terça-feira, 11 de março de 2025

Avanço da inteligência artificial esconde o segredo mais sujo da tecnologia, Alvaro Machado Dias, FSP

 Vou contar um segredo que todo CEO de big tech conhece, mas que nenhum ousa mencionar: o avanço da IA deve levar a uma forte subida das emissões, a despeito do compromisso do setor de zerá-las até 2030. Não adianta protestar; nessa década, pouca coisa pode alterar a trajetória infausta por uma razão simples: as matrizes renováveis mais escaláveis, solar e eólica, não são ideais para os servidores, do ponto de vista dos tecnologistas, que assim pularam para a maria-fumaça trumpista.

Servidores utilizam corrente alternada (AC), enquanto usinas eólicas e solares produzem corrente direta (DC). A conversão é simples e as perdas moderadas, mas a corrente gerada traz instabilidades persistentes, que os fornecedores alegam afetar os aparelhos, sendo que cada placa de vídeo de IA chega a custar R$ 160 mil nos EUA.

Datacenter em antiga base submarina em Marselha, sul da França - Clement Mahoudeau - 8.jul.20/AFP

Os servidores operam em um regime de duplo consumo energético, com serviços flexíveis, oriundos de demandas imediatas de processamento; e serviços inflexíveis, de rotina. Aqueles variam muito, exigindo tetos energéticos bem maiores do que a média de uso. A energia solar/eólica é intermitente, devendo ser armazenada em baterias caras e descartáveis. A necessidade do datacenter se manter operacional durante os horários de picos requer ampla disponibilidade desses equipamentos, ou uma estrutura híbrida, que traz uma nova camada de complexidade, ainda que seja bem mais comum do que apenas sol/vento.

Do mais, usinas de renováveis requerem áreas grandes e permissões ambientais, localizando-se fora das cidades. Datacenters seguem o raciocínio contrário, por necessitarem de redes de transmissão consistentes e mão de obra especializada. A combinação multiplica salários, investimentos em infraestrutura e de manutenção. A conclusão dos tecnologistas é que priorizar essas matrizes eleva demais o custo do projeto, a despeito do kWh mais barato. A questão é só de grana, mas ela decide o jogo em detrimento do bem comum.

O governo brasileiro prepara um decreto para subsidiar usinas eólicas e solares no Nordeste, com o intuito de atrair datacenters de IA, conforme a Folha reportou. Seiscentos milhões de uma conta bilionária já foram empenhados para gerar 200 MW, o que representa 1/750 da capacidade instalada no país, referência mundial em renováveis com as hidrelétricas.

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A região é ideal para a energia solar, só que no caso dos datacenters, uma das principais funções da energia é resfriar os servidores. Isso explica a predileção por regiões frias, que seria absoluta não fossem as dificuldades de instalação e gargalos de mão de obra em algumas delas. Esses fatores, aliados a um dos maiores impostos de importação do mundo, devem demover tecnologistas de se instalarem no Ceará e Piauí, que lideram o pleito, exceto sob condições ruins a ponto de não valerem a pena para nós.

O caminho é reconhecer que as empresas de IA tendem a construir suas plantas de processamento priorizando outras matrizes, inclusive gás natural, em paragens mais vantajosas. E pressionar para que compensem o prejuízo ambiental gerado. Já em termos locais, o melhor que podemos fazer é evitar que bilhões sejam injetados para enriquecer empresários oportunistas e gerar palanques eleitorais. O Brasil conta com opções de desenvolvimento tecnológico bem melhores do que essa.

Flor Caveira desafia rótulos ao juntar Sex Pistols e Jesus Cristo, Juliano Spyer, FSP

 Estou acostumado à diversidade dos evangélicos, mas fiquei sem palavras ao acompanhar o show de uma banda portuguesa de inspiração pós-punk liderada por dois pastores quarentões. Essa apresentação ocorreu na semana passada como parte da celebração dos 25 anos do selo Flor Caveira, em São Paulo.


O show aconteceu no Porão da Cerveja, um bar na Barra Funda que parece um templo punk: páginas de fanzines e animes decoram as paredes pretas. Cerveja, claro, lanches veganos no cardápio, pessoas tatuadas e cheiro de maconha no ar.

No setlist da banda, referências ao grupo punk paulista Ratos do Porão, ao filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, a Caetano Veloso e a salmos bíblicos. Apesar dessa mistura, a música não soa forçada ou pretensiosa nem tenta "passar mensagem". Os músicos se divertem (jubilam?) até mais do que a plateia.

Flor Caveira é um selo musical criado nos anos 2000 por um grupo de amigos da mesma igreja batista no subúrbio de Lisboa. Dez anos antes, eram adolescentes que ensaiavam rock de garagem na igreja.

Fracassaram no projeto de alcançar sucesso comercial, mas perseveraram na música.

O som das bandas ligadas ao selo Flor Caveira não é exatamente cristão. A religião aparece na mistura, junto com a influência de artistas como Bob Dylan, Johnny Cash e Sex Pistols. Pode parecer algo incompatível, como água e óleo, mas para eles uma coisa e outra vêm de Deus e expressam Sua beleza.

No centro desse movimento está Tiago Cavaco. Pastor batista, escritor e músico, ele já foi descrito como um "Woody Allen evangélico". Entendo a associação –a magreza de ambos, o envolvimento com a arte e a inquietação intelectual–, mas essa imagem é insuficiente.

Um homem com barba e óculos está posando em frente a um fundo metálico. Ele usa uma camiseta preta com a inscrição 'JOHNNY BILLY' e uma imagem em preto e branco de duas pessoas. O homem também está usando um boné cinza com a inscrição 'cbu'.
O pastor português Tiago Cavaco usa camiseta com Johnny Cash e o evangelista norte-americano Billy Graham - Divulgação


Cavaco conduz cultos de terno e gravata na Igreja Batista da Lapa, em Lisboa. Ele não leva uma vida dupla, mas no campo evangélico é reconhecido como um pastor tradicional e conservador. Em seu livro "Férias de Fornicação e Outras Murmurações de um Moralista", por exemplo, dispara contra "teenagers abastados, saídos dos seus colégios católicos, conduzindo o automóvel do papai para se deitarem com quem lhes apeteça".

Além do show no Porão da Cerveja, o aniversário da Flor Caveira proporcionou outro evento, este sim evangelizante, voltado para jovens, na Igreja Batista do Povo, na Vila Mariana, com a presença de pastores famosos.

O Brasil é, assim como a península Ibérica, um território de encontros de povos. Mas o evangelismo à brasileira vem especialmente das igrejas americanas e busca permanecer em uma bolha blindada. Existe aquilo que é "de Deus" e o que é "do mundo". Então, o consumo de arte e cultura costuma ser policiado e restrito a fontes autorizadas.

Por isso saúdo com entusiasmo o tropicalismo da Flor Caveira: sua despreocupação com o sucesso comercial, seu desinteresse em usar a música como meio para converter. Sobretudo, celebro sua coragem de criticar a estética gospel como ingênua, artisticamente pobre e culturalmente submissa às tradições evangélicas dos Estados Unidos.

Vale conferir as playlists no Spotify.

A indignidade dos descendentes no projeto do novo Código Civil, OESP

 Por Flavio Goldberg

Atualização: 

A proposta de reforma do Código Civil, atualmente sob análise do Congresso Nacional, propõe inovações de grande relevo no âmbito do direito das sucessões. Entre elas, merece destaque a ampliação das causas de indignidade, agora abarcando a conduta dos descendentes que, voluntária e injustificadamente, tenham abandonado afetiva ou materialmente seus pais, especialmente no ocaso da vida.

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A exclusão de herdeiros por indignidade, longe de constituir uma sanção de natureza meramente patrimonial, encerra uma resposta jurídica a uma quebra grave dos deveres de respeito e solidariedade que regem a vida familiar. O projeto, ao disciplinar expressamente o abandono afetivo como causa para alijamento da sucessão, dá concretude a um valor há muito reconhecido, mas nem sempre eficazmente tutelado pelo ordenamento: a dignidade dos ascendentes.

Não é sem razão que, ao longo da história, o dever de honra e cuidado para com os pais tenha sido consagrado não apenas nas leis civis, mas também nas regras de moral mais elementares. Consagrado no mandamento bíblico, “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Êxodo 20:12) traduz, de forma clara, a exigência de reciprocidade nas relações familiares. Não se trata de simples deferência formal. Trata-se de compromisso ético que, uma vez descumprido, autoriza a exclusão do benefício sucessório.

O legislador, atento à realidade social e às mudanças das estruturas familiares, reconhece que o vínculo de sangue não basta para legitimar a participação na herança. Exige-se do herdeiro comportamento condizente com os deveres de solidariedade e humanidade que legitimam a transmissão patrimonial. Ao prever a indignidade por abandono afetivo de ascendentes, o projeto reafirma que o direito sucessório deve premiar não apenas a proximidade biológica, mas também a conduta leal e respeitosa dos que se habilitam à condição de sucessores.

A exclusão do herdeiro indigno, por sua vez, não é automática. A lei exige a comprovação de conduta reprovável, praticada com dolo, em situações nas quais se evidencie a quebra do dever de assistência, seja ela moral ou material. No entanto, é certo que a simples ausência física não constitui, por si só, causa de indignidade. Impõe-se a demonstração de um abandono voluntário, injustificado e ofensivo à dignidade do ascendente.

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Trata-se de dar efetividade a um princípio que sempre orientou o direito das sucessões: a herança deve ser a culminação de uma trajetória de respeito e cuidado mútuo, não um prêmio imerecido. Assim, a nova disciplina proposta não inova na essência, mas atualiza o alcance de normas que sempre tiveram por fim proteger a dignidade do de cujus.

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Há, evidentemente, desafios de ordem probatória. A alegação de abandono afetivo não pode servir de pretexto para litigâncias infundadas. Caberá ao julgador, à luz dos elementos trazidos aos autos, avaliar se a conduta do descendente rompeu, de modo irreversível, o vínculo de solidariedade que deveria amparar a relação familiar.

Em última análise, a proposta de reforma restaura e reforça um valor que não é novo, mas que ganha nova roupagem normativa: honrar pai e mãe não é apenas virtude pessoal, mas também requisito ético para a habilitação à herança. O direito civil, sem recorrer a lições moralistas, afirma que quem desonra, abandona ou despreza não deve colher os frutos da sucessão.

Convidado deste artigo

Foto do autor Flavio Goldberg
Flavio Goldbergsaiba mais

Advogado e mestre em Direito. Foto: Arquivo pessoal