Salomão Ximenes
Quem acompanha o debate de políticas educacionais no país sabe bem das dificuldades do consenso quanto aos rumos da educação, decorrente da pluralidade de concepções possíveis sobre os objetivos da escola e sobre os meios de realizá-los.
Apesar da legislação estabelecer as balizas, há uma miríade de interpretações sobre o que significam "qualidade", "gestão democrática", "avaliação" etc. A crítica à crescente militarização da educação básica é um fato raro, pois tem sido capaz de formar consenso no campo, reunindo de um mesmo lado entidades científicas, organizações sindicais e estudantis, filantropia empresarial, ONGs, pesquisadores e educadores que parecem discordar sobre todo o resto.
A opinião consensual de quem estuda e promove seriamente a agenda da educação pública, entretanto, não tem sido capaz de frear eficazmente o processo. O episódio mais recente é a aprovação na Assembleia Legislativa de São Paulo, com urgência, do PLC 9/2024, proposto pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e que institui o Programa Escola Cívico-Militar na educação paulista.
A intenção do governo é militarizar cem escolas estaduais a partir de 2025, quando policiais militares da reserva passarão a atuar como monitores e gestores militares nas instituições de ensino. Pelo projeto, os agentes manterão a íntegra das aposentadorias e receberão um adicional pela tarefa, conforme a patente, que pode variar de R$ 6.261,75 a R$ 9.392,62 mensais, pagos com recursos da pasta da Educação. Na celebrada nova carreira do magistério, o salário inicial de um professor categoria "O" é de R$ 5.000.
O projeto autoriza ainda o estado a firmar parcerias com repasse de recursos financeiros a entidades privadas, uma via que já vem sendo ocupada por associações de praças e oficiais da reserva em diferentes estados e municípios. Algumas dessas entidades se especializaram em fornecer pessoal militar terceirizado e em produzir e vender metodologias e materiais didáticos, emulando o enorme mercado de apostilas e sistemas estruturados de ensino que, dispensando licitações, move fortunas no Brasil.
Apesar da retórica de que os militares não ministrarão aulas, é extenso o programa pedagógico da militarização. Dissemina-se doutrina militar corrente nas casernas, em atividades ditas extracurriculares e, sobretudo, no que os estudiosos denominam currículo oculto —ou seja, todas as práticas e normas, ditas e não ditas, que compõem o projeto pedagógico real da escola.
Assim percebida, a militarização mobiliza tanto o interesse em controlar e incidir no currículo escolar, bloqueando avanços na gestão democrática das escolas e nas agendas de direitos humanos, como os interesses materiais em abocanhar uma parcela do orçamento da educação. A convergência desses interesses junto ao sistema político produz uma miragem, um falso cenário de polarização, como se houvesse posições razoáveis pró e contra a militarização. O que há é um processo de crescente ocupação militar da educação, que viola todas as balizas constitucionais e legais, contando com a omissão de instituições como o Ministério da Educação e o Supremo Tribunal Federal, que têm nas mãos a possibilidade de conter tal extrapolação.
De vanguarda na construção de universidades e escolas que serviram de modelo na educação pública, parece que São Paulo caminha para assumir a retaguarda do maior atraso imaginável na educação brasileira. Entregar a educação pública aos militares é desistir de qualquer possibilidade de democracia, criticidade e inovação.
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