Sei muito bem que não se comparam com as vidas e os sonhos levados pelas águas. Mas eles também são uma forma de vida e de sonho. Refiro-me aos livros, tomados e destruídos pelo enxurro, aos milhões, no Rio Grande do Sul. Não há exagero nesse número. Se cada exemplar de um livro pode ser insubstituível, pelo que representou na vida de uma pessoa, imagine essa morte em massa de páginas talvez ainda nem lidas. É duro constatar que o objeto em que se assentou o conhecimento humano nos últimos mil anos é tão frágil.
Assim como é frágil tudo o que permite ao livro existir e fazer a vida valer a pena: bibliotecas, livrarias, editoras, distribuidoras, gráficas. As fotos de Porto Alegre com os prédios quase submersos deram só uma tênue ideia. Quando a água acabar de baixar, as gráficas encontrarão suas impressoras com lama em cada arruela. Montanhas de bobinas de papel enrugado e perdido para sempre. Latões de tinta boiando e se jogando contra as paredes. Quantas palavras deixarão de ser impressas?
Editores e distribuidores ainda esperam ter acesso aos depósitos para calcular o tamanho da desgraça. Só se sabe que livrarias perderam grande parte do estoque, incluindo os livros já comprados e pagos e os consignados, que só seriam pagos quando vendidos. Tudo ficou sob cinco metros de água e agora entulho. E, com os computadores destruídos, como calcular os deveres e haveres?
Uma editora ficou sem a única coleção dos livros que editou, ou seja, sem sua memória. E os sebos, geralmente térreos, nas ruas mais baixas e desprotegidas, cheios de livros preciosos? Imagino o desespero dos livreiros gaúchos meus amigos, competindo com a água nas escadas, degrau por degrau, levando os títulos valiosos para as prateleiras mais altas, tentando salvá-los.
Porto Alegre sempre foi uma cidade literária —a última em que esse tipo de tragédia deveria ter acontecido.
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