quinta-feira, 8 de setembro de 2011



O balanço da Justiça

04 de setembro de 2011 | 0h 00
- O Estado de S.Paulo
O último balanço das atividades do Poder Judiciário, feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela que a instituição está longe de superar seus problemas estruturais. Apesar dos investimentos em informatização e digitalização de processos, criação de novas varas, expansão dos Juizados Especiais e contratação de mais juízes e servidores, os 91 tribunais do País permanecem lentos e ineficientes.
Em 2010, as despesas de custeio e investimento das Justiças Estaduais, Federal e Trabalhista custaram aos cofres públicos R$ 41 bilhões - valor equivalente a 1,12% do Produto Interno Bruto (PIB), a 2% dos gastos da União e dos Estados e a R$ 212,37 por habitante. O montante foi 3,7% superior ao de 2009. Em 2010, o Poder Judiciário contava 16.804 magistrados, cerca de 3% a mais do que no ano anterior. No mesmo período, a média de juízes por 100 mil habitantes passou de 8,50 para 8,70.
Tramitaram nos 91 tribunais, em 2010, 83,4 milhões de processos, dos quais 27 milhões - cerca de 32% do total - eram ações de execução fiscal. Calculada com base na divisão do número de processos novos e antigos pelo número de processos transitados em julgado, a taxa média de congestionamento da Justiça foi de 70%. Ou seja, de cada 100 ações, somente 30 foram julgadas em caráter definitivo. Na primeira instância, a taxa de congestionamento de execuções fiscais foi de 91% - de cada 100 ações, só 9 foram julgadas.
Além disso, a política de metas de produtividade adotada pelo CNJ para descongestionar o Poder Judiciário também não trouxe os resultados esperados. Em 2010, a meta era concluir todos os processos em 1.º e 2.º graus e nos tribunais superiores, distribuídos até dezembro de 2006 e todas as ações trabalhistas, eleitorais e militares protocoladas até dezembro de 2007. Na média, só 50% da meta foi cumprida. Os porcentuais de cumprimento mais altos foram atingidos pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelo Superior Tribunal de Justiça e os mais baixos, pelas Justiças Estaduais.
O balanço do Judiciário registra os mesmos problemas detectados desde que o CNJ passou a coordenar os levantamentos estatísticos da instituição em todo o País, a partir da metade da década de 2000. As únicas novidades estão no número de processos em tramitação - que aumentou apenas 0,6%, entre 2009 e 2010 - e no número de novas ações protocoladas na primeira instância das Justiças Estaduais, Federal e Trabalhista, que caiu de 25,5 milhões para 24,2 milhões. Em média, cada nova ação custou R$ 1.694, nas Justiças Estaduais e Federal, e R$ 3.200, na Justiça do Trabalho.
Embora o número de novos processos continue alto, os especialistas alegam que a queda de 3,9% é um indicativo de que os litígios judiciais - que vinham crescendo em progressão geométrica desde 1990, quando foram protocolados 5,1 milhões de novas ações - parecem ter chegado ao teto. A maioria desses processos - que congestionam os Juizados Especiais, criados para permitir a tramitação mais rápida dos litígios de baixo valor - envolve os chamados conflitos de massa, entre os quais se destacam as ações contra a Previdência Social, instituições financeiras e concessionárias de serviços básicos e as ações abertas por órgãos de classe e entidades corporativas para cobrar taxas e mensalidades atrasadas. Em média, o valor que essas entidades discutem é de R$ 1,5 mil e o custo das ações para o Judiciário é de R$ 4,5 mil.
Para o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, enquanto distorções como essa não forem equacionadas, o Judiciário continuará congestionado e lento. "Os números são preocupantes", afirma Peluso, depois de admitir que quase todos os 91 tribunais do País continuam em débito com a sociedade. Para enfrentar o problema, o Congresso vem discutindo a reforma da legislação processual e o CNJ já encomendou ao Ipea um estudo para propor soluções para os problemas da Justiça Federal. Essas iniciativas são importantes, não há dúvida, mas demoram para dar resultado. 

'Percebi que os EUA não seriam os mesmos'

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Foi clara a percepção de que testemunhávamos algo muito grave

04 de setembro de 2011 | 0h 00

Rubens Barbosa - O Estado de S.Paulo
No dia 11 de setembro de 2001, às 12 horas, eu tinha agendado no Pentágono um almoço com o subsecretário Rogelio Pablo Maurer. Mal podia imaginar que naquele mesmo dia a sede do Departamento de Defesa americano estaria em parte destruída pelo choque de um avião pilotado por terroristas.
Na manhã do dia 11, por volta das 9 horas, eu me preparava para ir da residência à chancelaria quando recebi um telefonema do ministro Marcos Galvão sugerindo que visse na televisão o que estava acontecendo em Nova York: um avião chocara-se contra uma das torres do World Trade Center. Liguei a TV e vi uma aeronave bater numa das torres. Como muitos, supus tratar-se de replay, mas, na realidade, o que estávamos vendo era o choque do segundo avião. Fui imediatamente para a embaixada, onde recebi uma série de telefonemas de outros embaixadores.
Naquele momento, tive a clara percepção de que estávamos presenciando um fato de extrema gravidade, totalmente inédito, que afetaria profundamente os EUA e, em decorrência, o mundo todo.
Chegavam rumores de novos aviões sequestrados e explosões em vários locais, como no Departamento de Estado, além de informações sobre o choque de uma terceira aeronave contra o Pentágono. Muitos embaixadores fecharam suas missões. Decidi que ficaria na embaixada com todos os diplomatas e funcionários para, se necessário, ajudar a comunidade brasileira em Washington e entrar em contato com o presidente Fernando Henrique. Só consegui falar com o presidente mais de uma hora depois dos ataques, tal era o congestionamento no sistema nacional de comunicação. O objetivo era descrever o cenário em Washington e transmitir minhas primeiras impressões sobre as reações à tragédia na capital americana. Comentei com o presidente que esses acontecimentos haveriam de repercutir profundamente na política interna e externa americana.
No dia seguinte à tragédia, preocupado em ter notícias do subsecretário Maurer, telefonei-lhe. Para minha surpresa, ele insistiu que nos encontrássemos para almoçar e ver in loco o resultado do ataque ao Pentágono. Ao estilo americano, nosso almoço resumiu-se a um sanduíche com Coca-Cola e saímos para percorrer os interiores do Pentágono e alguns corredores do lado oposto à área destruída. Pude ainda sentir o cheiro forte das cinzas e do querosene no setor em que se localiza o gabinete do Secretário de Defesa. Em seguida, pelo lado de fora, visitei o local do atentado e vi a extensão dos danos.
"Você tem mais sorte do que imagina", disse Maurer, explicando que, por razões burocráticas, não se havia mudado para aquela área e nosso encontro do dia 11 teria ocorrido exatamente no lugar do impacto onde mais de 120 pessoas morreram.
FHC, ainda na manhã do dia 11, enviou mensagem a Bush e fez uma declaração expressando a condenação e o repúdio do governo brasileiro aos ataques, bem como nossa total solidariedade ao povo americano pela morte de tantos civis. A maior preocupação do governo brasileiro naquele momento dizia respeito às consequências econômicas da grave crise e a seu impacto sobre nossa economia, que começava a se recuperar.
A reação do Brasil foi rápida não só na manifestação de solidariedade e nas medidas de cautela tomadas pela área econômica, mas também ao invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), assinado em Petrópolis, em 1947. O tratado previa a aplicação de mecanismos de defesa coletiva e de solidariedade hemisférica em caso de ataque a um dos países-membros.
O Brasil apoiou, igualmente, as resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU contra o terrorismo e passou a atuar nos mecanismos informais criados no esforço antiterrorista, até mesmo quanto ao controle dos fluxos financeiros que poderiam estar servindo às redes de organizações criminosas. Minha impressão inicial de que os EUA jamais seriam os mesmos se confirmou, como pude testemunhar ao longo do restante do tempo que vivi em Washington.

ERA EMBAIXADOR DO BRASIL NOS EUA EM SETEMBRO DE 2001. ESTE RELATO ESTÁ NO LIVRO "O DISSENSO DE WASHINGTON", QUE SERÁ LANÇADO NO DIA 27

Bush avisado
O presidente George W. Bush falava numa escola na Flórida na manhã do 11 de Setembro, quando seu chefe de gabinete, Andrew Card, cochichou-lhe: "O país está sob ataque". Dois minutos antes, um Boeing 767 com 51 passageiros explodira contra a Torre Sul do WTC. O comandante-chefe da maior potência do mundo passou sete minutos sentado, catatônico, segurando um livro infantil 

O mundo sem regras


O mundo sem regras

Uma nova lógica no uso da força e o discurso de 'guerra de civilizações' mudaram a ordem global desde 2001

04 de setembro de 2011 | 0h 00

Matias Spektor - O Estado de S.Paulo
ESPECIAL PARA O ESTADO
Do alto. Imagem rara da polícia de NY mostra momento exato da queda da 1ª torre - AP/NYPD
AP/NYPD
Do alto. Imagem rara da polícia de NY mostra momento exato da queda da 1ª torre
Os ataques do 11 de Setembro inauguraram uma década de violência brutal. Também abriram a porta para transformações profundas na ordem internacional.
O primeiro impacto foi o novo uso da força. "Não há regras", anunciou o presidente George W. Bush seis dias após os ataques. Meses depois, a Casa Branca suspendeu direitos civis, lançou mão da tortura de prisioneiros de guerra, listou inimigos sem direito ao devido processo legal, promulgou doutrina de ataques preventivos e forjou evidências para invadir o Iraque. A autodefesa diante das atrocidades de Osama bin Laden ganhou caráter retaliatório e punitivo.
A legitimação veio da mão da teoria do "choque das civilizações", visão segundo a qual o embate épico entre Ocidente e Islã é marca registrada de nossa era. Nessa perspectiva, a luta estava dada entre nações "civilizadas" versus "povos bárbaros".
Mas a distinção era artificial. Apagava conflitos e contradições inerentes a qualquer tradição cultural, seja cristã ou islâmica. Confundia o programa genocida de um facínora - Bin Laden - com o islamismo, força transnacional capaz de conviver com formas sofisticadas de ciência, cultura e democracia, como vêm provando a Indonésia, a Turquia e a Malásia.
Mais do que isso, a imagem de um Ocidente racional e moderno em oposição ao fanatismo irracional do mundo islâmico ignorava o longo pedigree do terrorismo politicamente orientado em sociedades ocidentais - do IRA ao Baader Meinhof, do Weathermen ao terrorismo de Estado na América Latina. Ignorava a virulência do terror de Bin Laden contra países islâmicos que ele considerava ilegítimos. Também escondia o apoio do primeiro escalão da Casa Branca, que nos anos 80 viam Bin Laden como "guerreiro da liberdade" na luta contra a URSS.
A crença num "choque das civilizações" teve graves consequências práticas. Deu força àqueles que, em 2001, defendiam a lei apenas para o clube de países "civilizados". Na Casa Branca de Bush, a chamada "guerra ao terror" não deveria ser condicionada pelos parâmetros tradicionais do direito internacional dos conflitos armados. Ela demandava ações excepcionais. Não seria uma "guerra justa", mas uma "guerra santa".
O tema religioso foi recorrente após o 11 de Setembro. A cruzada jihadista de Bin Laden encontrou uma resposta fervorosa na crença americana nos princípios imutáveis de justiça universal. A religião foi elemento crucial para imantar o patriotismo e o ativismo cívico americano na invasão do Iraque, em 2003. Nessa concepção, os EUA gozariam de "direito natural" para ditar a resposta ao terrorismo internacional, com o apoio inquestionável do resto do globo.
Esse ambiente fortaleceu a arrogância que tomou conta de Washington logo após os ataques de 2001. Para neoconservadores, a promoção da democracia era um valor superior ao da soberania nacional e deveria ser implementada como solução ao problema do terrorismo, mesmo que fosse à força. Para neoliberais, o outro lado da moeda era a validade universal dos princípios de boa governança de uma economia de mercado.
Essa arrogância não seria possível sem o formidável poder militar americano. A desigualdade de poder global em favor de Washington foi o combustível que tornou aquelas ideias um guia plausível para Bush.
Àqueles que tomavam as principais decisões à época, aliados eram opcionais e o melhor era chocar inimigos com o uso de força inconteste. Isso seria mais eficaz do que a trabalhosa busca por consensos em instituições multilaterais. Assim, a ONU serviria só quando fosse útil e na medida em que servisse a um cálculo de estrito interesse.
Quem ganhou e quem perdeu nestes dez anos? Ganharam todos aqueles que souberam aproveitar o ambiente global de uma "guerra ao terror" para vencer batalhas antigas. Álvaro Uribe na Colômbia e Ariel Sharon em Israel são exemplos de líderes que souberam usar o novo ambiente para avançar posições no embate político doméstico.
Ganhou também a entidade do Estado nacional. Até fins da década de 90, muitos prenunciavam o declínio do Estado como a melhor unidade para gerir a vida entre os povos. Para eles, havia outras formas de governança mais eficientes: a sociedade civil organizada, o mercado autorregulado ou redes transnacionais de gestores, juízes, técnicos e especialistas. Mas o 11 de Setembro criou o ambiente para o retorno do primado do Estado como guardião de cidadãos e fronteiras, fiador da estabilidade em áreas de difícil governo e mediador de conflitos internacionais.
Perderam os EUA. Dez anos depois, o país conseguiu dilapidar sua legitimidade e liderança. Perdeu duas guerras - no Iraque e no Afeganistão. Perdeu apoio e respeito de aliados e de potências emergentes. A superioridade moral de quem sofreu os ataques terroristas foi maculada por mentiras e o uso da tortura com sanção da Casa Branca. Mesmo a onda de simpatia internacional que marcou a chegada de Barack Obama ao poder não conseguiu restabelecer a liderança perdida. A promessa frustrada de fechar Guantánamo só piora uma situação que é péssima.
Isso não significa que os EUA estejam em declínio. O poder americano continua inigualável e sua sociedade, vibrante e criativa. Anunciar o fim da hegemonia americana seria um erro grave.
A mensagem daquele passado recente é clara: uma potencia pode ser inconteste, mas será incapaz de assegurar um sistema internacional estável, justo e afluente se a lógica de sua liderança for a imposição.
A lição. Dez anos atrás, os EUA lançaram um plano de engenharia social sem precedentes no Oriente Médio. O resultado medíocre transformou a região em celeiro do ressentimento contra a hegemonia americana. A invasão ilegal do Iraque ilustra o ponto: tratou-se de ocupação forçada, cheia de erros, injustiças e tentativas atabalhoadas de impor um modelo democrático e capitalista à força. O resultado é trágico pelo sofrimento que causou a centenas de milhares de iraquianos e a milhares de famílias americanas.
Hoje há o risco real de uma apropriação indevida. Ex-funcionários do governo Bush têm sugerido que a chamada primavera árabe é vitória não planejada do antecessor de Obama. Segundo essa visão, a intervenção no Iraque teria acendido o pavio da democracia no mundo árabe, cuja explosão ouve-se agora no Egito, Iêmen, Tunísia e Síria.
Esse argumento é falso. Nenhum dos movimentos revolucionários nesses países tem o Iraque como modelo - tampouco Washington como guia. Ao contrário, o nacionalismo de tons anti-imperialistas comanda os termos do debate público.
O argumento também é perigoso pois põe de lado os aspectos mais nefastos da ordem global da última década. Agora que a comunidade internacional precisa lidar com a restauração da Líbia, entender o significado de uma década é mais urgente que nunca.

É DOUTOR POR OXFORD E COORDENA O CENTRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV