terça-feira, 1 de outubro de 2024

Os debates eleitorais ainda servem à democracia?, Wilson Gomes, FSP

 Os debates eleitorais ao vivo têm servido bem à democracia desde o primeiro grande confronto televisionado entre Kennedy e Nixon, em setembro de 1960. Por 64 anos, esses eventos forneceram uma plataforma para que eleitores comparassem, lado a lado, as propostas e visões dos candidatos, algo que sabatinas ou entrevistas isoladas não conseguem oferecer.

Isso não impediu, contudo, que os debates fossem transformados em arenas para encenações, constrangimentos e manipulações. Todo mundo aprendeu a jogar o jogo, a mentir descaradamente, a se esquivar de perguntas constrangedoras, a atacar os adversários por meio de acusações falsas. Esse jogo de dissimulação chegou a um extremo recentemente em São Paulo, com a participação de um candidato cujo propósito declarado era desmoralizar tanto o debate em si quanto o jornalismo que o promove. Um único "pombo no tabuleiro" mostrou-se capaz de instalar um caos de que só ele é beneficiário.

Frente a esse cenário, três perguntas surgem na discussão pública atual:

Por que não acabar de vez com o debate eleitoral ao vivo?

Compreendo a frustração de todos, mas eliminar os debates transmitidos ao vivo seria privar o eleitor do instrumento mais eficiente que conhecemos de comparação direta das candidaturas. O objetivo do debate sempre foi a comparabilidade simultânea da compreensão dos problemas e das soluções propostas por parte dos candidatos. E isso continua essencial.

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Então, por que não impedir que candidatos "disruptivos" participem?

Na ilustração de Ariel Severino, em cinzas e bico de pena preto, um pombo, do que não vemos a cabeça, está derrubando com as patas o rei e outras peças de xadrez, que se espalham, entre penas soltas, sobre o espaço da ilustração. O fundo da ilustração é uma textura de em tons de cinza.
Ariel Severino/Folhapress

Esse foi o argumento de Leão Serva em artigo recente nesta Folha. "Por que continuamos chamando figuras como Trump, Bolsonaro ou Marçal para debates? Estamos repetindo o erro que levou Hitler ao poder", disse ele. O veto a esses candidatos seria, pois, uma maneira de proteger o debate e a própria democracia.

O argumento é tentador, embora seja derivado da premissa de que o jornalismo "normaliza" candidatos que ameaçam a democracia —uma tese que considero ingênua, improvável e democraticamente problemática. É fato que tanto candidatos-pombo quanto figuras extremistas, ao desviar a discussão para ataques pessoais e narrativas polarizadoras, fazem com que o debate perca sua função de iluminar a decisão do eleitor.

Contudo, essa abordagem levanta questões de legitimidade. Uma democracia que precise ser protegida através do veto a um candidato com 20% de intenções de voto merece realmente esse nome? E que Xou da Xuxa democrático seria esse em que uma Redação ou comissão organizadora poderia ter o poder discricionário de vetar antecipadamente em debates a participação de alguém que tem apoio popular significativo e legítimo em nome de um mau comportamento previsto? Ou, o que é pior, pela antevisão de deméritos futuros? Onde seria calibrada essa pré-cognição que nos autorizaria moralmente a anular hoje do debate público todos os Hitlers do amanhã?

Em vez de excluir candidatos que desestabilizam o debate, é necessário reformar o formato para que não seja tão facilmente destruído por eles.

Como melhorar os debates e impedir os "pombos enxadristas"?

O primeiro passo é mudar a mentalidade, a começar pela maneira como os debates são percebidos, inclusive pelo jornalismo. O foco não deve estar em quem "ganhou" o debate, mas sim no eleitor. O verdadeiro "vencedor" deve ser o eleitor que saiu mais esclarecido, não o candidato mais eloquente ou aquele que melhor evitou as armadilhas ou deixou o adversário sem resposta. Debates não são uma corrida de cavalos, mas um instrumento de esclarecimento público.

Além disso, alguns ajustes práticos são possíveis. A adoção de "fact checking" em tempo real, por exemplo, pode forçar os candidatos a serem mais honestos em suas respostas. Também seria prudente reduzir os confrontos diretos entre candidatos, como se fossem duelos, focando mais em perguntas substantivas feitas por jornalistas e pelo público, com base em dados concretos e realistas. Vimos também como foi útil adotar sistemas de punições imediatas para quem viola as regras de civilidade e respeito durante o debate.

Por fim, 11 debates em um único turno eleitoral só se justificam se o objetivo dos promotores for o espetáculo e a audiência gerada pelos conflitos, não a comparabilidade de propostas concretas para ajudar a esclarecer os eleitores. Não faz sentido.

Os debates eleitorais, ao longo de seis décadas, provaram-se úteis nas democracias. Reformar o formato atual, em vez de abandoná-lo, permitirá que eles continuem a cumprir essa função mesmo em tempos de polarização e manipulação.

Avanço acelerado da energia solar até 2028 exigirá leilões anuais de potência, aponta ONS, FSP

 Rodrigo Viga Gaier

Rio de Janeiro | Reuters

Com as mudanças enxergadas na matriz elétrica até 2028, puxadas por um crescimento acelerado da energia solar, o Brasil precisará realizar contratações anuais de mais potência para o sistema elétrico, em leilões que serão essenciais para ajudar na operação mais desafiadora para o atendimento do pico da demanda por energia, disse o diretor de planejamento do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico).

Segundo Alexandre Zucarato, embora não fique responsável por estimar demanda para os leilões, o ONS identifica déficit "relevante" de potência para o futuro, sendo necessárias contratações na casa dos 3 gigawatts (GW) por ano para garantir mais conforto e tranquilidade na operação do setor elétrico.

"A gente não coloca o tamanho do déficit (de potência), até porque não se estima demanda de leilão. Estamos falando de algo relevante, na casa dos gigawatts, não é algo marginal", afirmou.

Painéis solares montados em mercado de Salvador
Painéis solares montados em mercado de Salvador - Rafaela Araújo/Folhapress

maior necessidade de potência para o setor elétrico ocorre principalmente com o crescimento da solar na matriz, fonte renovável que garante geração ao longo do dia mas que, quando deixa de produzir no final da tarde, exige que outras usinas entrem rapidamente em operação para assegurar a estabilidade do fornecimento de energia aos consumidores.

Segundo estimativas do ONS no PEN 2024 - Horizonte 2024-2028 (Plano da Operação Energética), a oferta de energia elétrica no Brasil deverá crescer cerca de 30 GW até 2028, para 245 GW de capacidade instalada, impulsionada pelas fontes eólica e solar e pela geração distribuída.

O principal destaque é o avanço da solar, tanto em grandes usinas centralizadas quanto na mini e micro geração distribuída. Somadas, essas modalidades de geração fotovoltaica deverão representar cerca de 26% da matriz brasileira ao final de 2028, contra 17,5% registrados em dezembro de 2023.

Por outro lado, a geração das hidrelétricas, consideradas o pulmão do setor elétrico nacional, deve perder participação, de 47,1% para 40,9% em 2028.

"O Brasil continua sobreofertado de energia, não tem sentido contratar energia, mas o requisito de potência é imprescindível, e a gente tem que colocar dentro do sistema atributo de atendimento à ponta", disse Zucarato.

"Pode ser de geração hidráulica, usina hidrelétrica reversível, termelétrica, bateria. Tem um portfólio para potência. O que a gente precisa é de um recurso que atenda a ponta, despachável e flexível", complementou, sem comentar sobre uma fonte preferível para o operador do sistema.

É injusto punir beneficiário do Bolsa Família que aposta em bets, diz pesquisadora, FSP (definitivo)

 

São Paulo

A pesquisadora Laura Müller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, considera "injusto" retirar o direito dos participantes do Bolsa Família de usarem como quiserem o cartão do benefício, como milhões têm feito nas apostas em bets.

Para Machado, esse é um problema de saúde pública, e o governo deveria se preocupar em regular a publicidade e informar a população sobre os malefícios da atividade, não em punir quem joga.

A economista e pesquisadora Laura Müller Machado, do Insper.
A economista e pesquisadora Laura Müller Machado, do Insper. - Zanone Fraissat/Folhapress - 23.set.21

Ela afirma ainda que trata-se de uma "vitória" o Bolsa Família ter alcançado o atual patamar em beneficiários e valores. Mas que o governo falha gravemente ao não oferecer mais nada no programa, como mecanismos de inclusão produtiva.

"Damos o Bolsa Família. Ótimo. E daí? Qual é o serviço que vai incluir essas pessoas, que vai conectá-las ao mercado de trabalho?", questiona. Machado diz ainda que o piso de R$ 600 pago de forma indiscriminada "não faz sentido nenhum".

O Bolsa Família atende hoje 20,7 milhões de famílias, o que leva o benefício a alcançar 1 em cada 4 brasileiros. O valor quadruplicou durante a disputa eleitoral entre Lula e Jair Bolsonaro, numa espécie de quem dá mais, e hoje paga cerca de R$ 600, em média. O orçamento saltou de R$ 41 bilhões em 2019 para R$ 169 bilhões em 2024. Como avalia o resultado da forte expansão?

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Gostaria que meu país pudesse ser o mais generoso possível com os vulneráveis, com responsabilidade fiscal. Pessoalmente, fico muito feliz e acho uma vitória que tenhamos aumentado o valor do Bolsa Família. Mas, assim como o valor melhorou, gostaria que o desenho do programa fosse o melhor possível também.

Porque entendo que existem restrições legais e fiscais, de limite orçamentário. Mas não há restrição para termos um desenho adequado. Já há consenso há muito tempo de que um programa adequado é o que leva em conta o per capita. Caso contrário, você cria incentivos perversos de diversas naturezas.

No passado, a gente tinha programa per capita, com um desenho amigável para transição para o mercado de trabalho. Hoje, não temos mais. Agora, temos um piso, que não faz sentido nenhum. Pois um casal recebe R$ 600. E um único indivíduo também recebe R$ 600, o que é injusto. Não faz sentido que um casal em condição de vulnerabilidade receba um valor per capita menor que uma pessoa sozinha.

Além de isso ser injusto, há um incentivo às pessoas fazerem declarações incorretas. Uma única família acaba declarando serem duas, porque isso é financeiramente benéfico. Esse desenho inadequado do programa também acaba gerando uma ineficiência grande.

Mas, tão importante quanto isso, é a transição para o mercado de trabalho. Desde os anos 2000, o percentual de ocupados entre os mais vulneráveis cai ano após ano. Eu gostaria que esses vulneráveis arrumassem trabalho. Queria dar um prêmio a eles, não tirá-los do Bolsa Família, porque é muito difícil as pessoas conseguirem uma ocupação digna.

Hoje, quem consegue um trabalho tem como prêmio a perda do Bolsa Família. Deveríamos mantê-la com o benefício por um período. Caso contrário, só desincentivamos, atrapalhando a transição dela de volta ao mercado de trabalho. O mais adequado seria uma transição lenta, segura, onde se dê tempo à pessoa para que ganhe segurança no mercado de trabalho, e que se vá tirando [o Bolsa Família] aos poucos.

Sobre esse ponto, o Brasil tem mais de uma dezena de estados em que há mais beneficiários do Bolsa Família do que trabalhadores formais. Em muitos casos, os vulneráveis não acessam o mercado formal, ficando à mercê de ocupações informais precárias, que podem pagar menos que o Bolsa Família. Há um desincentivo a buscarem trabalho?


Existe uma coisa chamada salário reserva. Que todos os seres humanos têm. É o valor mínimo pelo qual você aceita começar a trabalhar. Um fenômeno que um programa como esse gera é aumentar o salário reserva. E isso é bom. Porque, por exemplo, você previne trabalho escravo. Ninguém vai precisar mais trabalhar por menos de R$ 600.

Mas se estamos induzindo a população a ter um salário reserva maior, temos que ter um mercado de trabalho que ofereça para ela, no mínimo, um valor um pouco maior do que o Bolsa Família. O problema está na transição de falarmos para as pessoas que se elas arrumarem um trabalho, eu tiro o Bolsa Família. E elas vão ter de trocar uma coisa segura por outra insegura, o que é inviável.

Aumentar o valor do benefício é um mérito. Agora, não ter lançado a transição desse modelo de política social para o mercado de trabalho foi um erro. O que precisamos, mais do que brigar com o valor do Bolsa Família, é adequar uma política social que transite para o mercado de trabalho de uma maneira suave e inteligente.

Porque fazer um Bolsa Família desse tamanho sem política de trabalho para a população pobre, vai dar besteira mesmo. E é uma baita exclusão, porque a gente vive numa sociedade pautada pelo trabalho. Goste-se ou não, para você se inserir socialmente é preciso estar trabalhando.

E o que fazemos ao tirar o Bolsa Família de quem consegue trabalho é gerar insegurança. E não temos uma rede de cuidado com o trabalhador, para qualificá-lo profissionalmente, para dar acesso a microcrédito, intermediação de mão de obra, ensinar ele a embalar o produto dele para valer mais. O que a gente faz? Transferimos renda, mas não cuidamos da inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

Estava ouvindo um caso de um motorista de fretes que se enrolou com dívidas e teve de vender seu caminhão. Entrou para o Bolsa Família e ficou deprimido. Ninguém disse a ele que poderia trabalhar como Uber e tirar R$ 3.000 por mês. Porque ele já tinha uma profissão, uma carreira, e podia continuar nela. Mas não tem ajuda.

Antes, com o Brasil Sem Miséria [2011-2016, no governo Dilma Rousseff], tínhamos 17 ações, e o Bolsa Família era uma delas, para garantir a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho. Isso não existe mais.

Ou seja, isso deveria ser uma iniciativa do governo federal, de reorganizar o programa e aperfeiçoa-lo, em vez de simplesmente transferir renda de forma até desigual, como você disse no início, certo?

Sim. Eu não estou vendo nenhuma política de inclusão no trabalho para o mais pobre. Onde é que está? Damos o Bolsa Família. Ótimo. E daí? Qual é o serviço que vai incluir essas pessoas, que vai conectá-las ao mercado de trabalho? É preciso microcrédito, intermediação de mão de obra, treinamento. Mas, cadê?

Precisamos conversar com a população, entender o que ela precisa, incluir essas pessoas, ajudá-las a fazer um "match" entre sua experiência e as necessidades do mercado.

O Brasil e o mundo inteiro se empolgou com a transferência de renda porque é mais fácil, mas está faltando complemento. O Brasil Sem Miséria era lindo, gigante. Tinha duas frentes: política de trabalho para o meio rural e o meio urbano, pautados em agricultura familiar e em qualificação profissional, com intermediação de mão de obra.

Hoje, quem está fazendo programa de inclusão ao trabalho são os estados. Em Minas Gerais, com o Percursos Gerais, de combate à pobreza rural; no Paraná, com a Nossa Gente Paraná, com inclusão social. Mas no governo federal, não vejo mais. E os desenhistas e implementadores do Brasil Sem Miséria estão por aí, no BNDES, espalhados pelo governo. Não sei, não entendo.


Na semana passada, uma nota técnica do Banco Central revelou que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família fizeram apostas em bets em agosto, num total de R$ 3 bilhões, com mediana de gastos de R$ 100. Alguns sugerem que o Bolsa Família talvez esteja sendo pago às pessoas erradas, pois é um dinheiro para sobrevivência, ou que o valor é alto demais. Como você avalia esse fenômeno?

A população como um todo está fazendo isso, e o beneficiário também faz parte da população. Com o recurso que ele tem. Pois, se entendermos isso como um fenômeno de saúde e de vício, ele vai abranger toda a população, igual à Covid. Pega um monte de gente, pega todo mundo.

Temos um histórico enorme de combater jogo do bicho, o cigarro. Se você comprar cigarro vai estar escrito no verso, com uma foto horrorosa, uma mensagem explicando todas as coisas ruins que vão acontecer com você.

Compra de bebida é a mesma coisa. É regulado. Esses consumos danosos têm de estar regulados. Como é que pode fazer propaganda desse jeito de jogos? Um monte de comercial na TV, vídeos no YouTube, Instagram, explicando para as pessoas que aquilo é um jeito fácil de ganhar a vida. E vamos punir as pessoas que jogam?

Isso aí é vício. A pessoa é enganada, e não tem educação financeira. A população não entende as implicações que pode ter, pois está sendo enganada. É preciso regular a propaganda, informar as pessoas do que se trata. Informar o percentual dos que de fato ganham e têm essa vida maravilhosa que aparece na propaganda.

O governo avalia medidas para interditar o uso do cartão do Bolsa Família em apostas eletrônicas. Como avalia a medida?

Isso é mais um problema de saúde pública do que do benefício do Bolsa Família. A população como um todo que faz apostas soma um número infinitamente maior. Acho muito triste o que está acontecendo. O jeito certo de fazer as coisas é explicar para as pessoas as consequências.

Essa coisa de tolher e dizer o que a pessoa tem que fazer... Eu acho injusto. A pessoa tem um dinheiro ali no final do mês e ela quer se divertir, comprar uma cerveja, sei lá. As pessoas têm esse direito, de se divertir à sua maneira. Mas o que elas têm também direito é de estar informadas sobre as consequências das coisas que elas fazem e realmente bem informadas sobre do que se trata essas apostas.

Do que eu tenho visto, fico é com dó das pessoas. Todos esses influenciadores na rede digital vendendo uma vida ótima, e o pessoal do Bolsa Família nem trabalho tem. Têm de pedir para trabalhar. Aí ficam o dia inteiro no celular, olhando essas coisas aí, que estão contando pra ela que ela vai enriquecer rápido se fizer aquilo. Uma população sem educação financeira, com esse nível de propaganda, dá nisso.

LAURA MÜLLER MACHADO
Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. É colunista da Folha.