terça-feira, 21 de maio de 2024

A REBELIÃO DAS ELITES CHRISTOPHER LASCH - Trecho do livro publicado pela Folha em 1995 (definitivo)

 São a classe trabalhadora e a classe média baixa que defendem limites ao aborto, apegam-se ao modelo familiar de pai-e-mãe como fonte de estabilidade num mundo turbulento, resistem às experiências de "estilos de vida alternativos" e nutrem profundas reservas quanto à atitude positiva ("affirmative action") e outras especulações da engenharia social em grande escala.

Hoje são as massas, e não a elite, que possuem o sentido altamente desenvolvido dos limites que Ortega identificava com a civilização. Os membros da classe trabalhadora e da classe média baixa entendem, ao contrário de seus superiores, que há limites inerentes ao controle humano sobre o curso do desenvolvimento social, sobre a natureza e o corpo, sobre os elementos trágicos da vida e da história humanas.
Enquanto jovens profissionais se submetem a um árduo programa de exercício físico e controles dietéticos planejados para encurralar a morte (para mantê-los em estado de permanente juventude, eternamente atraentes e "recasáveis"), as classes populares, por outro lado, aceitam a decadência do corpo como algo contra o qual é mais ou menos inútil lutar.
Os liberais da classe média alta montaram uma cruzada para sanear a sociedade americana - para criar um "ambiente livre do vício do fumo", para censurar tudo, de pornografia a "discurso hostil" e, ao mesmo tempo, incongruentemente, ampliar o âmbito da escolha pessoal em questões onde a maioria das pessoas sente necessidade de sólidas pautas morais.
Quando confrontados com a resistência a essas iniciativas, os membros da elite de hoje expõem a virulenta hostilidade que repousa (nem tão longe assim) por baixo da face da benevolência da classe média alta. Eles acham difícil compreender por que sua higiênica concepção da vida fracassa ao querer inspirar o entusiasmo universal.
Nos Estados Unidos, a "América média" (em inglês, "middle America", que inclui o México e a América Central) - termo que encerra ambas as implicações, geográfica e social - acaba simbolizando tudo o que se põe no caminho do progresso: "valores familiares", patriotismo irracional e fundamentalismo religioso, racismo, homofobia, visão retrógrada das mulheres.
Os "americanos médios", conforme são vistos pelos formadores de opinião letrada, são irremediavelmente deselegantes, fora de moda e provincianos. São ao mesmo tempo absurdos e vagamente ameaçadores - não porque desejem derrubar a velha ordem, mas precisamente porque a defesa que fazem dela parece tão profundamente irracional que se expressa, no mais alto alcance de sua intensidade, em religiosidade fanática, em sexualidade reprimida, que ocasionalmente explode em violência contra mulheres e gays, e num patriotismo que apóia guerras imperialistas e uma ética nacional de masculinidade agressiva. Simultaneamente arrogantes e inseguras, as novas elites observam as massas com um misto de desprezo e apreensão.
A rebelião das elites contra velhas concepções de prudência e restrição está ocorrendo numa época em que o curso geral da história já não favorece o nivelamento de distinções sociais, mas antes corre cada vez mais na direção de uma sociedade biclassista, em que os poucos favorecidos monopolizam as vantagens do dinheiro, da educação e do poder.
É inegável, claro, que os confortos da vida moderna estão, ainda assim, mais largamente distribuídos do que estavam antes da Revolução Industrial. Era a democratização do conforto que Ortega tinha em mente quando falava da "melhoria do nível histórico". Como muitos outros, Ortega estava impressionado com a inaudita abundância gerada pela moderna divisão do trabalho, pela transformação do luxo em necessidade e pela popularização de padrões de conforto e conveniência anteriormente reservados aos ricos.
Esses fatos (os frutos materiais da modernização) não estão em questão. Em nossa época, no entanto, a democratização da abundância - a expectativa de que cada geração desfrute de um padrão de vida além do alcance de seus predecessores - abriu caminho para uma inversão em que desigualdades antiquíssimas começam a se reestabelecer, às vezes a uma velocidade assustadora, outras vezes tão gradualmente que escapam à percepção.
As pessoas que se encontram entre os 20% mais altos na pirâmide de renda controlam hoje metade da riqueza do país. Nos últimos 20 anos, somente elas tiveram ganho líquido na renda familiar. Só nos breves anos da administração Reagan, seu quinhão da renda nacional cresceu de 41,5% para 44%. A classe média, generosamente definida como aqueles com renda variando de US$ 15 mil até 50 mil por ano, declinou de 61% da população, em 1970, para 52% em 1985.
Esses números transmitem uma impressão apenas parcial e imperfeita de mudanças momentâneas que aconteceram num período de tempo extraordinariamente curto. O crescimento inalterável do desemprego, agora ampliado até incluir trabalhadores de colarinho branco, é mais revelador. Como também o é o crescimento do "contingente da força de trabalho". O número de empregos de meio período dobrou desde 1980, equivale hoje a um quarto de todos os empregos disponíveis.

Não há dúvida de que esse crescimento maciço do emprego de meio período ajuda a explicar por que o número de trabalhadores protegidos por planos de aposentadoria, que subiu de 22% para 45% entre 1950 e 1980, decaiu para 42,6% por volta de 1986. Também ajuda a explicar a diminuição das filiações sindicais e a constante erosão da influência sindical. Toda essa marcha de acontecimentos, sucessivamente, reflete o declínio do emprego manufatureiro e a mudança para uma economia baseada cada vez mais na informação e nos serviços.
A classe média alta, o coração das novas elites profissionais e empresariais, define-se –à parte sua renda que cresce rapidamente– nem tanto por sua ideologia, mas sim por um estilo de vida que a distingue, de forma cada vez mais inconfundível, do resto da população. Trata-se de um estilo de vida glamouroso, ostentoso, às vezes indecentemente esbanjador.
A prosperidade desfrutada pelas classes profissionais e empresariais, que constituem a maioria dos 20% mais altos na pirâmide da renda, deriva em grande parte do emergente modelo conjugal, grosseiramente chamado de "contrato de acasalamento" ("assortative mating") –a tendência de homens se casarem com mulheres que possam contribuir com uma renda mais ou menos equivalente à deles.
Médicos costumavam casar-se com enfermeiras; advogados e executivos, com suas secretárias. Agora, os homens da classe média alta tendem a se casar com mulheres da própria classe, associados comerciais ou profissionais com suas próprias carreiras lucrativas.
"O que ocorre se o advogado de US$ 60 mil se casa com uma advogada de outros US$ 60 mil?", Mickey Kaus pergunta em seu livro "The End of Equality" (O Fim da Igualdade), "e se o funcionário de US$ 20 mil se casa com a funcionária de US$ 20 mil?". Então a diferença entre a renda deles torna-se de repente a diferença entre US$ 120 mil e US$ 40 mil.
"Embora essa tendência ainda esteja mascarada pela média muito baixa dos salários das mulheres, nas estatísticas de renda", Kaus acrescenta, "é óbvio para praticamente todos, até mesmo os especialistas, que algo assim está de fato ocorrendo". É desnecessário procurar muito além uma explicação para a atração do feminismo pela classe profissional e empresarial.
Como deve ser descrita essa nova elite social? Seu investimento em educação e informação (e não em propriedades) distingue-a da burguesia rica, cuja ascensão caracterizou um estágio anterior do capitalismo, e da velha classe proprietária –a classe média, no estrito senso do termo–, que formava o grosso da população. Esses grupos constituem uma "nova classe" só no sentido de que sua subsistência já não repousa tanto nos títulos de propriedade, mas na manipulação da informação e da especialização profissional.
Eles abrangem uma variedade bastante ampla de ocupações –corretores, banqueiros, promotores e fomentadores de bens imobiliários, engenheiros, consultores de todos os tipos, analistas de sistemas, cientistas, médicos, publicitários, editores, redatores, executivos de publicidade, diretores de arte, cineastas, animadores culturais, jornalistas, produtores e diretores de televisão, artistas, escritores, professores universitários– para serem descritos como uma "nova classe", ou uma "nova classe dirigente". Afora isso, falta-lhes uma perspectiva política em comum.
No secretário do trabalho Robert Reich, a nova elite americana encontrou seu filósofo. A categoria de "analistas simbólicos" criada por Reich em seu livro "The Work of Nations" (O Trabalho das Nações) serve como uma descrição algo tosca mas útil, empírica e bastante despretensiosa da nova elite. São pessoas, segundo Reich as descreve, que vivem num mundo de conceitos e símbolos abstratos, oscilando das cotações do mercado de valores às imagens visuais produzidas por Hollywood e pela Madison Avenue, e que se especializam na interpretação e disposição da informação simbólica. Reich compara-os com as outras duas principais categorias de trabalho: os "produtores de rotina", que desempenham tarefas repetitivas e exercem pouco poder sobre os destinos da produção; e os "servidores em pessoa", cujo trabalho também se baseia na rotina, em grande parte, mas "deve ser fornecido de pessoa para pessoa", não podendo portanto ser "vendido universalmente".
Se levarmos em conta o caráter altamente esquemático e necessariamente impreciso dessas categorias, elas correspondem de maneira bastante aproximada à observação cotidiana, a ponto de nos darem uma impressão razoavelmente acurada não apenas da estrutura ocupacional como também da estrutura de classe da sociedade americana hoje. Os "analistas simbólicos" estão claramente crescendo em riqueza e status, enquanto as outras categorias, que constituem 80% da população, estão decaindo.
O retrato que Reich traça dos "analistas simbólicos" é extravagantemente lisonjeiro. A seus olhos, eles representam o supra-sumo da vida americana. Educados em "escolas particulares de elite" e "escolas públicas suburbanas de alto nível, onde são encaminhados para cursos avançados", eles desfrutam de todas as vantagens que seus pais corujas lhes possam proporcionar.
"Seus professores e mestres estão atentos a suas necessidades acadêmicas. Eles têm acesso a laboratórios científicos do mais alto nível, computadores interativos e sistemas de vídeo em sala de aula, laboratórios de línguas e bibliotecas escolares "high-tech". Seus pares são intelectualmente estimulantes. Seus pais os levam a museus e eventos culturais, expõem-nos a viagens internacionais e lhes providenciam aulas de música particulares. Em casa eles têm livros educacionais, brinquedos educacionais, vídeos educacionais, microscópios, telescópios e computadores pessoais repletos dos mais recentes software educacionais."
Esses jovens privilegiados adquirem graus avançados nas "melhores universidades do mundo", cuja superioridade é provada pela habilidade que têm em atrair estudantes estrangeiros em grande número. Nessa atmosfera cosmopolita, eles superam a cultura popular provinciana que impede o pensamento criativo, segundo Reich. "Céticos, curiosos e criativos", eles se tornam solucionadores de problemas por excelência, à altura de qualquer desafio. Ao contrário daqueles que se envolvem em rotinas entorpecedoras da mente, eles amam o trabalho que fazem, que os envolve em eterno aprendizado e infinita experimentação.
Os intelectuais antiquados tendem a trabalhar sozinhos e serem ciumentos e possessivos em relação a suas idéias. Por comparação, os novos trabalhadores intelectuais –produtores de "insights" de alta qualidade em uma variedade de campos, indo do marketing e das finanças até a arte e o entretenimento –trabalham melhor em equipe.
continua

A REBELIÃO DAS ELITES

CHRISTOPHER LASCH

A "capacidade de colaboração" dos novos trabalhadores intelectuais estimula o "pensamento sistemático" –a habilidade de enxergar problemas na sua totalidade, absorver os frutos da experiência coletiva e de "discernir sobre causas, consequências e relacionamentos mais amplos".
Uma vez que o trabalho deles depende tão pesadamente do "trabalho em rede", eles se estabelecem em "bolsões geográficos especializados", habitados por pessoas como eles próprios. Essas comunidades privilegiadas –Cambridge, Silicon Valley, Hollywood– transformam-se em centros extraordinariamente elásticos de empreendimentos artísticos, técnicos e promocionais. Esses novos trabalhadores representam o epítome da conquista intelectual, na apaixonada visão de Reich, e da boa vida concebida como a troca de "insights", "informação" e mexericos profissionais.
Uma vez que alcance uma massa crítica, a concentração geográfica de produtores de conhecimento estimula incidentalmente um mercado para a crescente classe dos "servidores em pessoa", que suprem as necessidades daqueles. "Não é por acidente", diz Reich, "que Hollywood abriga um número visivelmente grande de professores de canto, treinadores de esgrima, instrutores de dança, agentes de artistas e fornecedores de equipamento fotográfico, acústico e de iluminação. Também encontrados nas proximidades estão restaurantes com a atmosfera adequada, favorecida por produtores que cortejam diretores e diretores que cortejam roteiristas, e todos cortejando todos em Hollywood".
O acesso universal à classe das pessoas "criativas" iria bem ao encontro do ideal de Reich de uma sociedade democrática, mas como esse objetivo é claramente inatingível, o melhor que existe depois disso é, presumivelmente, uma sociedade composta de "analistas simbólicos" e seus parasitas.
Estes últimos consomem-se em sonhos de estrelato, mas estão satisfeitos, por enquanto, em viver na sombra das estrelas, esperando para serem descobertos. Eles estão simbioticamente unidos a seus superiores na busca contínua por talentos negociáveis, que só pode ser comparada, conforme a imagem retórica de Reich deixa claro, aos rituais da corte. Pode-se ainda acrescentar a observação mais parcial de que os círculos de poder –financeiro, político, artístico e de entretenimento– sobrepõem-se e se tornam cada vez mais intercambiáveis.
Embora Reich se volte para Hollywood por um exemplo particularmente forçado das comunidades "extraordinariamente elásticas" que surgem onde quer que haja uma concentração de gente "criativa", sua descrição do novo tipo de comunidade de elite aplica-se também à capital do país. Washington se torna uma paródia de Tinseltown; executivos adotam as ondas de rádio e TV, criando durante a noite a ilusão de movimentos políticos; estrelas de cinema se transformam em eruditos, até mesmo em presidentes; torna-se cada vez mais difícil distinguir entre a realidade e a imitação da realidade.
Ross Perot lança sua campanha presidencial no programa "Larry King Live" (Larry King ao Vivo). As estrelas de Hollywood tomam parte importante na campanha de Clinton e congestionam a festa da posse, revestindo-a do glamour de uma estréia hollywoodiana. Os âncoras e entrevistadores de TV tornam-se celebridades; e as celebridades do mundo do entretenimento assumem o papel de críticos sociais. O boxeador Mike Tyson publica uma carta aberta de três páginas, da prisão de Indiana, onde cumpre pena de seis anos por estupro, condenando a crucificação que o presidente fez de Lani Guinier.
O erudito de Rhodes, Robert Reich, impressionado pelas estrelas, profeta do novo mundo "da abstração, do pensamento sistemático, da experimentação e da colaboração", junta-se à administração Clinton na incoerente condição de secretário do Trabalho –administrador, em outras palavras, da mesma categoria de emprego ("produção de rotina") que não tem qualquer futuro (conforme sua própria avaliação), numa sociedade composta por "analistas simbólicos" e "servidores em pessoa".
Somente num mundo em que as palavras e as imagens carregam cada vez menos semelhança com as coisas que parecem descrever, seria possível um homem como Reich referir-se a si mesmo, sem ironia, como secretário do Trabalho ou escrever tão ardorosamente sobre uma sociedade governada "pelo supra-sumo". (Da última vez que o supra-sumo teve controle sobre o país, arrastou-o para uma guerra prolongada e desmoralizante no sudeste da Ásia, da qual ainda não se recuperou inteiramente.)
A arrogância da elite, em sua rebelião contra os limites civilizatórios, não deve ser confundida com o orgulho, característico das classes aristocráticas, e que repousa na herança de uma linhagem ancestral e na obrigação de defender sua honra. Nem a bravura nem a cavalaria, nem o código de amor cortês e romântico, com os quais aqueles valores estão intimamente associados, têm lugar na visão de mundo do supra-sumo. Uma meritocracia não vê utilidade da cavalaria ou na bravura, do mesmo modo que uma aristocracia hereditária não o vê na inteligência. Embora as vantagens da hereditariedade desempenhem parte importante na obtenção de status profissional ou empresarial, a nova classe precisa manter a ficção de que seu poder repousa apenas na inteligência.
Daí ela ter pouco senso de gratidão ancestral ou da obrigação de cumprir com as responsabilidades herdadas do passado. Pensa em si mesma como uma elite que se fez sozinha, devendo seus privilégios exclusivamente a seus próprios esforços. Até mesmo a idéia de uma república de letras, que se esperaria atraente para elites com tão grande aposta na educação superior, está quase inteiramente ausente de seu quadro de referências.
As elites meritocráticas acham difícil imaginar uma comunidade, até mesmo uma comunidade do intelecto, que alcance passado e futuro e seja constituída de uma consciência de obrigação intergeracional. As "zonas" e as "redes de trabalho" admiradas por Reich encerram pouca semelhança com comunidades em qualquer sentido tradicional do termo. Habitadas por pessoas em trânsito, falta-lhes a continuidade que deriva de um sentido de território e de padrões de conduta cultivados restritivamente e passados de geração para geração. A "comunidade" do supra-sumo é uma comunidade de contemporâneos, no duplo sentido de que seus membros pensam em si mesmos como imutavelmente jovens e de que a marca dessa juventude é precisamente sua habilidade para se manter no topo das tendências mais recentes.
A identificação e a promoção do "supra-sumo" é o ideal meritocrático. A meritocracia é, entretanto, uma paródia da democracia. Ela oferece oportunidades de avanço, na teoria, ao menos, a qualquer um com talento suficiente para agarrá-las. Mas as "oportunidades para progredir", como observou R.H. Tawney em "Equality" "não substituem uma distribuição geral dos recursos da civilização", da "dignidade e da cultura" de que todos necessitam, "quer progridam quer não".
A mobilidade social não mina a influência das elites; de certa forma, ajuda a solidificar a influência delas ao sustentar a ilusão de que está assentada unicamente no mérito. Incrementar a mobilidade só faz reforçar a probabilidade de que as elites exercerão o poder de forma irresponsável, precisamente porque reconhecem poucas obrigações para com seus predecessores ou para com as comunidades que admitem comandar. A falta de gratidão livra as elites meritocráticas do fardo da liderança; mas, de todo modo, elas estão menos interessadas em liderança do que em escapar da turba dos comuns –eis aí a própria definição do sucesso meritocrático.
A lógica interior da meritocracia nunca foi tão rigorosamente exposta quanto no romance distópico do escritor britânico Michael Young, "The Rise of the Meritocracy 1870-2033" ("O Surgimento da Meritocracia", 1959), um trabalho escrito na tradição de Tawney, G.D.H. Cole, George Orwell, E.P. Thompson e Raymond Williams.

O narrador de Young, um historiador escrevendo na quarta década do século 21, relata aprobatoriamente a "mudança fundamental" desse um século e meio, começando por volta de 1870 –a redistribuição da inteligência "entre as classes". "Através de graus imperceptíveis, uma aristocracia de berço transformou-se numa aristocracia do talento".
Graças à adoção de testes de inteligência pela indústria, da extinção do princípio de antiguidade em cargos e da crescente influência da escola às custas da família, "foi dada aos talentosos a oportunidade de crescer até o nível que combina com suas capacidades; e as classes baixas ficaram consequentemente reservadas para aqueles que têm baixa habilidade". No mundo de Young, uma crença doutrinária na igualdade entrou em colapso diante das vantagens práticas de um sistema educacional que "já não requeria que os inteligentes se misturassem com os burros".
A projeção imaginativa de Young lança muita luz nas tendências nos Estados Unidos, onde um sistema aparentemente democrático de arregimentação de elite conduz a resultados que estão longe de serem democráticos –a segregação das classes sociais, o desprezo pelo trabalho manual, o colapso das escolas comuns, a perda de uma cultura em comum. Segundo Young descreve, a meritocracia tem o efeito de tornar as elites mais seguras do que nunca quanto a seus privilégios (que agora podem ser vistos como a recompensa apropriada à perseverança e à capacidade mental), enquanto anula a oposição da classe trabalhadora.
"A melhor maneira de derrotar a oposição", o historiador de Young observa, "é (...) apropriar-se das e educar as melhores crianças das classes baixas enquanto ainda são pequenas." Tanto liberais quanto conservadores ignoram a verdadeira objeção à meritocracia –o fato de ela gradualmente remover os talentos das classes baixas, privando-as assim de liderança efetiva– e se contentam com argumentos dúbios quanto às consequências de a educação não cumprir com sua promessa de fomentar a mobilidade social.
Se cumprisse, eles parecem concluir, ninguém teria presumivelmente qualquer razão para reclamar. Aqueles que são deixados para trás, sabendo que "tiveram todas as chances", não podem legitimamente reclamar de sua sorte. "Pela primeira vez na história da humanidade, o homem inferior não tem pronta nenhuma escora para seu amor-próprio".
Não nos deve surpreender, portanto, que a meritocracia gere uma obsessiva preocupação com a "auto-estima". As novas terapias (conhecidas às vezes coletivamente como um movimento de reparação) buscam opor-se ao opressivo senso de derrota naqueles que fracassam na subida da escada educacional, mesmo quando eles deixam intacta a estrutura de arregimentação de elite existente –a aquisição de credenciais educacionais.
Uma aristocracia do talento é, na superfície, um ideal atraente, que parece distinguir as democracias das sociedades baseadas no privilégio hereditário. A meritocracia, entretanto, acaba sendo uma contradição em termos: os talentosos conservam muitos dos vícios da aristocracia, mas sem suas virtudes. Seu esnobismo carece de qualquer conhecimento das obrigações recíprocas entre os poucos favorecidos e a multidão. Embora estejam cheios de "compaixão" pelos pobres, não se pode dizer que aderem à teoria da "cortesia da nobreza", que implicaria a disposição de fazer uma contribuição direta e pessoal ao bem público.
A obrigação, como todo o resto, foi despersonalizada; exercida por intermédio do Estado, o fardo de sustentá-la recai não sobre a classe profissional ou empresarial mas sim, e desproporcionalmente, na classe média baixa e na classe trabalhadora. As políticas desenvolvidas pelos liberais da nova classe, no interesse dos desvalidos e oprimidos –integração racial nas escolas públicas, por exemplo– requerem sacrifícios das minorias étnicas que dividem com os pobres os centros velhos das cidades, mas nunca dos liberais suburbanos que planejam e sustentam essas políticas.
A um grau alarmante, as classes privilegiadas –numa definição ampla, os 20% do topo– tornaram-se independentes não só das fragmentadas cidades industriais como também dos serviços públicos em geral. Mandam seus filhos para escolas privadas, seguram-nos contra emergências médicas ao inscrevê-los em planos de saúde-empresa e contratam guardas particulares para protegê-los da violência crescente.
Não se trata apenas de não verem sentido em pagar por serviços públicos que já não utilizam; muitos deles já deixaram de pensar em si mesmos como americanos no sentido mais importante de estarem implicados no destino da América para melhor ou para pior. Seus vínculos com uma cultura internacional de trabalho e lazer –em comércio, entretenimento, informação e "resgate de informação"– tornam muitos membros da elite profundamente indiferentes à perspectiva de uma derrocada nacional.
O mercado em que as novas elites operam é hoje internacional em seu campo de ação. Suas fortunas estão vinculadas a empreendimentos que operam para além das fronteiras nacionais. Elas estão mais preocupados com o suave funcionamento do sistema como um todo do que com qualquer uma de suas partes. Sua lealdade –se é que o termo em si não é anacrônico nesse contexto– é internacional, muito mais do que regional, nacional ou local. Elas têm mais em comum com seus parceiros em Bruxelas ou Hong Kong do que com as massas de americanos que ainda não estão ligados na tomada da rede de comunicações global.
Na economia global sem fronteiras, o dinheiro perdeu seus vínculos com a nacionalidade. David Rieff, que passou vários meses em Los Angeles coletando material para seu livro "Los Angeles: Capital of the Third World" (Los Angeles: Capital do Terceiro Mundo), relata que "pelo menos duas ou três vezes por semana (...) eu podia estar certo de que ouviria alguém dizer que o futuro 'pertencia' à orla do Pacífico". O movimento de dinheiro e gente cruzando as fronteiras nacionais transformou "toda a noção de território", segundo Rieff. As classes privilegiadas de Los Angeles sentem mais afinidade com seus parceiros no Japão, em Cingapura e na Coréia do que com a maioria de seus compatriotas.
A mutante estrutura de classe dos Estados Unidos espelha mudanças que estão ocorrendo em todo o mundo industrial. Na Europa, os plebiscitos sobre a unificação revelaram um largo e profundo abismo entre as classes políticas e os membros mais humildes da sociedade, que temem que a Comunidade Econômica Européia venha a ser dominada por burocratas e técnicos destituídos de qualquer sentimento de identidade ou compromisso nacional.
Até mesmo no Japão, verdadeiro modelo de industrialização bem-sucedida nas duas ou três últimas décadas, pesquisas de opinião pública realizadas em 1987 revelaram uma convicção crescente de que o país já não pode ser descrito como de classe média, tendo as classes populares fracassado na partilha das imensas fortunas acumuladas em bens imóveis, finanças e industrializados.
Fora das democracias industriais, com suas crescentes polarizações sociais, a disparidade global entre riqueza e pobreza tornou-se tão óbvia que não é sequer necessário rever a evidência da desigualdade crescente. Na América Latina, África e em grande parte da Ásia, o crescimento absoluto em números, juntamente com o deslocamento das populações rurais por causa da comercialização da agricultura, tem sujeitado a vida urbana a tensões sem precedentes.
Surgiram vastas aglomerações urbanas –já não podem ser chamadas de cidades–, transbordando pobreza, desolação, doença e desespero. Paul Kennedy projeta 20 dessas megacidades para o ano de 2025, cada uma com uma população de 11 milhões ou mais. A cidade do México já terá mais de 24 milhões de habitantes por volta do ano 2000; São Paulo, mais de 23 milhões; Calcutá, 16 milhões; Bombaim, 15,5 milhões.

Enquanto prossegue o colapso da vida urbana nessas cidades inchadas, não só os pobres como também as classes médias vivenciam condições inimagináveis até alguns anos atrás, espera-se que os padrões de vida da classe média devam cair em todo o (um tanto esperançosamente intitulado) mundo em desenvolvimento. Num país como o Peru, antes uma nação próspera, com perspectivas razoáveis de desenvolver instituições parlamentares, a classe média, para todos os efeitos, já não existe mais.
Uma classe média, como bem nos lembra Walter Russell Mead em seu estudo sobre o declínio do império americano, "Mortal Splendor" (Esplendor Mortal), "não surge do nada". Seu poder e sua quantidade "dependem da riqueza global da economia doméstica"; desse modo, em países onde "a riqueza está concentrada nas mãos de uma pequena oligarquia e o resto da população é desesperamente pobre, a classe média só pode crescer até um certo limite (...) (Ela) nunca consegue escapar de seu papel original de classe servidora da oligarquia". Infelizmente, essa descrição se aplica agora a uma lista crescente de nações que atingiram prematuramente os limites do desenvolvimento econômico, países onde uma "parcela substancial de seu produto nacional vai para investidores ou credores estrangeiros". Destino como esse pode muito bem aguardar nações industriais como os Estados Unidos.
O mundo do fim do século 20 apresenta, pois, um espetáculo curioso. Por um lado, está hoje unido, por intermédio do mercado, como nunca esteve antes. O capital e o trabalho fluem livres através das fronteiras políticas que parecem cada vez mais artificiais e ineficientes. A cultura popular segue no mesmo rumo. Por outro lado, as lealdades tribais nunca foram tão agressivamente incentivadas. Conflitos religiosos e étnicos explodem num país atrás do outro: na Índia e no Sri Lanka, em grande parte da África, na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia.
Trata-se do enfraquecimento do Estado-nação, que fundamenta ambos esses acontecimentos –o movimento pela unificação e o aparentemente contraditório movimento rumo à fragmentação. O Estado já não pode conter os conflitos étnicos, nem as forças que conduzem à globalização. Ideologicamente, o nacionalismo está sendo atacado de ambos os lados: pelos defensores do particularismo étnico e racial, e também por aqueles que argumentam que a única esperança para a paz encontra-se na internacionalização de tudo, de pesos e medidas à imaginação artística.
Os temores de que a linguagem internacional do dinheiro falará mais alto do que os dialetos locais inspiram a reafirmação do particularismo étnico na Europa, enquanto que a decadência do Estado-nação enfraquece a única autoridade capaz de controlar as rivalidades étnicas. O renascimento do tribalismo, sucessivamente, reforça um cosmopolitismo reativo entre as elites. Muito curiosamente, é Robert Reich, apesar de sua admiração pela nova elite de "analistas simbólicos", que fornece uma das mais penetrantes descrições do "lado obscuro do cosmopolitismo".
Sem vínculos de nacionalidade, ele nos lembra, as pessoas têm pouca inclinação por fazer sacrifícios ou aceitar a responsabilidade por seus atos. "Nós aprendemos a nos sentir responsáveis pelos outros porque compartilhamos com eles uma história em comum (...), uma cultura em comum (...), um destino em comum". A desnacionalização do empreendimento comercial tende a produzir uma classe de cosmopolitas que se enxergam como "cidadãos do mundo, mas sem aceitar(...) qualquer uma das obrigações que a cidadania em um Estado normalmente implica".
Mas o cosmopolitismo dos poucos favorecidos, por ser ignorante da prática da cidadania, acaba sendo uma forma mais elevada de provincianismo. Ao invés de sustentar os serviços públicos, as novas elites aplicam seu dinheiro na melhoria de seus próprios encraves fechados. Elas pagam de bom grado escolas particulares, polícia privada e sistemas particulares de coleta de lixo; mas deram um jeito de se livrar, até um ponto notável, da obrigação de contribuir com o tesouro nacional. Seu reconhecimento das obrigações cívicas não se estende além de própria vizinhança imediata. A "secessão dos analistas simbólicos", como diz Reich, nos fornece um exemplo particularmente impressionante da rebelião das elites contra as restrições de tempo e lugar.
A decadência das nações está intimamente ligada à decadência global da classe média. É a crise da classe média e não apenas o crescente abismo entre riqueza e pobreza, que precisa ser enfatizada numa análise sensata de nossas perspectivas. Desde os séculos 16 e 17, a fortuna do Estado-nação está ligada à fortuna das classes comerciais e manufatureiras. Os fundadores das nações modernas –quer fossem expoentes do privilégio real como Louis 14 ou republicanos como Washington e Lafayette–, voltaram-se para essa classe na busca de apoio para sua luta contra a nobreza feudal.
Grande parte do apelo do nacionalismo está na habilidade do estado em estabelecer um mercado comum dentro de suas fronteiras, para reforçar um sistema uniforme de justiça, e para estender a cidadania tanto aos pequenos proprietários quanto aos comerciantes ricos, ambos excluídos do poder no velho regime. A classe média compreensivelmente tornou-se o mais patriótico (para não dizer jingoísta e militarista) dos elementos da sociedade.
Mas os traços repulsivos do nacionalismo da classe média não devem ofuscar suas contribuições positivas na forma de um senso de território altamente desenvolvido, além de um respeito pela continuidade histórica –selos de garantia da sensibilidade da classe média, que podem ser apreciados mais inteiramente agora que a cultura da classe média está batendo em retirada em todos os lugares.
Quaisquer que sejam suas falhas, o nacionalismo da classe média proporciona um território em comum, padrões em comum, um quadro de referências em comum, sem os quais a sociedade se dissolve em nada mais do que facções em luta, como os fundadores da América compreenderam tão bem. A rebelião das massas que Ortega temia já não é uma ameaça plausível. Mas a rebelião das elites contra as arraigadas tradições de localidade, obrigação e prudência pode um dia desencadear uma guerra de todos contra todos.

Tradução de Marilene Felinto

Nenhum comentário: