Dias atrás surgiu a notícia de que alguns operadores de saúde privada estão tentando viabilizar a oferta de vacinas no mercado. O tema vem na esteira da demora brasileira em produzir uma solução rápida e coordenada para o problema e traz algumas reflexões interessantes.
A pergunta relevante a fazer me parece a seguinte: deveríamos ter restrições à comercialização da vacina porque isto traz algum dano para quem depende do sistema público de distribuição ou simplesmente porque produziria uma “vantagem” para quem tem o recurso para comprar a vacina privada?
A primeira opção ocorreria se a compra de vacinas pelo mercado reduzisse o estoque disponível para aquisição dos lotes que o governo esteja adquirindo. Não parece ser o caso. A aquisição da vacina por parte de alguns não prejudica o acesso dos demais. Tudo continuará dependendo da velocidade do governo e da capacidade operacional do sistema público de saúde.
O uso da vacina privada poderia, segundo alguns, favorecer os que não dispõem de recursos para pagar. Vamos imaginar que um quinto dos cidadãos terminasse pagando pela vacina. Essas pessoas sairiam da fila, acelerando o acesso de quem vem logo depois. Na prática, elas pagariam duas vezes, como ocorre com quem paga escola e planos de saúde privados, mesmo tendo o direito de frequentar os serviços de saúde e educação do governo.
Alguém me sugeriu uma outra linha de argumentação: mesmo que a compra da vacina privada não prejudique, e mesmo traga uma pequena vantagem aos demais, o ponto é que gera desigualdade. Alguns serão imunizados mais cedo apenas pelo fato de que dispõem de mais dinheiro. E essa vantagem, parafraseando meu amigo Michael Sandel, é algo que “o dinheiro não deveria comprar”.
Significa dizer o seguinte: mesmo que a comercialização da vacina pudesse evitar a morte de algumas centenas de pessoas, é injusto. Deixar de morrer representaria uma vantagem sobre os demais, que seriam apenas marginalmente beneficiados. Todos deveriam se submeter igualmente ao ritmo da vacinação dado pelo governo.
Supondo que o Estado proíba as pessoas de adquirir uma vacina privadamente, a pergunta seguinte seria: isto deve valer apenas neste caso ou deveríamos levar esse mesmo princípio mais adiante? Isto é: proibir as pessoas de se moverem sempre quando a sua iniciativa possa gerar uma desvantagem “relativa” para os demais?
A própria existência de um sistema privado de saúde, com seus nichos de excelência, vai nessa linha. Sempre acho graça nos políticos bacanas defendendo o monopólio estatal dos serviços públicos, mas que à primeira dor peitoral aterrissam seu helicóptero, sem cerimônia, no Hospital Albert Einstein.
Deveriam ser proibidos? Deveria ser diferente com a vacina? Que ninguém deva dispor de algum recurso apenas porque ele não pode ser igualmente distribuído vale para que tipo de bens, exatamente?
Há quem defenda ser esse precisamente o caso da vacina. Um empreendimento necessariamente coletivo, que exige renúncia ao “egoísmo” e algum “espírito de comunidade”, como li, dias atrás.
Há quem vá na direção oposta e por lógica deveria defender que o mercado pudesse ofertar a maior quantidade possível de vacinas, com isso não só afirmando um direito individual, como suplementando o esforço do governo. Com a ressalva de não gerar dano a quem dependa do sistema público.
Cada um pode oferecer a sua resposta. Há nesse tema uma clara tensão entre “agir como comunidade” (ainda que sob mando do Estado) e “respeitar o princípio do dano”. O encontro impossível de Sandel e John Stuart Mill. É assim, não raro, o debate ético: o choque de visões a um só tempo verdadeiras e conflitantes entre si. Daí, quem sabe, seu fascínio.
De minha parte, há muito desisti de oferecer soluções prontas para as pessoas. Aos ortodoxos, que tudo já sabem, não há mesmo muito a dizer. Aos demais, que ainda estão dispostos a refletir, o melhor que podemos fazer é ponderar argumentos e respeitar as escolhas de cada um.
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