O mundo sem regras
Uma nova lógica no uso da força e o discurso de 'guerra de civilizações' mudaram a ordem global desde 2001
04 de setembro de 2011 | 0h 00
Matias Spektor - O Estado de S.Paulo
ESPECIAL PARA O ESTADO
AP/NYPD
Do alto. Imagem rara da polícia de NY mostra momento exato da queda da 1ª torre
Os ataques do 11 de Setembro inauguraram uma década de violência brutal. Também abriram a porta para transformações profundas na ordem internacional.
O primeiro impacto foi o novo uso da força. "Não há regras", anunciou o presidente George W. Bush seis dias após os ataques. Meses depois, a Casa Branca suspendeu direitos civis, lançou mão da tortura de prisioneiros de guerra, listou inimigos sem direito ao devido processo legal, promulgou doutrina de ataques preventivos e forjou evidências para invadir o Iraque. A autodefesa diante das atrocidades de Osama bin Laden ganhou caráter retaliatório e punitivo.
A legitimação veio da mão da teoria do "choque das civilizações", visão segundo a qual o embate épico entre Ocidente e Islã é marca registrada de nossa era. Nessa perspectiva, a luta estava dada entre nações "civilizadas" versus "povos bárbaros".
Mas a distinção era artificial. Apagava conflitos e contradições inerentes a qualquer tradição cultural, seja cristã ou islâmica. Confundia o programa genocida de um facínora - Bin Laden - com o islamismo, força transnacional capaz de conviver com formas sofisticadas de ciência, cultura e democracia, como vêm provando a Indonésia, a Turquia e a Malásia.
Mais do que isso, a imagem de um Ocidente racional e moderno em oposição ao fanatismo irracional do mundo islâmico ignorava o longo pedigree do terrorismo politicamente orientado em sociedades ocidentais - do IRA ao Baader Meinhof, do Weathermen ao terrorismo de Estado na América Latina. Ignorava a virulência do terror de Bin Laden contra países islâmicos que ele considerava ilegítimos. Também escondia o apoio do primeiro escalão da Casa Branca, que nos anos 80 viam Bin Laden como "guerreiro da liberdade" na luta contra a URSS.
A crença num "choque das civilizações" teve graves consequências práticas. Deu força àqueles que, em 2001, defendiam a lei apenas para o clube de países "civilizados". Na Casa Branca de Bush, a chamada "guerra ao terror" não deveria ser condicionada pelos parâmetros tradicionais do direito internacional dos conflitos armados. Ela demandava ações excepcionais. Não seria uma "guerra justa", mas uma "guerra santa".
O tema religioso foi recorrente após o 11 de Setembro. A cruzada jihadista de Bin Laden encontrou uma resposta fervorosa na crença americana nos princípios imutáveis de justiça universal. A religião foi elemento crucial para imantar o patriotismo e o ativismo cívico americano na invasão do Iraque, em 2003. Nessa concepção, os EUA gozariam de "direito natural" para ditar a resposta ao terrorismo internacional, com o apoio inquestionável do resto do globo.
Esse ambiente fortaleceu a arrogância que tomou conta de Washington logo após os ataques de 2001. Para neoconservadores, a promoção da democracia era um valor superior ao da soberania nacional e deveria ser implementada como solução ao problema do terrorismo, mesmo que fosse à força. Para neoliberais, o outro lado da moeda era a validade universal dos princípios de boa governança de uma economia de mercado.
Essa arrogância não seria possível sem o formidável poder militar americano. A desigualdade de poder global em favor de Washington foi o combustível que tornou aquelas ideias um guia plausível para Bush.
Àqueles que tomavam as principais decisões à época, aliados eram opcionais e o melhor era chocar inimigos com o uso de força inconteste. Isso seria mais eficaz do que a trabalhosa busca por consensos em instituições multilaterais. Assim, a ONU serviria só quando fosse útil e na medida em que servisse a um cálculo de estrito interesse.
Quem ganhou e quem perdeu nestes dez anos? Ganharam todos aqueles que souberam aproveitar o ambiente global de uma "guerra ao terror" para vencer batalhas antigas. Álvaro Uribe na Colômbia e Ariel Sharon em Israel são exemplos de líderes que souberam usar o novo ambiente para avançar posições no embate político doméstico.
Ganhou também a entidade do Estado nacional. Até fins da década de 90, muitos prenunciavam o declínio do Estado como a melhor unidade para gerir a vida entre os povos. Para eles, havia outras formas de governança mais eficientes: a sociedade civil organizada, o mercado autorregulado ou redes transnacionais de gestores, juízes, técnicos e especialistas. Mas o 11 de Setembro criou o ambiente para o retorno do primado do Estado como guardião de cidadãos e fronteiras, fiador da estabilidade em áreas de difícil governo e mediador de conflitos internacionais.
Perderam os EUA. Dez anos depois, o país conseguiu dilapidar sua legitimidade e liderança. Perdeu duas guerras - no Iraque e no Afeganistão. Perdeu apoio e respeito de aliados e de potências emergentes. A superioridade moral de quem sofreu os ataques terroristas foi maculada por mentiras e o uso da tortura com sanção da Casa Branca. Mesmo a onda de simpatia internacional que marcou a chegada de Barack Obama ao poder não conseguiu restabelecer a liderança perdida. A promessa frustrada de fechar Guantánamo só piora uma situação que é péssima.
Isso não significa que os EUA estejam em declínio. O poder americano continua inigualável e sua sociedade, vibrante e criativa. Anunciar o fim da hegemonia americana seria um erro grave.
A mensagem daquele passado recente é clara: uma potencia pode ser inconteste, mas será incapaz de assegurar um sistema internacional estável, justo e afluente se a lógica de sua liderança for a imposição.
A lição. Dez anos atrás, os EUA lançaram um plano de engenharia social sem precedentes no Oriente Médio. O resultado medíocre transformou a região em celeiro do ressentimento contra a hegemonia americana. A invasão ilegal do Iraque ilustra o ponto: tratou-se de ocupação forçada, cheia de erros, injustiças e tentativas atabalhoadas de impor um modelo democrático e capitalista à força. O resultado é trágico pelo sofrimento que causou a centenas de milhares de iraquianos e a milhares de famílias americanas.
Hoje há o risco real de uma apropriação indevida. Ex-funcionários do governo Bush têm sugerido que a chamada primavera árabe é vitória não planejada do antecessor de Obama. Segundo essa visão, a intervenção no Iraque teria acendido o pavio da democracia no mundo árabe, cuja explosão ouve-se agora no Egito, Iêmen, Tunísia e Síria.
Esse argumento é falso. Nenhum dos movimentos revolucionários nesses países tem o Iraque como modelo - tampouco Washington como guia. Ao contrário, o nacionalismo de tons anti-imperialistas comanda os termos do debate público.
O argumento também é perigoso pois põe de lado os aspectos mais nefastos da ordem global da última década. Agora que a comunidade internacional precisa lidar com a restauração da Líbia, entender o significado de uma década é mais urgente que nunca.
É DOUTOR POR OXFORD E COORDENA O CENTRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV
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