domingo, 2 de junho de 2024

Kafka, morto há cem anos, deu impulso a debate sobre herdeiros literários, FSP

 Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

[RESUMO] Morto há cem anos, Franz Kafka só se tornou um ícone da literatura mundial porque seu melhor amigo, Max Brod, desrespeitou o pedido do escritor e publicou, após a morte dele, textos inacabados, como "O Castelo" e "O Processo". O caso tornou-se emblemático em um debate ético cada vez mais comum desde então, envolvendo a vontade de escritores, o interesse público na difusão das obras e a responsabilidade de herdeiros, aspectos muitas vezes conflitantes entre si.

Franz Kafka, que nesta segunda (3/6) completa cem anos de morte, é famoso não somente por sua obra literária, mas pelo fato de boa parte dela ter sido publicada a sua revelia.

Kafka, no leito de morte, pediu em carta que seu melhor amigo, Max Brod, queimasse seus diários e textos ficcionais inéditos, incompletos, rascunhados. Se Brod fosse um bom amigo, de fato, jamais teríamos lido "O Castelo", "O Processo" ou "América", e muito menos a "Carta ao Pai".

Por um lado, a qualidade das obras que Kafka publicou em vida —como "O Veredito", "Na Colônia Penal", "A Metamorfose", "Um Médico Rural" e, especialmente, "Um Artista da Fome"— já nos parece mais que suficiente para garantir seu nome na história da literatura. Por outro, sabemos que ele morreu como um ilustre desconhecido: nenhuma dessas obras foi recebida ou celebrada como um trabalho de gênio.

Estátua em homenagem ao escritor Franz Kafka em Praga, na República Tcheca - Antonio Arruda-21.out.04/Folhapress

A verdade é que o Kafka que conhecemos, o grande autor da literatura universal, foi uma criação de Max Brod e só pôde começar a existir exatos cem anos atrás, quando o Kafka de carne e osso levou para o túmulo toda sua vergonha e timidez. Brod passou a vida vendendo, promovendo, divulgando seu amigo. O pedido de Kafka, porém, não foi para tornar-se famoso, mas para não ser exposto. Para não ser julgado por obras que não considerava à sua altura.

Até hoje, o debate sobre a atitude de Brod continua gerando novas questões éticas. A quem pertence uma obra literária? O público tem direito à obra, mesmo à revelia do artista? O artista tem direito de destruir sua obra, mesmo à revelia do público? O trabalho de um herdeiro literário, como Brod, é servir à obra, ao artista, à família, à humanidade, ao estado? A obrigação de um herdeiro é publicar o máximo, deixando o público decidir o que é bom e o que é ruim? Ou publicar o mínimo, respeitando os padrões de qualidade do artista? (Um excelente livro sobre o tema é "Os Testamentos Traídos", de Milan Kundera, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.)

Brod nem imaginava, mas ao se recusar a queimar os papéis de Kafka, estava se constituindo em Santo Padroeiro de uma das confrarias mais problemáticas do século: a dos herdeiros literários.

O POEMA QUE CLARICE NUNCA ESCREVEU

Clarice Lispector nunca escreveu poesia. Ainda assim, em 2001, o poema "Mude" foi atribuído a ela em uma campanha publicitária da Fiat. Em resposta, o poeta santista Edson Marques prontamente processou a agência criadora da peça, Leo Burnett, argumentando que era ele o autor de "Mude".

A agência respondeu que comprou os direitos regularmente de Paulo Gurgel Valente, filho e herdeiro de Clarice, e que ele inclusive autorizou cortes no texto. Somente em 2017 poeta e agência fizeram um acordo para extinguir a ação. O herdeiro, que não quis falar com a Folha, embolsou R$ 40 mil para licenciar o poema, mas não há provas de que tivesse direito a ele.

OS SOBRINHOS DA ESPOSA DE BORGES

No mesmo ano em que faleceu, 1986, o escritor argentino Jorge Luis Borges se casou com sua secretária, Maria Kodama, quase quarenta anos mais jovem. Alguns anos antes, Borges já legara a ela todos os seus bens, inclusive seus direitos autorais.

Ou seja, foi decisão consciente: ele queria que Kodama cuidasse de sua obra e foi o que ela fez, no limite do razoável, inclusive processando escritores como Pablo Katchadjian, que tentaram fazer com a obra de Borges as mesmas brincadeiras que Borges fez com as obras de tantos outros.

Kodama, porém, morreu no ano passado sem deixar testamento e sem indicar um sucessor. Agora, uma juíza acaba de decidir que, pelos próximos 30 anos, até cair no domínio público em 2056, uma das obras literárias mais importantes da América Latina ficará nas mãos não de filhos ou da cônjuge do artista, mas de cinco sobrinhos distantes da mulher com quem ele se casou em seu último ano de vida. Deve o estado comprar esses direitos?, se perguntam os argentinos. Confiscá-los? Existe algo a se fazer?

A DESAPROPRIAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS

Machado de Assis, como se sabe, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Mas legou sim, em testamento, a propriedade de sua obra literária ao livreiro H. Garnier, da rua do Ouvidor. Em 1935, , esses direitos foram comprados pela editora W. M. Jackson, que já em 1937 lançou a obra completa do autor em 37 volumes.

Por diversos motivos, essa edição foi rechaçada pela intelectualidade da época. Nas palavras do romancista Autran Dourado, quando se apontavam na imprensa "os seus erros" e "as imperfeições de seus textos", "lá vinha ela [a editora Jackson] com pareceres caríssimos de juristas de aluguel, provando que Machado de Assis era monopólio dela. E assim a coisa ia se passando e a Jackson enriquecendo."

Finalmente, em 1958, aos 50 anos da morte de Machado, Dourado, então secretário de imprensa de Juscelino Kubitschek , decidiu fazer justiça literária com as próprias mãos. Amealhou apoio de vários intelectuais, criou toda uma situação midiática, pediu um parecer jurídico do consultor-geral da República, redigiu ele mesmo um decreto-lei e Juscelino assinou sem nem ler. Dourado conta a história em seu "Gaiola aberta: Tempos de JK e Schmidt", publicado pela Rocco em 2000:

"Os jornalistas que faziam parte do complô providenciaram os fotógrafos para o dia seguinte, quando o presidente assinaria o ato. Levei comigo para o palácio o meu exemplar de 'Dom Casmurro', disse ao presidente que fingisse que estava lendo. 'O que você está me aprontando', me perguntou. 'Basta assinar aqui, amanhã o senhor vai ver que maravilha'. No alto do parecer estava escrito apenas APROVO. JK assinou sem me perguntar o que era. No dia seguinte foi fotografia de JK na primeira página de todos os jornais. Quando entrei no seu gabinete, ele disse 'isso, sim, é que é serviço'".

E foi assim, por meio de uma canetada obtida fraudulentamente, graças às mentiras de um mentiroso profissional, que a obra completa do nosso maior mentiroso foi desapropriada e passou ao domínio público. Fica a dica aos hermanos.

A APROPRIAÇÃO DE GARCIA MÁRQUEZ

Acabou de ser publicada uma "nova" obra de Gabriel Garcia Márquez, autor falecido em 2014: um romance inacabado, escrito quando já sofria de demência, com o qual estava manifestadamente insatisfeito e que mandou destruir.

Tudo isso o herdeiro confessa candidamente no prefácio. Ainda assim, publica. Quem poderia dizer se foi porque, como afirma, releu o livro dez anos depois e era "muito melhor do que lembrávamos", ou apenas porque queria, sei lá, comprar um sítio?

O EXÍLIO DE CECÍLIA MEIRELES

A poeta Cecília Meireles passou mais de dez anos fora do mercado editorial graças a uma briga entre um grupo numeroso de herdeiros. O impasse somente foi superado quando um subgrupo conseguiu se unir e formar a maioria necessária para autorizar a publicação de algumas obras à revelia dos outros. Recentemente, os herdeiros processaram —e perderam— uma editora que publicou sem autorização um poema de Cecília em um livro didático.

QUEBRA DE PATENTE LITERÁRIA

O caso de Machado de Assis abre um precedente interessante. Qual é o limite da autoridade dos herdeiros sobre um bem cultural considerado patrimônio de toda uma cultura, de todo um país?

Um projeto de reforma da Lei de Direito Autoral, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), está atualmente esperando um parecer da Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados.

O artigo 52-B prevê que o estado poderá autorizar a utilização de uma obra quando os herdeiros excederem "manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos costumes ou pelo fim econômico ou social do exercício dos direitos patrimoniais". Ou seja, uma licença de uso à revelia dos herdeiros, uma verdadeira quebra de patente literária.

Deveria o estado ter o direito de embargar a publicação do novo Gabo ou de forçar a reedição da velha Cecília, desrespeitando as decisões dos herdeiros? Quem é o dono de um texto literário?

O CORPO DO ARTISTA

Nós, como sociedade, temos um interesse público em mais doações de órgãos; ainda assim, mesmo em questões de vida ou morte, se não houver autorização expressa do potencial doador, preferimos errar em prol de deixar bons órgãos apodrecerem do que arriscar colher órgãos de quem não queria doar.

Reconhecemos uma certa sacralidade no corpo humano que sobrevive à própria morte e que não ousamos conspurcar.

Não seria uma obra de arte parte do corpo de seu criador? Forçar um artista a nos mostrar sua obra é um pouco como abaixar suas calças em público. Pois, sim, artista é quem se desnuda em público. Mas só é arte se for um ato de vontade: o artista desnudado a revelia é vítima.

Asdfg çlkjh!, Ruy Castro, FSP

 A moça do outro lado da mesa na agência bancária está me abrindo uma conta. À sua frente, o computador. Digita sem olhar, enquanto me pergunta sobre aplicativos, senhas, tokens e outros mistérios da vida contemporânea. Os dedos, cheios de anéis e com longas unhas, talvez artificiais, teclam a uma velocidade que, nas antigas escolas de datilografia, renderia prêmios ao aluno. Não vacila, não erra uma letra. Eu apenas observo e me espanto porque, com o dobro de anos de teclado do que ela de vida, às vezes o dedo escorrega, bato em falso e sou obrigado a corrigir.

Nos idos do século 20, sempre que alguma chatice me obrigava a ir a uma repartição pública, eu me via micado no balcão enquanto um funcionário catava milho na máquina de escrever para preencher um formulário. Aquela era a profissão do sujeito, e ele não estava preparado para a simples missão que tinha de executar: datilografar um texto. A ninguém ocorria agilizar o serviço pagando-lhe um curso de datilografia, do qual, em poucas semanas, até com o teclado coberto, ele executaria a jato o

Asdfg çlkjh asdfg çlkjh asdfg çlkjh
Asdfg çlkjh asdfg çlkjh asdfg çlkjh
Asdfg çlkjh asdfg çlkjh asdfg çlkjh.

Sendo a máquina de escrever a única alternativa mecânica à escrita manual, e estando presente em repartições de todos os tipos, eu me perguntava por que, desde a escola, não se ministravam cursos de datilografia aos estudantes. Seria uma disciplina como as outras, com provas parciais e finais, notas vermelhas para quem não aprendesse direito e possível bomba no fim do ano.

Bem, isso nunca foi feito. E, a partir dos anos 1990, deixou de precisar. Assim que se viram diante do teclado do computador —o mesmo que o das velhas Remingtons e Olivettis—, as pessoas começaram a nascer já sabendo digitar. Asdfg!

Uma máquina de escrever vintage repousa sobre uma superfície de madeira escura, com uma folha de papel inserida exibindo uma série de letras sem sentido, sugerindo um teste de digitação
Máquina Remington, modelo semiportátil, de 1959, e folha de exercício - Heloisa Seixas