sábado, 2 de julho de 2022

Marcos Mendes O que nos fará uma sociedade desenvolvida?, FSP (definitivo)

 O economista Oded Galor lançou recentemente o livro "The Journey of Humanity: the Origins of Wealth and Inequality". O trabalho impressiona ao explicar o processo de crescimento econômico compilando evidências que remontam ao período anterior à migração do Homo sapiens para fora da África. A obra deixa claro que uma condição central para o fenômeno do crescimento é o capital humano. Sociedades bem-sucedidas foram aquelas que permitiram à maioria dos seus membros desenvolver suas potencialidades.

O crescimento teria se dado de forma desigual no mundo devido a condições geográficas, históricas, culturais e institucionais, que em alguns casos permitiram e em outros tolheram o uso de todo o potencial criativo do ser humano.

Para a América Latina, o diagnóstico é coerente com a literatura que vem se desenvolvendo desde os anos 1990. Nossas condições geográficas favoráveis à monocultura de exportação geraram concentração da propriedade da terra e da riqueza, trabalho escravo sem requisito de investimento em capital humano, instituições políticas e culturais que excluíam a maior parte da população do processo político, leis e governos mais voltados a preservar privilégios do que a prover bens públicos para todos.

Candidatos chegam ao 1º dia de provas do Enem, na Unip da avenida Marquês de São Vicente, em São Paulo - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Apesar de mostrar que o nível atual de desenvolvimento de cada país tem profundas raízes históricas, Galor afirma que o destino das nações "não está gravado em pedra". Conclui a obra afirmando que se tornarão desenvolvidas as sociedades que conseguirem forjar coesão social, induzirem uma mentalidade orientada para o futuro, privilegiarem a educação e a inclusão de todos.

A mentalidade orientada para o futuro (esforço hoje, recompensa amanhã) é fundamental para a acumulação de capital e conhecimento. A coesão social facilita os acordos, gera confiança no próximo e permite que todos aceitem sacrifícios presentes em nome de benefícios futuros. Também permite que se façam contratos com pessoas desconhecidas, ampliando as possibilidades de ganhos de comércio.

O que esperar do Brasil sob essa perspectiva? Dados do World Value Survey mostram que vamos mal em termos de coesão social. Apenas 6,5% dos brasileiros acreditam que a maioria das pessoas é confiável, ante uma média de 27% dos demais países. Ficamos em 80º lugar entre 88 países no ranking da desconfiança.

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Quanto ao esforço coletivo para resolver os problemas da sociedade, 48% dos brasileiros acreditam que cabe ao governo a responsabilidade por atender as necessidades das pessoas, em oposição ao esforço individual. A média é de 16,5%. Só Jordânia e Zimbábue colocam mais responsabilidade no governo. O curioso é que o brasileiro não confia no governo, sendo o quinto na lista dos mais desconfiados. Logo, a mensagem parece ser de descompromisso individual com a solução dos problemas coletivos, jogando para um terceiro (o governo) a responsabilidade que não se quer assumir, e de buscar o governo sempre que precisar resolver um problema do seu grupo de interesse.

Em termos de mentalidade orientada para o futuro, também não vamos bem. Altas taxas de juros, alta dívida pública e baixa poupança são medidas da impaciência e preferência pelo presente. Dados do Banco Mundial mostram que temos a segunda maior taxa de juros real do mundo. A dívida pública é a 14ª maior entre 79 países emergentes (dados do FMI). Já a nossa taxa de poupança é muito baixa, ficando em 121º lugar entre 173 países.

Os nossos fracos resultados nos exames internacionais de proficiência em matemática, ciências e leitura mostram que também não vamos nada bem em termos de capital humano.

Não será fácil reverter essas condições que travam o crescimento. Uma possibilidade seria unir a sociedade em torno de poucas porém relevantes metas quantitativas, como o aprendizado escolar, a redução da pobreza e da violência.

Focar os resultados que fazem a diferença a longo prazo, sem descuidar do básico, que é evitar que a economia descambe em razão de gestões voluntaristas, baseada em fórmulas mágicas para o crescimento imediato, que sempre acabaram em desastre.

Samuel Pessôa -Pleno emprego nos anos 2000?, FSP

 

Há duas semanas reagi neste espaço ao artigo de André Singer e Fernando Rugitsky. Argumentei que a economia operou a pleno emprego nos anos 2000. Empreguei uma informação da IFI (Instituição Fiscal Independente do Senado), de que o hiato de recursos no período fora positivo. Hiato de recursos positivo é a forma como os macroeconomistas chamam a situação da economia quando ela opera além da plena capacidade.

Assim, discordei da afirmação deles no artigo original, de que o estudo da IFI mostrava que a política fiscal tinha contribuído para elevar a taxa de crescimento. O estudo da IFI mostrou apenas que houve impulso fiscal positivo.

Segundo os autores, "ocorre que a identificação da capacidade de crescimento de uma economia ou, para usar o termo técnico, de seu produto potencial, é sabidamente controversa. Mais: no caso concreto, os dados do mercado de trabalho não sustentam a ideia de que a economia estivesse com ‘pleno emprego’, especialmente no início do período mencionado pelo articulista".

Trabalhadores em busca de vagas fazem fila durante Mutirão do Emprego em SP - Danilo Verpa - 16 mai.2022/Folhapress

Apesar de os dados da IFI indicarem hiato positivo —basta olhar o gráfico 2 do estudo citado na resposta a mim—, os autores apontam que havia ociosidade no mercado de trabalho. Aí tenho dificuldade de acompanhá-los. Se o hiato da IFI era positivo, como poderia haver ociosidade do trabalho?

A figura abaixo apresenta os cálculos de meu colega de Ibre Bráulio Borges, da taxa de desemprego que mantém os salários crescendo no mesmo ritmo da produtividade do trabalho. Essa é a taxa natural de desemprego, ou a taxa de desemprego que não acelera a inflação. Como o nome sugere, se a taxa de desemprego for menor do que a natural, a inflação acelerará permanentemente.

Os dados são claríssimos: entre o primeiro trimestre de 2004 e o segundo de 2015, a taxa de desemprego observada correu aquém da taxa natural. Foi por isso que, ao longo desse período, a inflação acelerou, as exportações líquidas pioraram, os salários subiram além da produtividade e a rentabilidade do investimento reduziu-se.

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O leitor pode estranhar que a taxa natural tenha sido tão elevada no período. A taxa natural de desemprego é dada pelas regras de operação da economia, ou seja, pelo marco legal e institucional.

Há evidências de que, com a reforma trabalhista, a taxa natural está em queda no Brasil. Adicionalmente, dados recentes muito positivos do desempenho do mercado de trabalho, com forte geração de empregos, inclusive formais, sugerem que deve ter havido uma quebra estrutural no funcionamento do mercado de trabalho.

​Somente reformas microeconômicas e a melhora da qualidade do sistema público de educação conseguirão reduzir a taxa natural de desemprego.


Supremocracia lá e cá, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 O Supremo Tribunal Federal brasileiro e a Suprema Corte norte-americana ocupam uma posição proeminente em seus respectivos sistemas políticos. Não há questão relevante de natureza política, econômica e, sobretudo, moral que não termine sendo submetida à apreciação dessas cortes. Isso não significa que esses tribunais empreguem seus poderes "supremocráticos" da mesma maneira. Por "fortuna", como diria Maquiavel, nosso Supremo tem se colocado, na presente conjuntura, ao lado da democracia; já a corte de Washington confirmou-se, nesta semana, como vanguarda do atraso.

Enquanto nosso boquirroto Supremo Tribunal Federal vem se empenhando na defesa da integridade do processo eleitoral, do meio ambiente, dos direitos indígenas, do controle das armas e da violência, entre outros valores constitucionais cotidianamente atacados por um presidente hostil à Constituição de 1988, a circunspecta Suprema Corte assumiu, após a derrota eleitoral e a frustrada tentativa de golpe promovida por Trump, a liderança do movimento conservador, promovendo, sem intermediários, o maior processo de regressão constitucional na história constitucional norte-americana.

Justiça
Succo por Pixabay

Em sua recente safra de decisões, a Suprema Corte restringiu o direito ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, limitou o poder dos Estados de regular o acesso a armas de fogo e constrangeu severamente a capacidade do governo federal de promover a redução dos gases de efeito estufa, com impacto sobre o clima de todo o planeta. Fica claro, pelo andar da carruagem, que temas como a ação afirmativa e a igualdade do voto também podem entrar na sua alça de mira.

O protagonismo político das supremas cortes no Brasil e nos Estados Unidos, embora apresentem sinais opostos nessa quadra da história, decorre, sobretudo, de uma profunda disfuncionalidade dos nossos sistemas políticos.

Quando os mecanismos de representação política se tornam incapazes de promover consensos básicos; quando governantes deixam de cumprir promessas elementares, ou; quando atores políticos e institucionais se demonstram descompromissados com procedimentos e práticas constitucionais, é natural que o sistema de Justiça se veja sobrecarregado com questões políticas. Esse deslocamento da política para o Judiciário provoca, inevitavelmente, um forte desgaste na autoridade dos tribunais e, consequentemente, da própria lei.

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A forte polarização política no Brasil e nos Estados Unidos, potencializada pelas redes sociais e levada a extremos por populistas como Trump e Bolsonaro, reduziram ainda mais a capacidade do sistema político de encontrar alternativas racionais e consensuais para o enfrentamento de desafios complexos dos cidadãos. Ao invés de operar para construir convergências, populistas maximizam seu poder pela exploração dos conflitos e divergências.

Essa mesma polarização impacta ainda a composição dos tribunais, inviabilizando a manutenção de uma postura imparcial. Presidentes e senadores —lá e cá— passaram a empregar de maneira cada vez mais estratégica suas prerrogativas para a nomeação de magistrados encarregados de defender seus interesses e cosmovisões, em detrimento da defesa da lei e da Constituição.

Enquanto não formos capazes de reformar nosso sistema político, para que ele se torne capaz de coordenar conflitos e implementar soluções para problemas da comunidade, estaremos fadados a conviver com a judicialização da política. O que a experiência norte-americana nos ensina é que a "fortuna" nem sempre estará ao lado da Constituição e da democracia.