Aos 88 anos e com um tumor no esôfago, José "Pepe" Mujica fala com desenvoltura sobre a morte. "Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor", declara em entrevista à Folha. Diante do inescapável, "fazemos as perguntas eternas que não têm resposta" e "estragamos tudo, complicamos a vida dos outros bichos".
Mujica diz que temos "muito mais riqueza, mas somos seres piores". O ícone da esquerda e ex-presidente do Uruguai não se referia a Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Eldorado do Sul, Pelotas ou Taquara, mas é fácil transpor suas palavras, sua dura constatação, ao que se passa no Rio Grande do Sul. A água subiu na capital gaúcha assim como inundou muitas localidades do Maranhão, há alguns meses, e desceu morro abaixo em São Sebastião, há pouco mais de um ano. Água que sumiu assustadoramente na Amazônia e despencou em Dubai. Somos e continuaremos piores enquanto não pararmos de estragar o planeta, isso já parece óbvio.
É evidente o papel do jornalismo profissional diante da tragédia. Saímos de descrições tolas como "desastre natural" para a narração explícita de extremos da crise climática em questão de anos. Por força das evidências, mas também por decisão editorial. Há muito mais a fazer, no entanto.
Nestes dias em que os centímetros do Guaíba são acompanhados pelo país como números da Mega-Sena, a Folha conversa com o diretor de exploração da Petrobras, que minimiza a polêmica em torno da Foz do Amazonas, sem ser questionado sobre o colapso socioambiental no Sul.
Ao Valor Econômico, o secretário do Ministério da Fazenda, que agora ocupa assento no conselho da estatal, afirma, com absoluta tranquilidade, que o país será um dos últimos a deixar a produção de petróleo, pois o nosso é mais limpo.
A Folha faz editorial em "termos fortes", como descreve um leitor, achincalhando a intervenção do Planalto na Petrobras, mas não gasta nenhuma das pesadas linhas com a responsabilidade da empresa na indução de uma transição energética minimamente coerente com o momento do país.
São apenas exemplos da semana. Nada que comova como o cavalo Caramelo, a disputa pelo mérito de salvá-lo, a politização em torno da reconstrução, a desinformação e tudo mais que movimenta a mídia.
Esse é o problema. A imprensa parece satisfeita em pontuar os efeitos da crise climática, mas não a ponto de torná-la o item mais relevante de sua pauta. Não há nada mais importante no jornalismo atual. A tragédia não é em Porto Alegre ou no Rio Grande do Sul. A tragédia é de todos nós em todos os lugares, dado que é imensa a chance de o espectador atônito de hoje se tornar o personagem de amanhã.
Com a inestimável ajuda dos leitores, encerro com esta coluna três anos de crítica à Folha e uma campanha franca para que a questão ambiental se torne a prioridade das prioridades em um dos jornais brasileiros que mais lhe dá atenção. São tempos de horror, estamos muito longe do suficiente.
CAMPANHA
Se os últimos parágrafos transpiram certo ativismo, aqui ele se materializa. Há muitas colunas atrás, este ombudsman sugeriu que a complexa cobertura da Amazônia merecia um consórcio de veículos de imprensa semelhante ao montado na pandemia para combater a desinformação do governo Bolsonaro; é muito território e muito problema para poucos repórteres, não há orçamento que chegue.
Diante da espetacular onda de solidariedade gerada pela tragédia no Rio Grande do Sul, seria muito interessante que TVs, sites e jornais aproveitassem o ensejo para promover uma grande frente de letramento ambiental. Junto com o estímulo às doações a desabrigados, levar a sociedade a refletir e quantificar o quanto os próprios hábitos e votos na vida real ou virtual protegem ou prejudicam o planeta.
Há algo intrínseco que nos faz ajudar o próximo. Daremos um grande passo quando incluirmos no pacote algumas atitudes, notadamente as que evitamos por conveniência, preguiça ou ignorância.
É O MEU TAMBÉM
A casa de Mujica, registrada em foto na entrevista à Folha, lembra Porto Alegre. Talvez pela cozinha que mistura coisas, livros e alimentos nas prateleiras; é o lugar em que se passa a maior parte do tempo, onde há o calor do forno, do mate, da conversa. No fim de uma reportagem do Jornal Nacional, que faz intensa cobertura, a memória vem de novo. É preciso ser gaúcho para identificar nos poucos segundos da imagem do ginásio que distribui mantimentos os versos que os voluntários cantam: "É o meu Rio Grande do Sul, céu, sol, sul, terra e cor...". O piegas sucumbe rápido à nostalgia. Que o sol apareça e nos faça pensar antes de continuarmos a estragar tudo de novo.
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