A Austrália surpreendeu o mundo ao anunciar, em fevereiro, regulamentação pioneira permitindo a psiquiatras administrar psicodélicos a pacientes. Surpreendeu também os próprios psiquiatras e psicoterapeutas, tanto os mais conservadores quanto os mais libertários, que passaram a questionar a decisão.
A partir de 1º de julho deste ano, psiquiatras com registro específico podem usar na clínica apenas duas substâncias, MDMA (ecstasy, bala) para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e psilocibina (psicoativo dos cogumelos "mágicos") para depressão resistente a tratamento.
Tal passo resultou de processo iniciado pela TGA, sigla em inglês de Administração de Bens Terapêuticos, o equivalente da Anvisa. A agência havia encomendado uma revisão da literatura sobre esses tratamentos experimentais a três especialistas: Steve Kisely, do sistema de saúde pública em Brisbane, Mark Connor (Universidade Macquarie) e Andrew Somogyi (Universidade de Adelaide).
Seu parecer concluiu que havia boa evidência estatística de benefícios, embora os testes clínicos ainda fossem preliminares (raramente de fase 3). Com base nele, a TGA deslocou MDMA e psilocibina para uma classe de substâncias menos controladas, possibilitando as duas indicações.
De cara a decisão foi questionada por outros especialistas. Entre eles, pesquisadores das universidades de Melbourne, Tasmânia e Swinburne à frente do único teste clínico com psicodélicos então registrado no país, que se queixaram no Australia & New Zealand Journal of Psychiatry por não terem sido consultados:
"Nós teríamos sugerido, definitivamente, mais cautela do que está implícita no presente anúncio. Há muitas questões a respeito dos detalhes precisos dessa mudança que permanecem sem resposta. Até que sejam adequadamente considerados, não podemos, em sã consciência, apoiar esse movimento."
O Colégio Real de Psiquiatras da Austrália e Nova Zelândia (RANZCP, em inglês) publicou em junho um memorando dizendo que havia evidências, porém limitadas, em apoio ao benefício terapêutico dos dois psicodélicos, e que mais pesquisa era necessária. Em especial, testes clínicos aleatorizados e controlados de maior porte, incluindo o componente psicoterápico do novo modelo de tratamento.
Há quem considere esse um calcanhar-de-aquiles da nova modalidade: a maioria dos ensaios clínicos com essas substâncias modificadoras da consciência utiliza-as em psicoterapia assistida por psicodélicos (PAP), mas os estudos são desenhados para testar a substância, não a técnica de atendimento psicológico, que pode variar.
O RANZCP está longe de ser tão conservador quanto a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que se pronunciou contra até o plantio de cannabis para produzir remédios autorizados pela Anvisa. Manifestou-se, porém, contra a decisão da TGA:
"O uso clínico de substâncias psicodélicas só deveria ocorrer sob condições de teste em pesquisa que incluam supervisão por comitê institucional de ética em pesquisa e cuidadosos monitoramento e comunicação de resultados de eficácia e segurança".
No outro extremo do espectro médico-ideológico, por assim dizer, o afrouxamento da regulamentação pela TGA também foi atacada pela Associação Multidisciplinar Australiana de Profissionais Psicodélicos (AMAPP, em inglês). Neste caso, acusa-se a medida de não satisfazer as necessidades de tratamentos de muitos pacientes.
A AMAPP congrega médicos, psicólogos, enfermeiros, paramédicos e assistentes sociais favoráveis à introdução "segura e judiciosa" da PAP no atendimento de saúde mental. O presidente da associação, Anthony Bloch, afirmou no comunicado:
"O atual sistema regulatório é virtualmente impraticável, excessivamente cauteloso e oneroso, e precisa evoluir com a ajuda e a contribuição daqueles profissionais que têm conhecimento e experiência apropriados trabalhando no campo psicodélico".
Para Bloch, é impraticável a presença obrigatória de um psiquiatra na sessão de dosagem de MDMA ou psilocibina, em detrimento por exemplo de psicólogos: "Isso pode contribuir para resultados piores para clientes que tenham precisado de sessões prolongadas e cuidadosas de preparação com terapeutas em que passaram a confiar".
Sem uma revisão das regras, argumenta a AMAPP, pacientes vulneráveis podem se ver incentivados a buscar psicodélicos com terapeutas informais, aumentando o risco de efeitos adversos. "A regulamentação atual é contraproducente e limitada por distorções e excesso de burocracia. Exigimos mudança."
De certo modo, é um problema análogo ao que serviços de facilitação à psilocibina enfrentam no estado do Oregon: no afã de dar acesso a psicodélicos, regras inovadoras, porém eivadas de burocracia, acabam por torná-lo complicado e caro. No caso, pelo menos US$ 2.500 (mais de R$ 12 mil) por três sessões, só uma delas com ingestão de cogumelos.
Desencantados, os clientes potenciais podem preferir comprar os fungos no mercado virtual paralelo e engoli-los por conta própria, ou na companhia de pessoas não qualificadas, em doses e locais impróprios. E aí mora o perigo.
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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".
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