quinta-feira, 6 de junho de 2024

'Fui acusado de ser do PCC sem cometer um crime na vida', diz empresário de ônibus de SP, FSP

 

SÃO PAULO

O empresário Valter da Silva Bispo, 55, foi acordado na madrugada de 22 de agosto de 2022 por policiais e promotores de Justiça em uma das operações de combate à suposta infiltração do PCC no transporte público da capital paulista.

Bispo, que é presidente da Transcap, empresa que transporta 110 mil passageiros por dia na zona sudoeste de São Paulo, relata que teve a casa revirada e foi levado algemado, diante da família e de vizinhos.

Oito meses depois, porém, a Justiça mandou soltá-lo e, após outros seis meses, o absolveu de todas as acusações. A Promotoria não recorreu, e o processo transitou em julgado (sem possibilidade de recurso).

O presidente da empresa de ônibus Transcap, Valter da Silva Bispo, preso sob a suspeita de ligação com o PCC que, segundo a Justiça, não existia - Danilo Verpa/Folhapress

Mesmo inocentado, Bispo diz sofrer com os efeitos de uma prisão desnecessária. Convive com os traumas (ele diz temer uma nova prisão) e com as marcas de uma "passagem pela polícia", como não conseguir fazer seguro de um carro e ter o visto americano cancelado.

"[Meu receio é] eles falarem algo que eu não consiga rebater. Eu era criminoso do PCC sem nunca ter cometido um crime na vida. A minha cara estava estampada na televisão como do PCC sem ter feito um crime na vida. Então, isso é muito complexo para uma pessoa que sempre foi íntegra", disse.

Embora as investigações tenham sido conduzidas também pela polícia, o empresário culpa o trabalho do Gaeco (grupo de combate ao crime organizado) por seu infortúnio porque, conforme diz, promotores menosprezaram testemunhos que garantiam a inocência dele.

No final de outubro de 2022, a Justiça chegou a conceder liberdade provisória ao empresário, mas ele teve de voltar à prisão 16 dias depois, após recurso do Ministério Público.

"Eu digo assim: o promotor que se candidata a deputado federal, que quer ser senador, que quer ser presidente da República, ele quer ficar na mídia. Independentemente de qual pai de família que ele vai matar. Independentemente qual a família que ele vai desmoronar. Independentemente de quem ele vai atingir", afirmou o empresário.

O empresário foi denunciado pelo Ministério Público em agosto de 2022, sob a suspeita de ter extorquido dinheiro de um grupo de pessoas ligadas à Transcap, entre os quais o sócio Ronaldo Tadeu de Oliveira. Este teria sido obrigado a repassar R$ 2 milhões à empresa.

Esse valor seria dividido em dez parcelas. Após o pagamento da primeira delas, em 20 de dezembro de 2021, Oliveira procurou a polícia para pedir ajuda. Na ocasião, narrou a existência de outras duas vítimas, Denis de Oliveira Silva e Ademilson Cunha, o contador e o advogado da empresa, respectivamente.

Silva teria sido constrangido a pagar R$ 285 mil, e Cunha, R$ 2 milhões. Segundo as supostas vítimas, o motivo alegado por Bispo seria a descoberta de desvios feitos por elas. A extorsão teria sido feita por meio de ameaças e até coronhadas, conforme a denúncia.

Em uma das ameaças, segundo a Promotoria, a vítima passou a ser obrigada a devolver o dinheiro à empresa "sob pena de ter que prestar contas a integrantes da facção criminosa PCC".

"Um inspetor operacional da empresa, de alcunha 'Fumaça', trabalharia na região da comunidade conhecida por favela de Paraisópolis e seria o responsável por trazer os integrantes da organização criminosa para a cobrança dos valores devidos", diz trecho da denúncia contra o presidente da Transcap.

Com a prisão de Bispo, o grupo das supostas vítimas assumiu o controle da empresa.

O presidente da empresa de ônibus Transcap, Valter da Silva Bispo, chora durante entrevista ao lembrar dos momentos de cárcere e do sofrimento da família - Danilo Verpa/Folhapress

Em sua sentença, a juíza Valéria Longobardi diz que não ficaram comprovadas as supostas extorsões alegadas contra o empresário e, também, que as mensagens sobre Paraisópolis e o inspetor Fumaça "em nada relacionam o réu Valter [Bispo] com pessoas ligadas ao PCC".

"Portanto, ao contrário do alegado na denúncia e nas alegações finais ofertadas pelo Ministério Público, apesar de todo empenho, não se vislumbra prática de crime de extorsão", diz trecho da decisão judicial.

Em entrevista à Folha, Expedito Otaviano Machado, 72, o Fumaça, negou qualquer ligação com a facção criminosa e defendeu o presidente da empresa. "Fiquei até doente quando ele foi preso."

Antes mesmo da operação da polícia e da Promotoria, Bispo diz ter tomado conhecimento da investigação policial porque o inquérito, mesmo sigiloso, acabou sendo incluído em uma ação cível.

"Falei: legal, quando a polícia vier aqui, quando receber uma intimação para ir à delegacia prestar esclarecimento, eu vou mostrar quem é bandido. Fiquei indignado porque na madrugada bateram na minha porta, 5h, 5h15. Falaram que tinha um mandado de prisão e me algemaram."

O inspetor da Transcap, Expedito Otaviano Machado, 72, apontado em investigação como suposto elo do PCC e o presidente Valter da Silva Bispo, versão não aceita pela Justiça - Danilo Verpa/Folhapress

Ainda sobre a vida no sistema prisional, Bispo diz que chegou a pensar no pior. "Vou te dizer: nos primeiros dias, se tivesse jeito de eu me matar, eu teria me matado dentro daquilo ali. Procurei cordinha, procurei qualquer coisa. Nem isso você consegue", disse.

O empresário diz ainda que um dos momentos de maior revolta foi quando, depois de seis meses na prisão, recebeu a visita de membros do Gaeco com uma proposta de delação. O objetivo dos promotores, conforme diz, era obter nomes de políticos.

"Vocês me colocaram no meio de gente que matou, roubou, estuprou, tacou fogo em criança, em mulher grávida. Vocês deixaram um pai de família que nunca fez nada de errado aqui dentro. [Mesmo] se eu soubesse, por terem me deixado aqui, eu não falaria, vocês podem me deixar mais 20. Não tem problema", teria dito empresário em resposta, segundo narra.

No início de abril deste ano, o Gaeco realizou uma operação em parceria com a Polícia Militar batizada de "Fim da Linha" contra dirigentes do transporte da capital, entre os quais da Transwolff.

Na denúncia, promotores colocaram como testemunhas a serem ouvidas o deputado federal Jilmar Tatto (PT) e o vereador paulistano Milton Leite (União). No final do mês passado, a Folha revelou que Leite está entre os investigados da Promotoria.

Sobre a operação contra a Transwolff, Bispo disse conhecer o empresário Luiz Carlos Efigênio Pacheco, o Pandora, há 30 anos. "Não sou advogado de ninguém, nem quero ser. Mas eu conheço o Luiz. Posso garantir que ele não é do crime organizado. Se ele tem algum problema, é problema fiscal, contábil, mas não é criminoso."

Procurados pela Folha, promotores do Gaeco responderam em nota. "A denúncia em tela [contra Bispo], que foi recebida pela Justiça, baseou-se nos indícios probatórios levantados na fase de investigação, como manda a lei. Na fase processual, não ocorreu a produção de provas contundentes para a condenação do réu."

Sobre a oferta de delação premiada, a Promotoria confirmou as tratativas para tentar formalizá-la, mas negou o teor das conversas citado por Bispo. Não informou, contudo, como elas aconteceram.

"De fato, promotores de Justiça mantiveram tratativas com o presidente da Transcap, na presença de seu advogado, para a formalização de um instrumento de colaboração premiada, acordo que acabou não prosperando. O relato do repórter não expressa os termos da conversação", diz a nota da Promotoria.

A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) informou, por sua vez, que Bispo deu entrada em 10 de novembro de 2022 e colocado em liberdade em 28 de abril de 2023, sem nenhum registro anterior.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Wilson Gomes - Os ritos de descompostura e o diálogo impossível na política brasileira, FSP

Na semana passada, escrevi sobre como valores como tolerância, racionalidade e confiança recíproca foram drenados do debate público nacional, deixando em seu lugar a aridez dos conflitos buscados a todo custo e sem razão substancial. O que torna impossível tanto uma convivência política não beligerante quanto a negociação de projetos comuns.

Expresso esse lamento não por alguma nostalgia de um passado mítico em que o lobo pastava com o cordeiro ou por alguma utopia de futuro em que cidadãos socráticos resolvem seus inevitáveis desacordos numa troca aberta e leal de razões, orientada exclusivamente pelo princípio de que o melhor argumento deve prevalecer.

Vivemos em uma sociedade pluralista, em que as diferenças são cada vez mais numerosas e conscientemente elaboradas. Ou a nossa jovem democracia, um projeto experimental perene, encontra uma maneira de acomodar e negociar essas diferenças, ou será substituída por um regime autocrático liderado pela parte mais forte, como se tentou fazer em 8 de janeiro.

O debate público é, ao mesmo tempo, um sintoma de como as forças sociais distintas lidam com suas cada vez mais agudas diferenças e um teste de conceito para ver se uma democracia pluralista é capaz de sobreviver entre nós, apesar de tanto radicalismo, dogmatismo e fúria social.

Entramos numa fase em que o conflito no debate público se transformou em um rito e um modelo de negócio.

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Não há semana em que um grupo não repita o ritual que começa com uma denúncia de grave violação de alguma crença ou valor por parte de alguém, mesmo que nada de grave tenha realmente ocorrido, passa por ondas sucessivas de descomposturas ao considerado infrator, para eventualmente culminar nos ataques diretos ao cancelado: ameaças, extensivas à família, revelações voltadas para a destruição de sua credibilidade ou reputação e pressões sobre empregadores ou patrocinadores.

As descomposturas, ou seja, os ritos de repreensão pública ríspida, dura, desrespeitosa e humilhante, são a ordem do dia e qualquer um está autorizado a fazê-las. Ultimamente, começo a duvidar de que um sentimento sincero de ultraje moral esteja por trás dessa conduta. Apenas se repete um rito com dois objetivos calculados: reafirmar para o seu grupo a adesão aos valores compartilhados nele e acumular capital moral no mercado público de virtudes, mostrando-se como um zeloso defensor do Bem, do Belo e do Verdadeiro.

O grupo sai fortalecido do episódio ao reforçar suas crenças e mostrar aos seus como são vis e ativos os inimigos; o autor da descompostura sobe no apreço coletivo de sua comunidade ideológica e, muitas vezes, até "monetiza" a estima social; por fim, há um considerável reforço na autoestima de quem "performa" o rito de humilhação do adversário pela reafirmação de sua superioridade moral.

Na ilustração de Ariel Severino, sobre uma folha de papel, um lápis verde, um apontador de chumbo cinza e restos de aparas de madeira e grafite que sobraram após apontar o lápis. O lápis está quebrado ao meio, a ponta do mesmo também ficou quebrada sobre o papel. Por sua vez, o papel embaixo (fundo da ilustração) está rasgado, deixando ver um rasgo preto. A percepção é de que, o que, ou quem rasgou o papel também acabou quebrando o lápis.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 4 de junho de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Sim, fatura-se com cancelamentos e patrulhamento ideológico com a mesma aura de santidade com que outras pessoas faturam com crenças religiosas e oferta de curas e milagres.

Um desses rituais aconteceu na semana passada com Francisco Bosco, que, por ironia do destino, é um autor que fala justamente sobre a degradação e a necessidade de recuperação do debate público nacional. A gravíssima infração moral consistiu em concordar com Olavo de Carvalho, o falecido guru da extrema direita, sob um único aspecto e com ressalva: "durante as últimas décadas, a universidade brasileira concentrou excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda".

Pode-se rejeitar factualmente a hipótese, integralmente ou em parte, e podem-se traçar ulteriores distinções, claro, mas nenhuma imoralidade foi praticada e duvido que, examinando-se com honesta sinceridade, a maioria de nós não encontre um jeito de concordar pelo menos em parte com o que foi dito.

Por que, então, a histeria pública na esquerda com essa tese? Por que tanta gente atacou Bosco, despindo-o acintosamente de seu inegável papel de intelectual, acusando-o de ignorante, malicioso ou desprezível conservador?

A resposta é espantosamente simples. A frase "Olavo (sob este aspecto) tem razão" acertou em um nervo exposto de uma esquerda cujo time está sempre pronto para disputar campeonatos morais. Olavo não pode ter razão; a razão e Olavo nunca se encontraram, diz o dogma. Até relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia, mas dizer que Olavo teve alguma razão em algum momento da sua enorme obra é pecado passível de excomunhão. O certo, inclusive, é nunca dizer "Olavo", mas "Aquele Cujo Nome Não Pode Ser Pronunciado". É triste, mas é só isso.

É isto um debate público?

 

Brasil desafia complexo de vira-latas quando assunto é energia limpa, Ricardo Mussa FSP

 Deu no Financial Times: duas das maiores instituições financeiras da Europa, os bancos franceses BNP Paribas e Crédit Agricole, informaram que não mais submeterão emissões de títulos (conventional bonds) ao setor de petróleo e gás, impondo restrições inéditas a novos projetos de extração desses energéticos.

O que isso significa? É um sinal de que o mundo tende a perseguir os projetos de energia renovável para prover a segurança de abastecimento nas próximas décadas.

A boa notícia: o Brasil, que já tem 85% de sua matriz elétrica e quase 50% de sua matriz energética abastecidas por fontes renováveis, está muito bem posicionado para cumprir um papel relevante nessa virada de chave global.

Basta ver o relatório Renewables 2023, da AIE (Agência Internacional de Energia).

Transcrevo, traduzido, um trecho do relatório: "As economias emergentes, lideradas pelo Brasil, dominam a expansão global dos biocombustíveis, que deverá crescer 30% mais rapidamente do que nos últimos cinco anos. Apoiadas por políticas robustas de biocombustíveis, pelo aumento da procura de combustíveis para transportes e pelo potencial abundante de matérias-primas, prevê-se que as economias emergentes impulsionem 70% do crescimento da procura global de biocombustíveis durante o período previsto. Só o Brasil será responsável por 40% da expansão dos biocombustíveis até 2028".

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O grande desafio global para a transformação da matriz energética está exatamente no setor de transportes, que usa predominantemente combustíveis fósseis. É onde o Brasil mais brilha. Quase 50 anos depois do lançamento do Proálcool, o Programa Nacional do Álcool, em 1975, o Brasil é o segundo maior produtor de etanol do mundo, com o volume de 31,2 bilhões de litros na safra 2022/2023.

Colheitadeira despeja cana em caminhão no interior de São Paulo em novembro de 2015, quando o Proálcool completou 40 anos - Eduardo Knapp - 12.nov.15/Folhapress

Foram a criação e a manutenção de uma série de políticas públicas que fomentaram o surgimento de gerações dedicadas à pesquisa e ao desenvolvimento de novas tecnologias, como o etanol de segunda geração, combustível que tem uma pegada de carbono 30% inferior ao de primeira geração e até 80% abaixo da registrada por combustíveis fósseis como a gasolina.

O fato de ser originado de resíduos como o bagaço e a palha de cana-de-açúcar, sem aumento de área plantada e sem competir com a produção de alimentos, permite que esse ativo nacional atinja mercados externos antes não alcançáveis. É economia circular e muito complementar.

O que isso vai trazer de bom? O país pode liderar não só a exportação de combustível verde mas a própria venda de tecnologia.

Agora, a vida como ela é: o Brasil é o lugar onde tudo isso vem acontecendo. E isso desafia quem eventualmente cultive o chamado "complexo de vira-lata" —expressão eternizada pelo genial Nelson Rodrigues, ainda nos anos 1950.

É um feito para se orgulhar, da excelência de universidades e institutos ao empenho de pesquisadores e profissionais que trabalharam anos a fio para encontrar uma solução em escala industrial, passando por instituições científicas —de fomento e empresariais— determinadas a investir em transição energética. E as parcerias público-privadas são essenciais para prosseguir com a formação de profissionais e fornecedores capacitados.

Quando o assunto é energia renovável, o país não tem razões para ter questões com autoestima: temos tecnologia, matéria-prima e mão de obra especializada para oferecer ao mundo soluções em descarbonização.

E a melhor fronteira exploratória para a segurança do suprimento, agora e no futuro, é investir em energias renováveis.