Após anos emendando múltiplos trabalhos como ator, diretor e produtor e sem saber ao certo o que era desfrutar de um fim de semana, Marco Ricca decidiu botar o pé no freio. "A primeira vez que consegui parar e comer uma feijoada, falei: ‘Meu Deus, as pessoas vivem’ [risos]. Comer uma feijoada e tomar uma caipirinha no sábado, sabe? Ficar até de noite. Eu não tinha isso", conta.
"Perdi a minha vida para o teatro, para o cinema e para a televisão. Principalmente para o teatro, os espetáculos que eu fazia exigiam muito fisicamente. Tenho muito orgulho e faria tudo de novo, mas daqui pra frente quero fazer devagar. Acho que agora, chegando nos 60, posso começar a me dar esse pequeno prazer na vida", afirma o ator, que completa 59 anos neste domingo (28).
Não que ele esteja parado ou cogite algo nesse sentido. Além de figurar na grade da TV Globo com o personagem Breno, na novela das nove "Um Lugar ao Sol", Marco Ricca já está filmando uma nova série para a plataforma Globoplay.
"Agora faço uma coisa por vez", diz. "Me reservo o direito de fazer tudo com calma, estudar determinadas coisas. É bom porque às vezes a gente deixa o nosso ofício um pouco de lado e vai automatizando. Isso eu não quero mais. Quero voltar à essência do meu trabalho."
Depois de sucessivas interrupções nos últimos dois anos por causa da epidemia de Covid-19 no país, a novela "Um Lugar ao Sol" chegou à TV aberta no início deste mês. "Eu, sinceramente, pela primeira vez, não sei exatamente o que eu fiz. Talvez esteja bom", diz, aos risos, sobre sua atuação.
Para além das pausas e dos rígidos protocolos para evitar o contágio pelo coronavírus, o ator conta que as gravações também trouxeram como novidade o fato de "Um Lugar ao Sol" ser uma das primeiras novelas da emissora já gravadas do começo ao fim antes de ir ao ar.
"Achei fantástico. ‘Ah, mas vai decepcionar o público’. Mas o público vê série, vê filme, decepção faz parte do ser humano", diz. "A primeira novela que fiz, ‘Renascer’ [1993], fiquei um ano e meio gravando. Foi fazendo sucesso e aumentando."
Já faz um ano desde que Marco Ricca teve os primeiros sintomas da Covid-19. A doença evoluiu de tal forma que levou o ator para a UTI da Casa de Saúde São José, na capital fluminense, no início de dezembro de 2020. Ali, Marco seria intubado, extubado e intubado novamente no espaço de algumas semanas. Desde então, apesar da imagem de sobrevivente colada ao seu nome, ele diz não conseguir ficar feliz ao olhar para a sua recuperação.
"Quando retomei a consciência, me condoía muito pensar que estava ali, vivo, num hospital ótimo, com ótimos médicos. Parece cabotinismo, mas é real", conta à coluna. "A coisa que mais me vinha à cabeça eram as pessoas que estavam sendo intubadas sem o kit [de sedativos]. Fiquei imaginando eu ter que intubar sem nada. É uma tortura medieval."
"Não consegui ficar feliz. Eu abracei meus filhos, foi muito duro no sentido de ‘caramba, eu vou ver eles crescerem’, mas não consegui ter um momento de euforia. Sou grato até hoje a todos esses profissionais [de saúde que o assistiram], mas não fiquei feliz. Em nenhum momento, até hoje. Não dá para você sair feliz sabendo de gente que poderia ter se vacinado um mês antes e ainda estar aqui."
"Não tive sorte, tive privilégios. Fui para o melhor hospital que tinha, com os melhores médicos. O hospital estava fechado para a burguesia."
Para ele, o número de vítimas no país é indissociável das ações do governo Jair Bolsonaro durante a crise sanitária. "Nós tínhamos um governo que não é que não estava fazendo nada —estava fazendo contra. Nesse sentido, é um governo, sim, assassino, porque fazer contra a possibilidade de alguém viver significa matar."
"Agora você vê o que acontece no país. Não está morrendo quase ninguém porque a maioria está vacinada. Está mais do que provado, mas nem com isso os caras se convencem. Esse vagabundo vai para a frente da televisão, nas lives, e fala que a vacina não presta pra nada."
Nas últimas semanas, o ator, que mora no Rio, tem frequentado a capital paulista assiduamente em razão das filmagens da série para a Globoplay. O retorno ao local onde nasceu e se formou em história pela Pontifícia Universidade Católica de SP evoca lembranças do início de sua carreira nos palcos, na década de 1980.
"Quando a gente arrendou o Teatro do Bexiga, nós não tínhamos dinheiro. A gente fez as reformas na mão, eu aprendi a pôr tijolo, e a gente achava isso muito interessante. A gente fazia faxina, luz, sonoplastia, a gente que escrevia e atuava. Isso foi a maior escola que eu poderia ter tido na minha vida", afirma. "Nós às vezes fazíamos oito peças infantis nas escolas para arrecadar dinheiro e manter aquele teatrinho à noite, para poder fazer os nossos sonhos ali."
Eram tempos, ele conta, sem mecanismos de incentivo financeiro à cultura. "O fomento fez com que São Paulo tivesse um renascer das companhias, dos grupos pequenos, dos coletivos. Hoje você vê a quantidade de grandes atores, diretores e escritores que vieram disso."
"Eu venho para São Paulo [hoje em dia] e lembro muito como é dura a vida do ator", continua. "Os atores de São Paulo não têm emissora nem trabalho a todo tempo. O teatro é a nossa fonte, é o nosso ganha pão verdadeiro. E ele foi o primeiro a parar e está sendo o último a voltar. Muitos colegas estão aí, parados há muito tempo. Não só atores, mas técnicos, produtores. Isso tudo é muito doloroso para nós."
Marco Ricca afirma que o Brasil criou profissionais da cultura que são "verdadeiras joias", mas que agora estão sendo destruídas pela gestão de Jair Bolsonaro —a quem ele se recusa a citar nominalmente.
"A minha proposta de vida é não falar mais o nome desse cara e não falar ‘bolsonarismo’. Não existe bolsonarismo. A imprensa não tem que falar sobre isso, tem que falar sobre uma extrema direita escrota, cruel, ligada ao rentismo. Eles pegam o que quiser, até fio desencapado, para render a eles. Se ele destruir a cultura, se gente morrer ou não, se não tiver vacina para a pandemia, dane-se, eles querem aquele lucro."
"Se a gasolina está R$ 8, mas se os caras da ação estão ganhando dinheiro, dane-se se isso vai gerar inflação, gerar desemprego, eles estão ganhando. Eles destruíram a educação brasileira, sucatearam tudo. Nós viramos sucata."
Segundo o ator, que se considera de esquerda, o momento pede união de pessoas que querem fazer com que o país seja menos miserável.
"As nossas reflexões têm que passar por um fio outro. Não adianta ficar indo para rua quando vai o PSDB e dar chinela neles. Não pode, cara. Claro que nós temos diferenças gritantes, mas é o seguinte: Está comigo? Vamos embora."
Apesar do tom pessimista, Marco se diz esperançoso em relação à mobilização da juventude para mudar o país.
"Tenho um filho de 22, eu vejo a cabeça dele, ele vai mudar essa porra. Ele vai, eu sei que vai. Não é comigo, não é com essas raposas velhas que estão aí. Os ‘véio’ que nem eu, nós vamos para a rua. Pode deixar no primeiro pelotão ali, deixa eles darem tiro na gente, e os jovens vão atrás com a ideia. E eu tenho confiança, vejo o mundo de outro jeito com eles."
"O único legado que eu gostaria de deixar é um mundo solar. A gente está falando aqui de uma profundidade melancólica, difícil, porque o mundo está assim. Mas eu não acordo um dia sem falar um ‘bom dia’ lindo. A contaminação não chega a isso. Eu acordo em casa e é a coisa mais linda da minha vida. O mundo é que estraga um pouco tudo, mas a gente não deve deixar."