terça-feira, 21 de maio de 2024

As elites desistiram da igualdade cívica, João Pereira Coutinho, FSP

 Para que servem os ricos, afinal? A pergunta é de Benjamin Wallace-Wells na New Yorker. Um cínico, como eu, poderia responder: servem para bancar revistas onde você escreve por um cheque chorudo, Benjamin.

Não vou ser cínico. Caso contrário, gastaria meu latim denunciando toda a intelligentsia anticapitalista que gosta de pregar seus sermões em púlpitos —TVs, jornais, revistas, institutos, universidades etc.— financiados por capitalistas.

Até porque Benjamin Wallace-Wells tem certa razão. Os ricos podem bancar revistas. Com relutância, podem até pagar impostos. Mas desistiram de um ideal de "igualdade cívica" que era estrutural na democracia americana e não só.

Eis a ironia: Wallace-Wells, talvez sem o saber, está bem próximo de um autor conservador como Christopher Lasch (1932–1994), de quem vou lendo "A Revolta das Elites e a Traição da Democracia". O livro, publicado pela Ediouro em 1995, acaba de ser republicado pela Almedina, com tradução e posfácio (excelentes) de Martim Vasques da Cunha.

Impressionante: a obra é de 1994. Mas Lasch, que morreu no mesmo ano, consegue acertar em alvos que só 30 anos depois nos parecem óbvios.

E o mais óbvio é a "revolta das elites" do título: em meados do século 20, as elites cortaram o contato com o resto do povão. Sempre foi assim?

Não nos Estados Unidos, defende Lasch: as diferenças econômicas não cancelavam uma igualdade cívica que impressionava qualquer visitante europeu, ainda marcado pelo "rapport" aristocrático que sobreviveu à Revolução Francesa.

É uma grande verdade. Alexis de Tocqueville (1805–1859), que viajou pelo país no século 19, deixou páginas notáveis sobre a forma como os americanos (brancos, obviamente; a escravidão é a mancha nessa paisagem) se cumprimentavam nas ruas, apertando as mãos, mesmo que um deles fosse um magnata e o outro um modesto artífice.

Pirâmide egípcia à distância com iluminação contrastada,de modo com que uma de suas faces permaneça nas sombras.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 20 de maio de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Tudo mudou a partir de 1960, quando começou a grande separação entre as elites (econômicas, culturais etc.) e as massas. Tocqueville, hoje, não notaria diferenças entre a hierarquia social europeia do século 19 e a americana do século 21.

Isso é especialmente visível na educação e na cultura. Ao contrário do que pensam os conservadores mais básicos, as elites progressistas não procuraram "doutrinar" o povo com suas teorias (aquela conversa sobre o "marxismo cultural", que faz a delícia dos ingênuos).

Pelo contrário: a ideia era não ter contato com o povo, criando um mundo paralelo onde a realidade não existe. A doutrinação é um fenômeno de elites para elites –um mecanismo de reprodução. O "cesto dos deploráveis" (lembra?) não merece qualquer conversa ou atenção.

Esse mundo paralelo não é apenas uma criação intelectual. É um fato da própria existência cotidiana das elites pós-década de 60: por que motivo elas se importam com educação pública, saúde pública e segurança pública?

Sim, elas podem falar nessas maravilhas. Mas, na hora da verdade, têm educação privada, saúde privada e segurança privada.

É por isso que a ignorância, a doença ou a violência, que afligem os mais humildes, são apenas conceitos vagos para as elites contemporâneas, sejam elas de esquerda, sejam de direita.

Resultado?

"As classes privilegiadas em Los Angeles sentem maior afinidade com seus iguais no Japão, Singapura e Coreia do que com a maioria dos seus compatriotas", escreve Lasch.

O problema dessa alienação é que a democracia, ao contrário de outras formas de governo, não funciona assim.

Para começar, e como lembrava Abraham Lincoln, democracia significa não sermos escravos e não sermos senhores de escravos. Iguais, em suma.

Para acabar, a democracia pressupõe que os mais afortunados se sintam responsáveis pelos menos afortunados. Como? Desde logo, reconhecendo-os como iguais, habitando o mesmo espaço, partilhando o mesmo destino.

Como escreve Benjamin Wallace-Wells, ecoando Christopher Lasch, não é por acaso que os ricos mais famosos de hoje –Elon Musk, por exemplo– estão mais interessados em salvar a humanidade do que em salvar o homem comum.

Vem nos livros. "Quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo o homem em particular... Dostoiévski, como sempre, sabia do que falava.

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