terça-feira, 17 de maio de 2022

Por que o cérebro só consegue prestar atenção em uma coisa por vez, FSP

 17.mai.2022 às 6h00

SÃO CARLOS (SP)

A ideia de que é possível prestar atenção em duas ou mais coisas ao mesmo tempo é uma ilusão: o máximo que a mente humana consegue fazer é saltar muito rapidamente de uma tarefa para outra. Novos estudos sugerem que essa limitação deriva da arquitetura profunda do cérebro, um órgão que precisaria se virar com um suprimento mais ou menos fixo de energia trazido pelos vasos sanguíneos.

"É vida que funciona no limite, quase forçando a barra —mas funciona, que é o que importa", diz a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, pesquisadora da Universidade Vanderbilt (EUA) e colunista da Folha.

Ela e seus colegas estão propondo um modelo diferente para enxergar como o cérebro lida com suas necessidades energéticas. Em vez de supor que o organismo é capaz de redirecionar todos os recursos necessários para os tecidos cerebrais sempre que houver demanda para isso, eles argumentam que a estrutura do órgão precisa sempre lidar com o fato de que tem pouca margem de manobra —daí a necessidade de resolver um problema cognitivo por vez, entre outras restrições intrínsecas ao funcionamento dele.

Mulher com as mãos na cabeça mostrando desespero com as várias tarefas a cumprir
O estudo indica que nosso cérebro não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo, mas passa de uma tarefa para outra rapidamente - Oksana Stepova - stock.adobe.com

A pesquisadora detalha os dados em favor dessa hipótese em artigos no periódico especializado Frontiers in Integrative Neuroscience. Entre os coautores dos estudos estão Lissa Ventura-Antunes e Oisharya Moon Dasgupta, também da Universidade Vanderbilt, e Douglas Rothman, da Universidade Yale (EUA).

Como qualquer outro órgão, o cérebro depende da rede de vasos sanguíneos distribuída pelo nosso organismo para sobreviver. Neurônios e demais células cerebrais são abastecidas com oxigênio e glicose (açúcar) por meio dos capilares sanguíneos, finíssimas "mangueiras" que desembocam nelas. O sangue chega aos capilares a partir da artéria carótida principal, responsável por abastecer a cabeça e o pescoço.

Sabe-se ainda que o cérebro é uma estrutura particularmente "beberrona", feito um automóvel nem um pouco econômico na hora de usar combustível. Entre seres humanos, ele pode consumir entre 20% e 25% da energia gasta pelo corpo ao longo do dia, embora corresponda apenas a algo entre 2% e 3% do peso corporal. Em menor escala, esse dispêndio desproporcional de energia por parte do cérebro também vale para outras espécies de mamíferos.

Um detalhe intrigante nesse aparente esbanjamento de energia é que, embora o fluxo sanguíneo possa quase dobrar em determinada região do cérebro que esteja sendo ativamente usada (digamos, o córtex visual, crucial para a visão, quando alguém está examinando os detalhes de uma fotografia), o consumo de oxigênio aumenta muito menos nessa mesma região cerebral. Tal "desacoplamento" aparente, que intriga neurocientistas há três décadas, é agora explicado pela capacidade de transporte de oxigênio do sangue para o cérebro, limitada pela densidade de capilares no tecido.

Além disso, tem ficado cada vez mais claro que o cérebro aparentemente em repouso, quando o indivíduo está acordado, mas sem se envolver em nenhuma tarefa cognitiva definida, na verdade está tão ativo, e consumindo tanta energia, quanto um cérebro mais "focado". Em outras palavras, o tecido nervoso funcionaria de um jeito completamente diferente dos músculos, por exemplo, que só passam a gastar muita energia quando a pessoa está movimentando alguma parte do corpo.

A esses dados se soma uma análise detalhada do consumo de glicose nos neurônios de camundongos e ratos, realizada por Herculano-Houzel, Ventura-Antunes e Dasgupta. O trio de pesquisadoras verificou que, embora a densidade de neurônios (ou seja, quantas dessas células estão empacotadas num dado espaço) possa variar centenas de vezes dependendo da região do cérebro dos roedores, a densidade de capilares que abastecem cada região varia, no máximo, quatro vezes.

Para as cientistas, isso joga por terra a ideia de que o cérebro estaria organizado de maneira a alimentar com mais oxigênio e glicose as regiões que são mais "famintas" por causa da grande quantidade de neurônios, já que o aumento da densidade de células nervosas não é acompanhado de um aumento proporcional de capilares sanguíneos. Na verdade, tudo indica que as áreas com mais densidade de neurônios recebem proporcionalmente menos combustível do que as que têm uma concentração menor dessas células.

Em conjunto, tudo isso sugeriria que o máximo que o cérebro consegue fazer é redirecionar ligeiramente a distribuição de recursos para certas áreas, dependendo da atividade realizada. É aí que se inserem as implicações da hipótese para entender as limitações da atenção humana (e de outros animais).

"É extremamente difícil fazer bem duas coisas ao mesmo tempo. Fazê-las em sequência é mais fácil", resume o neurocientista português António Damásio, da Universidade do Sul da Califórnia.

A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel fala em palestra
Pesquisadora da Universidade Vanderbilt (EUA) e colunista da Folha, a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel lidera o estudo - Keiny Andrade - 30.jun.16/Folhapress

De fato, mesmo as pessoas que parecem funcionar bem como "multitarefas" em geral estão apenas alternando com frequência entre uma tarefa e outra. E vários estudos mostram que, na grande maioria dos casos, a qualidade das tarefas realizadas tende a cair quando são realizadas em paralelo. Também podem surgir efeitos negativos de longo prazo sobre a capacidade de concentração.

Segundo Herculano-Houzel, há indícios de que ocorra uma espécie de cabo de guerra entre as diferentes estruturais cerebrais nesse caso, com saltos da atenção de uma modalidade sensorial para a outra (da audição para a visão, digamos). "O que Doug [Rothman] e eu propomos é que existe uma limitação fundamental, de origem energética, a fazermos várias coisas ao mesmo tempo; claro que outros sistemas funcionam por cima dessa limitação."

Se a proposta estiver correta, ela pode trazer implicações que vão além da compreensão mais detalhada sobre como o cérebro funciona. O mecanismo poderia ajudar a entender por que certas regiões do cérebro são mais vulneráveis à perda de suas funções durante o declínio cognitivo natural que acontece no envelhecimento, ou em formas mais severas dele, como a doença de Alzheimer. Uma das possibilidades, dizem os pesquisadores, é que justamente as regiões com maior densidade de neurônios, com presença proporcionalmente menor de capilares desde o princípio, estejam suscetíveis a isso.


segunda-feira, 16 de maio de 2022

Todos querem ser ESG, mas ignoram que vai faltar floresta, Marcos de Vasconcellos, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Seis meses após o governo brasileiro se comprometer a reflorestar um território equivalente a todo o Uruguai (ou duas vezes Portugal) até 2030, nós nos aproximamos de um "apagão de mudas".

A meta de reflorestar 18 milhões de hectares até 2030, firmada na COP26, em novembro do ano passado, soma-se à alta demanda de empresas e fundos por áreas verdes para negociar crédito de carbono. E o prognóstico é que vai faltar floresta.

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Em 2015, no Acordo de Paris, o governo Dilma Rousseff colocou a meta de reflorestar 12 milhões de hectares em 15 anos. Quatro anos depois, o governo de Jair Bolsonaro aumentou a aposta e emplacou a promessa dos 18 milhões de hectares.

Área preservada de floresta perto de Uruará, no Pará - Lalo de Almeida - 18.jul.2020/Folhapress

Mas nem só de setor público vivem as promessas verdes. Em tempos de ESG (quando os investimentos deveriam privilegiar empresas com boa governança ambiental, social e corporativa), players do setor privado estão correndo atrás de projetos de reflorestamento para compensar ou negociar créditos de carbono.

O maior exemplo recente no Brasil é a re.green, empresa que reúne nomes como João Moreira Salles e Arminio Fraga. Anunciada no mês passado, a companhia juntou quase R$ 390 milhões para comprar terrenos, reflorestar e vender créditos de carbono e madeira certificada. Eles dizem ter a meta de reflorestar 1 milhão de hectares.

Esse é um mercado em ascensão quase obrigatória, uma vez que a agenda ESG depende da compensação de créditos de carbono. E é lucrativo. Sabe quanto a Tesla, de Elon Musk, faturou com a venda de créditos de carbono no primeiro trimestre deste ano? Quase R$ 3,5 bilhões. É 20% da receita total da empresa.

No caso da Tesla, ela ganha créditos por produzir carros elétricos e os vende para as fábricas de carros "tradicionais", como GM e Chrysler.

No Brasil, o sonho dourado da produção de créditos de carbono mora nas áreas verdes. E nesse ponto é preciso colocar a bola no chão antes de continuar o jogo dos números megalomaníacos do reflorestamento. Existem três formas de reflorestar: por meio da regeneração natural, da semeadura direta ou do plantio de mudas de espécies nativas. E, para grandes áreas, o normal é usar um "mix" das três formas.

E a verdade é que faltam viveiros de plantas nativas para suprir a demanda criada com as metas de empresas e governos. Quem faz a conta é Rodrigo Ciriello, diretor da consultoria Futuro Florestal, um dos criadores da associação (Nativas Brasil) para reunir os viveiros.

Hoje, a capacidade instalada da produção de mudas no Brasil não chega a 100 milhões de mudas por ano, explica. E metade dessa produção já está "demandada", ou seja, comprometida. Sobram 50 milhões de mudas ao ano, isso se usarmos toda a capacidade dos viveiros que existem.

Ainda que o Brasil refloreste "apenas" 9 milhões de hectares até 2030 e que 30% do trabalho seja o feito com mudas, isso resulta em 337,5 mil hectares por ano. Pelas indicações da Embrapa, são necessárias cerca de pelo menos 1.100 plantas por hectare. Logo, a demanda anual passa a ser de 371,21 milhões de mudas. Muito acima da nossa capacidade atual.

Essa é apenas a ponta do iceberg, explica Bruno Mariani, CEO da Symbiosis Investimentos. "Falta muda, falta dinheiro, falta vontade, falta tecnologia", elenca. A produção de espécies nativas para a produção madeireira ou de crédito de carbono é de longo prazo (ao menos 20 anos para dar retorno) e depende de grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D).

Sem a base científica para aumentar a previsibilidade, esse tipo de projeto traz riscos altos demais para atrair o dinheiro necessário.

Conversando com quem atua efetivamente no reflorestamento, a impressão que fica é que a onda ESG, ao falar de reflorestar, esquece do principal: combinar com a realidade.

Para o investidor que quer saber quem está realmente buscando melhorar sua governança ambiental, a dica é checar quanto dinheiro está sendo direcionado para P&D, indo além da "publicidade verde".