quarta-feira, 5 de junho de 2024

Wilson Gomes - Os ritos de descompostura e o diálogo impossível na política brasileira, FSP

Na semana passada, escrevi sobre como valores como tolerância, racionalidade e confiança recíproca foram drenados do debate público nacional, deixando em seu lugar a aridez dos conflitos buscados a todo custo e sem razão substancial. O que torna impossível tanto uma convivência política não beligerante quanto a negociação de projetos comuns.

Expresso esse lamento não por alguma nostalgia de um passado mítico em que o lobo pastava com o cordeiro ou por alguma utopia de futuro em que cidadãos socráticos resolvem seus inevitáveis desacordos numa troca aberta e leal de razões, orientada exclusivamente pelo princípio de que o melhor argumento deve prevalecer.

Vivemos em uma sociedade pluralista, em que as diferenças são cada vez mais numerosas e conscientemente elaboradas. Ou a nossa jovem democracia, um projeto experimental perene, encontra uma maneira de acomodar e negociar essas diferenças, ou será substituída por um regime autocrático liderado pela parte mais forte, como se tentou fazer em 8 de janeiro.

O debate público é, ao mesmo tempo, um sintoma de como as forças sociais distintas lidam com suas cada vez mais agudas diferenças e um teste de conceito para ver se uma democracia pluralista é capaz de sobreviver entre nós, apesar de tanto radicalismo, dogmatismo e fúria social.

Entramos numa fase em que o conflito no debate público se transformou em um rito e um modelo de negócio.

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Não há semana em que um grupo não repita o ritual que começa com uma denúncia de grave violação de alguma crença ou valor por parte de alguém, mesmo que nada de grave tenha realmente ocorrido, passa por ondas sucessivas de descomposturas ao considerado infrator, para eventualmente culminar nos ataques diretos ao cancelado: ameaças, extensivas à família, revelações voltadas para a destruição de sua credibilidade ou reputação e pressões sobre empregadores ou patrocinadores.

As descomposturas, ou seja, os ritos de repreensão pública ríspida, dura, desrespeitosa e humilhante, são a ordem do dia e qualquer um está autorizado a fazê-las. Ultimamente, começo a duvidar de que um sentimento sincero de ultraje moral esteja por trás dessa conduta. Apenas se repete um rito com dois objetivos calculados: reafirmar para o seu grupo a adesão aos valores compartilhados nele e acumular capital moral no mercado público de virtudes, mostrando-se como um zeloso defensor do Bem, do Belo e do Verdadeiro.

O grupo sai fortalecido do episódio ao reforçar suas crenças e mostrar aos seus como são vis e ativos os inimigos; o autor da descompostura sobe no apreço coletivo de sua comunidade ideológica e, muitas vezes, até "monetiza" a estima social; por fim, há um considerável reforço na autoestima de quem "performa" o rito de humilhação do adversário pela reafirmação de sua superioridade moral.

Na ilustração de Ariel Severino, sobre uma folha de papel, um lápis verde, um apontador de chumbo cinza e restos de aparas de madeira e grafite que sobraram após apontar o lápis. O lápis está quebrado ao meio, a ponta do mesmo também ficou quebrada sobre o papel. Por sua vez, o papel embaixo (fundo da ilustração) está rasgado, deixando ver um rasgo preto. A percepção é de que, o que, ou quem rasgou o papel também acabou quebrando o lápis.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 4 de junho de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Sim, fatura-se com cancelamentos e patrulhamento ideológico com a mesma aura de santidade com que outras pessoas faturam com crenças religiosas e oferta de curas e milagres.

Um desses rituais aconteceu na semana passada com Francisco Bosco, que, por ironia do destino, é um autor que fala justamente sobre a degradação e a necessidade de recuperação do debate público nacional. A gravíssima infração moral consistiu em concordar com Olavo de Carvalho, o falecido guru da extrema direita, sob um único aspecto e com ressalva: "durante as últimas décadas, a universidade brasileira concentrou excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda".

Pode-se rejeitar factualmente a hipótese, integralmente ou em parte, e podem-se traçar ulteriores distinções, claro, mas nenhuma imoralidade foi praticada e duvido que, examinando-se com honesta sinceridade, a maioria de nós não encontre um jeito de concordar pelo menos em parte com o que foi dito.

Por que, então, a histeria pública na esquerda com essa tese? Por que tanta gente atacou Bosco, despindo-o acintosamente de seu inegável papel de intelectual, acusando-o de ignorante, malicioso ou desprezível conservador?

A resposta é espantosamente simples. A frase "Olavo (sob este aspecto) tem razão" acertou em um nervo exposto de uma esquerda cujo time está sempre pronto para disputar campeonatos morais. Olavo não pode ter razão; a razão e Olavo nunca se encontraram, diz o dogma. Até relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia, mas dizer que Olavo teve alguma razão em algum momento da sua enorme obra é pecado passível de excomunhão. O certo, inclusive, é nunca dizer "Olavo", mas "Aquele Cujo Nome Não Pode Ser Pronunciado". É triste, mas é só isso.

É isto um debate público?

 

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