 06
O Estado de S.Paulo
ARTHUR GUERRA DE ANDRADE
O uso nocivo de álcool resulta em 2,5 milhões de mortes por ano no mundo. Cerca de 320 mil jovens entre 15 e 29 anos de idade morrem de causas relacionadas a essa substância - o equivalente a 9% de todas as mortes nessa faixa etária. Tais estimativas, da Organização Mundial da Saúde (OMS), são preocupantes, tanto é que, em menos de uma semana, tivemos ao menos dois eventos importantes relacionados ao assunto.
No dia 19 foi realizada uma reunião de alto nível da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre prevenção e controle de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs), aberta pela presidente Dilma Rousseff. Nesse encontro (e na declaração política resultante dele), os principais fatores de risco em comum entre as DCNTs discutidas (doenças cardiovasculares, diabetes, câncer e enfermidades respiratórias crônicas), e evitáveis, foram: o sobrepeso e a obesidade resultantes da falta de uma alimentação saudável e da inatividade física, o tabagismo e o consumo nocivo de álcool.
Para diminuir o impacto deste último, ações e políticas públicas efetivas, baseadas em evidências científicas e adequadas ao contexto local, deveriam ser implementadas de maneira integrada por diferentes setores. Citou-se ainda o documento intitulado Estratégia Global para Redução do Uso Nocivo de Álcool, lançado pela OMS em 2010, que traz sugestões a serem aplicadas em todo o mundo - respeitadas, é claro, as diferenças culturais e socioeconômicas de cada país.
É nesse contexto de políticas públicas que se insere o segundo evento da semana: a Assembleia Legislativa aprovou o Projeto de Lei 698/2011, que proíbe, no Estado de São Paulo, a venda, a oferta, o fornecimento, a entrega e a permissão de consumo de bebida alcoólica, ainda que gratuitamente, aos menores de 18 anos de idade. Aqui, é importante apresentar o cenário do uso de álcool entre nossos jovens, baseado em pesquisas científicas recentes.
Um levantamento com estudantes do ensino médio em escolas particulares da cidade de São Paulo, realizado no ano passado, revelou que um em cada três estudantes entre 15 e 18 anos já havia bebido cinco ou mais doses de álcool em uma única ocasião, ao menos uma vez no mês anterior à pesquisa.
Quando analisamos o panorama brasileiro, nos deparamos com dados igualmente preocupantes. No 1º Levantamento Nacional sobre Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras, que contou com mais de 12 mil estudantes, verificou-se que 79% dos entrevistados menores de 18 anos já tinham consumido algum tipo de bebida alcoólica. Além disso, estima-se que o primeiro consumo ocorra entre 13 e 15 anos de idade, considerando a população geral brasileira de adultos jovens (entre 18 e 25 anos).
Isso é um sério problema de saúde pública porque na adolescência o sistema nervoso central ainda se encontra em desenvolvimento e, portanto, mais suscetível aos efeitos do álcool. Nota-se, ainda, que o uso precoce de tal substância é um importante indicativo de maior risco para o desenvolvimento de transtornos relacionados (abuso ou dependência).
Como especialista em dependência química há 30 anos, tenho a clareza de que o uso nocivo e a dependência do álcool, por ser uma questão complexa e multifatorial, não é um problema que pode ser resolvido de maneira simples e rápida, como muitos de nós gostaríamos.
Abordá-lo sob uma visão interdisciplinar é essencial para lidarmos de maneira mais adequada com esse problema de saúde pública global. Ações integradas e complementares, baseadas em evidências científicas, sustentáveis e, principalmente, eficazes somente poderão ser desenvolvidas e implementadas se instituições de diferentes setores contribuírem junto à sociedade. Nesse aspecto, unem-se prevenção e tratamento. Além disso, não podemos deixar de lado o desenvolvimento educacional e social - disseminar amplamente o conhecimento adquirido por meio de pesquisas científicas deve ser prioritário.
Sim, ainda há solução para o uso nocivo de álcool. Ela envolve investir fortemente em programas de prevenção, inibir de forma intensiva o uso nocivo dessa substância e recuperar aqueles que dela já se tornaram dependentes.



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Brasil bate Argentina na produção de soja, mas ganha muito menos dinheiro

Enquanto o Brasil tem impostos que privilegiam a exportação do grão, a Argentina incentiva o processamento industrial do produto

11 de setembro de 2011 | 0h 00
Raquel Landim / SÃO PAULO e Ariel Palacios / BUENOS AIRES - O Estado de S.Paulo
O Brasil produz mais soja, mas a Argentina ganha mais dinheiro com a exportação do grão e seus derivados. Apesar dos desmandos do governo Kirchner, que vive em pé de guerra com os agricultores, o país vizinho consegue mais dólares com a soja que vende ao exterior.
No campo de soja. Colheitadeira em operação; na soja, argentinos derrotam brasileiros - Dida Sampaio/AE-27/2/2009
Dida Sampaio/AE-27/2/2009
No campo de soja. Colheitadeira em operação; na soja, argentinos derrotam brasileiros
As exportações brasileiras de soja em grão, farelo e óleo somaram US$ 18 bilhões em 2010, enquanto, na Argentina, o complexo soja rendeu US$ 27 bilhões em divisas. O levantamento é da consultoria Abeceb.com, de Buenos Aires.
Na safra 2010/11, a produção brasileira de soja chegou a 75 milhões de toneladas, bem acima dos 49 milhões da Argentina. Segundo Carolina Schuff, analista da Abeceb.com, duas razões explicam a liderança da Argentina na receita, apesar da safra menor: perfis de consumo diferentes e maior agregação de valor.
Os argentinos destinam ao seu mercado interno cerca de 10% da soja que produzem. No Brasil, esse total chega a 35%. Não só o tamanho das populações é distinto - são 39,5 milhões de argentinos contra 190 milhões de brasileiros. Mas os hábitos de alimentação entre os dois países também mudam.
Na Argentina, as famílias cozinham com óleo de girassol, um produto caro no Brasil. Por aqui, a preferência é pelo óleo de soja. No Brasil, a indústria de carnes de frango e suína é bem desenvolvida, consumindo grande quantidade de farelo de soja. Na Argentina, predomina a carne bovina.
Mas é a segunda razão que preocupa. A Argentina esmaga 78% da soja, transformando o grão em farelo e óleo - produtos de maior valor agregado. No Brasil, a taxa de esmagamento é de 48% e boa parte dos derivados obtidos no processo atende a demanda local.
Guerra fiscal. A guerra fiscal entre os Estados brasileiros provocou uma mudança estrutural na indústria de esmagamento no Brasil. Há 15 anos, o País era o maior fornecedor mundial de derivados de soja - posto ocupado pelos argentinos. Entre 1996 e 2010, a fatia dos brasileiros no mercado de farelo e óleo de soja caiu, respectivamente de 47% e 44% para 28% e 20%.
Com a Lei Kandir, editada em 1996, o Brasil desonerou as exportações do agronegócio - o contrário do que faz a Argentina, onde os embarques são pesadamente taxados.
O problema é que, embora a soja em grão no Brasil siga para o porto sem pagar impostos, a indústria sai penalizada. Se o grão sai do Mato Grosso e para numa esmagadora no Paraná, por exemplo, paga 12% de ICMS. A esmagadora "mica" com um crédito que não consegue receber do governo.
Para fugir da tributação perversa, as esmagadoras diminuíram de tamanho e passaram a processar só a soja produzida no Estado e a vender os derivados no mercado interno.
Em 2010, o Mato Grosso ultrapassou o Paraná como maior esmagador de soja do País, mas as fábricas mato-grossenses têm capacidade de produção de cerca de 3 mil toneladas por dia, contra 6 mil das paranaenses. "As fábricas hoje trabalham engessadas", diz Fábio Trigueirinho, secretário executivo da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).
Na Argentina, o perfil da indústria é diferente. Situadas na província de Santa Fé, próximas dos portos, as fábricas processam 16 mil toneladas de soja ao dia.
Segundo Javier Burján, presidente da Câmara Arbitral da Bolsa de Cereais da Argentina, o custo do frete é baixo no país vizinho. Isso porque as áreas produtoras estão a 400 quilômetros do porto - pelo menos a metade da distância entre portos e regiões produtoras no Brasil. "A Argentina tem boa rentabilidade, apesar dos altos impostos de exportação. Nenhum outro país do mundo aplica tal volume de tributos sobre a soja", diz Burján.O governo Kirchner cobra 35% de imposto de exportação para o grão e 32% para farelo e óleo. As taxas são pesadas, mas a diferença favorece a industrialização.
O Brasil, porém, pode estar melhor posicionado hoje para atender o maior cliente global, a China. Os chineses criaram uma indústria de esmagamento e quase não importam farelo de soja. Preferem o grão e chegam a cobrar impostos de importação mais baixos.

Imposto caro
JAVIER BURJÁN,
BOLSA DE CEREAIS DA ARGENTINA
"A Argentina tem boa rentabilidade, apesar dos altos impostos de exportação. Nenhum outro país do mundo aplica tal volume de impostos sobre a soja"