Embora exista desde 1979, não é fácil para a sociedade brasileira em dias atuais conviver com a aplicação da Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), que ostenta uma de suas principais punições a sanção disciplinar de aposentadoria compulsória. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) endossou que uma desembargadora, acusada de usar o cargo para favorecer o filho, preso por tráfico de drogas e armas, deverá ser punida com uma aposentadoria proporcionalizada a R$ 41.650,92, teto máximo do funcionalismo público.
O caso tem no centro da discussão a desembargadora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia de Freitas Borges, punida pelo Conselho Nacional de Justiça pela acusação de se favorecer do prestígio do cargo e de sua influência para a obtenção indevida de benefícios ilícitos em favor do filho, preso em flagrante em 2017 por transportar 130 quilos de maconha e 200 munições de fuzil.
A juíza foi punida com um subsídio mensal de R$ 36.282,27. Essa renda, somada a outras vantagens, somente no ano de 2023, perfaz o valor total de R$ 925 mil no ano ou uma média de R$ 77 mil por mês.
Insatisfeita com essa "gravosa pena de aposentadoria", como foi destacada na defesa, a desembargadora recorreu ao STF indicando, entre outros pontos, a desproporcionalidade da medida sancionatória de aposentadoria compulsória. Na análise do mandado de segurança 38.030, o ministro Flávio Dino confirmou a decisão do CNJ de manter a aposentadoria como punição disciplinar.
Outra insatisfação dela com essa indesejada pena foi a frustração de não conseguir o intento de se tornar a "primeira mulher presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul", como colocou em sua peça de defesa protocolada no Supremo.
Caro leitor, é isso mesmo que você está lendo. As cifras acima são reais, assim como a insatisfação externada com este tipo de aposentadoria. Pode parecer um devaneio para muitos brasileiros, que sonham acordados em ganhar pouco mais de R$ 7.000, mas a desembargadora fez defesa intransigente até a última instância de justiça para não ganhar os valores acima. Como é natural ao aposentado ter decréscimo financeiro quando sai da fase economicamente ativa, presume-se que os ganhos da juíza seriam maiores, caso ela continuasse a trabalhar —justificativa racional para tanta resistência.
Enquanto isso, a maioria da população sonha em receber R$ 7.786,02 (teto máximo do INSS). É só um sonho mesmo. Pois somente poucos privilegiados conseguem atingir esse patamar. Conforme o Beps (Boletim Estatístico da Previdência Social) de 2023, o valor médio total pago à maioria dos aposentados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) foi de apenas R$ 1.683,59.
A dificuldade de o segurado se encaixar em algum benefício ou receber valor maior decorre de um sistema previdenciário banalizado por frequentes reformas previdenciárias, praticadas na Constituição Federal ou em leis federais. Por outro lado, a Loman segue intacta desde 1979 em um dos pontos moralmente absurdos de garantir generosa aposentadoria para magistrado, que deveria ser exemplo na sociedade, flagrados em situações de crime ou atitudes gravíssimas.
O mesmo destino não tem a maioria esmagadora dos servidores públicos, pois se forem pegos em alguma infração disciplinar sofrem as punições e normalmente precisam exportar o tempo do serviço público para se aposentar no INSS, limitado inclusive ao teto.
Mesmo considerando os diversos estatutos que disciplinam o regime jurídico ao qual os servidores públicos civis são submetidos, seus regimes disciplinares normalmente convergem para inviabilizar a aposentadoria espontânea, caso a punibilidade tenha sido reconhecida antes da jubilação. Ou, em alguns casos, chega-se até a cassação da aposentadoria como efeito penal da punição. Ao contrário disso, juízes infratores têm formalmente o direito à concessão da aposentadoria no seu regime previdenciário. São visivelmente dois pesos e duas medidas entre o que ocorre com os juízes e o restante da sociedade.
Então, o que falta para se fazer uma reforma cirúrgica no art. 45, inciso 5º, da Loman e deixá-lo minimamente equilibrado e alinhado com os demais regimes jurídicos dos reles mortais?
Afinal, no âmbito do Regime Geral da Previdência Social (aplicado aos celetistas e iniciativa privada) e do Regime Próprio de Previdência Social (servidores públicos) tornou-se comum mexer toda hora nas regras da aposentadoria.
Em 2019, por exemplo, a reforma da Previdência afetou um contingente de cerca de 39 milhões de aposentados, pensionistas e beneficiários do INSS, além de 79 milhões de brasileiros que estão na população economicamente ativa (PEA) e vão sofrer com as novas regras, pois as mudanças englobam não só o contingente atual como as próximas gerações. Conforme dados do Portal da Transparência, também não escaparam da reforma 1,13 milhão de servidores públicos federais em atividade.
Por outro lado, de acordo com o Justiça em Número 2023, do CNJ, o país tem 22.337 magistrados que compõem o Poder Judiciário, este responsável por uma despesa total de R$ 116 bilhões, dos quais 90% são despesas pessoais. A média de despesa por cada juiz corresponde a R$ 69,8 mil por mês.
As reformas previdenciárias têm se projetado em diferentes tecidos sociais. Celetistas, servidores públicos, policiais, bombeiros, professores. Até a casta militar foi objeto de reforma, ainda que proporcionalmente ridícula quando comparada aos efeitos submetidos à iniciativa privada e aos servidores públicos federais.
Não se tem notícia da existência de pesquisa de opinião sobre o fim desse tipo de sanção disciplinar na Loman. Caso houvesse, arriscaria dizer que a maioria esmagadora dos juízes, idônea, é contra esse tipo de pena disciplinar. Esse tipo de punição só é defensável por aquele que um dia pode precisar dos seus préstimos legais.
Apesar de os magistrados estarem em menor número, pois são 22 mil em todo o país, o microssistema normativo deles praticamente está blindado a reformas previdenciárias. Essa pérola legal de punir juízes com uma aposentadoria gorda vem atravessando gerações. Quando vai aparecer um parlamentar corajoso para criar e fazer andar projeto de lei para acabar com isso no Congresso Nacional?
Apesar de em menor número, os magistrados possuem força institucional. Isso talvez justifique a Loman passar quase meio século com esta aberração de punir com aposentadoria.
Deveria ocorrer com os juízes o mesmo que se passa com um servidor público. Este, quando punido disciplinarmente, ainda que tenha provento de R$ 20 mil por exemplo, normalmente vai precisar averbar o tempo no INSS e se aposentar por lá, mesmo sofrendo limitação ao teto e consequente prejuízo.
Já passou da hora de a aposentadoria não ser encarada para os juízes como possibilidade punitiva. Em qualquer lugar do mundo aposentadoria é um direito fundamental cada vez mais difícil de ser conquistado. Aqui no Brasil é um inverso. É dado para juiz infrator e, em alguns casos, como no processo da desembargadora, a aposentadoria ainda foi rejeitada por ser punição "gravosa" e "desproporcional".
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