segunda-feira, 27 de maio de 2024

Edição de Sábado: Força bruta, MEIO

 Por Yan Boechat *

Foi como se um tornado tivesse cruzado por Passo de Estrela. De repente, tudo se foi, como se nunca tivesse estado ali. Casas, ruas, prédios, bichos, gente, tudo desapareceu em poucas horas, deixando marcas de uma violência brutal. Do alto, era quase impossível acreditar que, até poucos dias atrás, milhares de pessoas viviam em mais de 500 casas desse bairro simples de Cruzeiro do Sul, uma cidade às margens do rio Taquari, a quase 150 quilômetros de Porto Alegre. Só de baixo, caminhando pelos destroços, era possível encontrar sinais do que fora uma comunidade bem estabelecida até poucas semanas.

Quase todas as casas desapareceram por completo. Não sobraram vigas, não sobraram paredes, não sobraram escadas. Em quase todas, apenas partes do piso estavam lá, lembrando o que um dia teria sido uma sala, talvez um quarto, quem sabe uma cozinha. Em algumas áreas, nem isso. Placas de concreto se soltaram das fundações e flutuaram até encontrar algum obstáculo maior. As ruas asfaltadas que cortavam o bairro desapareceram e os carros estavam espalhados como se tivessem caído do céu. Alguns com as rodas para cima, outros sem portas. Um Fusca azul piscina contrastava com o marrom do barro e da lama que dominava tudo em Passo de Estrela.

As poucas casas que ficaram de pé se tornaram o refúgio de árvores imensas, algumas com quatro, cinco metros de altura, encostadas nas paredes que, por alguma razão, não se partiram. Troncos de quase um metro de diâmetro cruzavam portas e janelas. Pequenas lembranças de vida pontilhavam a destruição completa. Um vaso sanitário em um banheiro sem paredes ou telhado se manteve firme no solo. Uma bicicleta infantil rosa, sem a roda da frente, repousava ereta sobre uma laje que um dia, é bem provável, fora um teto. Pedaços de uma cama de metal se misturavam a um cofre.

Daqui já foram recuperados 10 corpos. Alguns estavam presos nos restos de suas casas, que colapsaram. Outros, sobre as árvores que porventura não se foram. Alguns, quilômetros rio abaixo. Há ainda nove pessoas desaparecidas. Podem estar em qualquer parte, podem não ser mais achadas. Centenas de animais também pereceram, deixados para trás na fuga desesperada de quem acreditou que as águas jamais chegariam aqui. Na semana passada, moradores que sobreviveram caminhavam em meio aos entulhos numa tentativa desesperada de encontrar os que se foram. Escolhiam os locais de busca pelo cheiro acre da carne em decomposição. Em uma coluna de árvores que se manteve de pé, um homem entrava mato adentro com um bastão na mão, acreditando que um dos seus vizinhos pudesse estar ali. “O cheiro está muito forte, há algo morto aqui, só não sei o que”, dizia ele, sem querer me dar seu nome.

Aqui, no meio da lama, das árvores derrubadas, dos entulhos, o cheiro não é tão intenso, tão disseminado. Muita coisa desceu o rio, incluindo gente e animais. Dados oficiais do governo do Rio Grande do Sul contabilizavam até sexta-feira 163 mortos, e outras 72 duas pessoas desaparecidas. Vai levar tempo para que todos sejam encontrados. Em algumas áreas, há camadas de até dois metros de lama sobre o terreno original. Na Lagoa dos Patos, o destino final de tudo isso, as águas estão se renovando a cada 15 horas, ao contrário dos oito dias costumeiros. Os parentes das vítimas seguem em busca dos seus, sabendo que talvez alguns deles jamais sejam encontrados.

Olhando toda aquela destruição, era difícil definir o que havia acontecido ali. Busquei na memória as enchentes que cobri e não consegui achar paralelo. Me lembrei dos deslizamentos de terra que acompanhei como repórter, mas ali era tudo plano, não havia as típicas montanhas de lama. Pensei nas tantas guerras que cobri. Nas vilas dizimadas pelas artilharias russa e ucraniana nas linhas de frente do Donbas; na cidade velha de Mosul, atacada por B-52s e suas bombas de muitas toneladas; ou mesmo nas ruas de Aleppo, bombardeadas incessantemente pelas tropas de Assad por quase cinco anos. Nenhuma dessas experiências se encaixava com Cruzeiro do Sul.

É comum ouvir pessoas que jamais foram a uma guerra definir algo extraordinário como um “cenário de guerra”. Quase sempre, estão erradas. Fazem analogias sem muito sentido — em extensão, em impacto, em sofrimento. Olhando de longe a devastação em Passo de Estrela, me senti tentado a usar a expressão. Talvez, de fato, aquela fosse uma cena típica de uma área de combate. Mas então me dei conta de que a devastação era maior do que eu já havia presenciado. Mesmo nas guerras, nos bombardeios, nas grandes batalhas, há resquícios de vida, lembranças de histórias, marcas de que ali era uma área habitada. Nem bombas de uma tonelada fazem desaparecer ruas inteiras, casas inteiras ou prédios inteiros. Me lembro da primeira vez que entrei em Al Raqqa, a antiga capital do Estado Islâmico na Síria, que foi intensamente atacada pelas forças americanas. Não havia uma casa ou um prédio ileso. Mas seus escombros estavam lá, suas estruturas não haviam desaparecido.

Em Cruzeiro do Sul e em várias cidades do Vale do Taquari que visitei na última semana, bairros completos sumiram sem deixar muitos rastros de seu passado. A única referência que encontrei para descrever o que via foi exatamente uma experiência que nunca vivi. Jamais vi o estrago que um poderoso tornado pode causar. E, talvez por isso, quando vi o que vi, pensei em Dorothy voando pelos céus do estado americano do Kansas em sua casa intacta, levada por um tornado que colhia tudo que encontrava em seu caminho. Mas não ventou em Cruzeiro do Sul.

Foi uma confluência de fenômenos climáticos inéditos que devastou muitas cidades como Cruzeiro do Sul. Em algumas regiões, principalmente na cabeceira dos rios, o volume de chuvas foi até dez vezes maior do que a média histórica. Os rios, córregos e arroios que desaguam no Taquari começaram a encher nas cabeceiras dias antes de passarem destruindo tudo. Junto com as águas, vieram sedimentos, árvores, animais, vegetação e destroços. Quando as águas chegaram a Cruzeiro do Sul, o nível do Taquari já estava 30 metros acima do normal. Mais do que isso, a correnteza vinha com tanta força que o rio simplesmente abandonou seu leito natural. Desceu por onde havia menos resistência. Foi o que aconteceu em Passo de Estrela, um bairro em uma área baixa e em uma curva do rio.

Marcos Pereira, de 53 anos, é um laçador experiente. Gosta tanto de cavalos que os adotou como seu nome: Marcos dos Cavalos é como é conhecido e como gosta de ser chamado. Naquele dia, ele percebeu que algo diferente estava acontecendo. “A gente chegava perto do rio e ouvia um barulhão lá no fundo, como se tivesse um monte de coisa batendo, acho que era pedra.” Marcos tem um pequeno rancho na parte alta de Passo de Estrela, onde mantinha dez cavalos e um pônei para o neto brincar nas visitas semanais. Logo a água começou a alagar o bairro, mas ele estava tranquilo. Mesmo nas enchentes mais duras pelas quais a região passou, nunca houve risco de seu rancho ser alagado. “De repente, as águas já tinham chegado no estábulo, minha casa estava ilhada. Quando a noite chegou, eu estava no telhado e fomos resgatados por uma lancha. Perdi pelo menos seis cavalos, desapareceram.” O relato de Marcos dos Cavalos se assemelha ao de quase todos com quem conversei por esses dias em diferentes cidades do Vale do Taquari. Além da força e da rapidez com que as águas chegaram, o som foi algo profundamente marcante para quem viveu esse evento de proporções inéditas.

Encontrei Rudinei Lancini, um pescador aposentado de 62 anos, em uma dessas cenas surreais que só são possíveis após momentos de cataclisma. Ele estava à beira do rio Taquari, onde um dia fora uma estrada, diante de um bambuzal imenso, arrancado pelas raízes e que encontrou seu repouso ao lado de uma árvore ainda de pé, mas como se tivesse sido retorcida por uma mão que tentara quebrá-la. Com um facão, cortava pedaços de bambu para improvisar uma janela de lona em sua casa, uma das poucas de pé nessa região de Encantado, uma cidadezinha cerca de 40 quilômetros rio acima. Todas as casas de seus vizinhos se foram, mas a dele sobreviveu.

Rudinei assistiu às águas subirem com incredulidade. Sua casa está distante do rio e pelo menos 25 metros acima do nível normal do Taquari. “Eu nunca imaginei que chegaria até aqui, nunca mesmo, fiquei a noite inteira aqui no segundo andar e, quando já era de madrugada, precisei subir para o telhado”, me contou ele, dias depois. “Me lembro da escuridão e do barulho. Era muito barulho, alto mesmo, com tudo se batendo, e a gente não sabia o que era.” Rudinei já tinha visto o Taquari subir, mas nunca como agora. Quando as águas chegaram ao segundo andar de sua casa, achou que teria o mesmo destino do irmão, que morava mais perto da margem e morreu na enchente de setembro do ano passado — ficou em casa e ababou levado pelas águas do rio. “Passei a noite pedindo socorro, mas acho que ninguém me ouvia. Pela manhã, uma lancha veio e me pegou. Tive sorte.”

Quando as notícias de que as cabeceiras dos rios do Vale do Taquari estavam subindo chegaram, muita gente se lembrou de setembro de 2023. Um ciclone extra-tropical influenciado pelo fenômeno El Niño trouxe um volume de chuvas anormal para o Rio Grande do Sul naquele momento, causando a maior enchente da região (até então) em 150 anos. Mais de 50 pessoas morreram e os rios chegaram a áreas que jamais haviam chegado. Elisete Petri mora em Arroio do Meio, uma pequena cidade entre Cruzeiro do Sul e Encantado. Quando soube que poderia haver uma cheia como a de setembro, ela decidiu que não iria ficar para ver o que poderia acontecer à sua casa. “Da outra vez, a água chegou ao nosso quintal, vi amigos perderem muita coisa, aquilo me deixou impressionada.”

Ela convenceu o marido a contratar um caminhão de mudanças e retirar os bens mais preciosos. Na rua, diz ela, os vizinhos faziam troça de que estava exagerando, que estava apavorada. “Quando saímos daqui, já havia água nas canelas. Quando voltamos, não tínhamos mais casa. Tudo se foi.” No sábado passado, Elizete voltou pela segunda vez para ver o que sobrou. O telhado da casa em que viveu por mais de 40 anos estava no quintal. A porta principal estava presa no alto de uma imensa mangueira, a mais de 100 metros de distância. “Foi tão brutal, tão rápido, que eu sonho que essa cena é um pesadelo dentro de um sonho. Aí eu acordo, e é verdade.”

As águas do Taquari encontraram seu destino final no rio Jacuí, que por sua vez deságua no Guaíba, o grande lago que desemboca na Lagoa dos Patos e que banha a capital gaúcha, Porto Alegre, e as cidades de sua região metropolitana. O Guaíba recebe água de toda sua bacia hidrográfica, um conjunto de rios que desce das montanhas por meio de vales íngremes até encontrar as águas do lago, nas imediações de Porto Alegre. Tanto a capital quanto diversas outras cidades da área metropolitana experimentaram alagamentos históricos, jamais registrados, deixando meio milhão de pessoas desabrigadas.

Muita gente perdeu tudo que tinha, muita gente morreu. Mas Porto Alegre não experimentou a brutalidade que as cidades do Vale do Taquari testemunharam. Por ali, as águas subiram de forma acelerada, mas constante. Muita gente precisou ser resgatada e muita gente também morreu tentando escapar das cheias. Mas a destruição teve uma natureza diferente, também dramática, só menos violenta. “A gente ficou monitorando o nível a todo momento, achando que não ia ser um problema sério. Aí, de repente, nos vimos presos em casa, sem poder sair, no meio da noite e esperando alguém vir nos resgatar”, me contava Paulo Cardoso, 49 anos, na beira de uma rua alagada no bairro Mathias Velho, em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. “Agora, estamos aqui, esperando a água baixar, para limpar tudo e continuar a vida”.

No Vale do Taquari, a vida não vai continuar como era. Mesmo entre os mais empedernidos há consenso de que continuar não será possível. “A gente vai ter que recomeçar em outro lugar, aqui não há mais o que fazer, a gente precisa respeitar o que a natureza está nos dizendo e ela está gritando que esse pedaço de terra aqui não é nosso, é dela. Se acabou”, me contava Elisete, diante da imensa mangueira que represara sua porta, junto a poltronas, janelas e dois bonecos de Papai Noel que ficaram presos em outros galhos. Arroio do Meio, onde Elisete mora, ficou isolada por dias depois das cheias e só conseguiu se conectar com a principal cidade da região, Lajeado, por meio de uma ponte improvisada construída pelo exército. Na quinta, voltou a chover, e a ponte dos militares foi levada pela correnteza.

Os impactos das cheias deste maio de 2024 serão duradouros em todo o Rio Grande do Sul. Campos de refugiados estão sendo construídos para receber parte dos desabrigados, obras de infraestrutura orçadas em dezenas de bilhões de reais serão necessárias e um processo lento e longo de recuperação econômica está apenas começando. A natureza deu seu recado.


*Jornalista com mais de 20 anos de experiência, cobre guerras e conflitos pelo mundo, tendo passado por países como Afeganistão, Angola, Congo DRC, Egito, Iraque, Síria, Líbano, Faixa de Gaza, Israel, Jordânia, Rússia, Ucrânia, Irã, e Venezuela. É ou foi colaborador em veículos como 'The New York Times', 'BBC', 'Deutsche Welle', 'Voice of America' e 'NBC News'. É também fotógrafo premiado.

Nenhum comentário: