[RESUMO] Fernando Henrique Cardoso relembra a trajetória do cientista político Leôncio Martins Rodrigues, que morreu na segunda (3) aos 87, de quem foi amigo por mais de meio século. Professor exemplar, realista e lúcido, um dos principais estudiosos dos sindicatos e dos trabalhadores industriais no Brasil, deixou ainda um exemplo de coragem e lealdade na defesa de amigos perseguidos durante a ditadura, diz ex-presidente.
Conheci Leôncio Martins Rodrigues há muito tempo. Há mais de 50 anos, quase 70... Digo de que maneira: Ruth Villaça Corrêa Leite e eu, ainda alunos da FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP), começamos a nos treinar como professores na Escola Fernão Dias Paes, em Pinheiros, um bairro de São Paulo.
Um senhor, Fued Boueri, casara-se com uma tia de Ruth e fora nomeado secretário de Educação: ofereceu-nos a oportunidade de ensinar no curso colegial, no turno da noite, quando ainda éramos alunos, em 1952, no final de nosso terceiro ano da faculdade. Um dava história do Brasil; o outro, história geral (não me lembro mais qual de nós dois dava cada curso).
Pois bem, Leôncio, que fizera um curso chamado de madureza (similar ao que hoje chamamos de supletivo), foi aluno da Ruth no secundário, no Fernão Dias. Nós éramos mais velhos, mas não tanto assim.
Na ocasião eu pertencia ao conselho editorial da Revista Brasiliense, de Caio Prado Júnior. A revista não pertencia ao Partido Comunista, mas era-lhe próxima. Logo depois nela se concentrariam os que nos opúnhamos à linha partidária.
Leôncio, na ocasião, era conhecido, entre outras coisas, por haver sido operário (não que precisasse, pertencia a uma família de classe média, seu tio-avô, Lúcio Martins Rodrigues, havia sido reitor da USP), creio que para sentir mais de perto a voz e, quem sabe, os aconchegos da “classe portadora do futuro”. Na época era trotskista.
Eu, de temperamento mais concessivo do que seria de esperar de um “militante”, não dava ouvidos a meus colegas da Revista Brasiliense e proximidades e tornei-me amigo de Leôncio. Os mais calejados temiam que ele estivesse fazendo “entrismo”, pois este tipo de comportamento, aproximar-se da esquerda para denunciá-la, era atribuído erroneamente aos “trotskistas”.
Eu já me relacionava com outros tantos acusados de “trotskismo”, desde os tempos da Revista dos Novíssimos (no caso, poetas ou escritores).
Desde então Leôncio foi meu amigo. Mais tarde entrou também para a FFCL e se tornou um sociólogo competente e reconhecido. Foi nesta qualidade que escreveu belos trabalhos (alguns tendo como base seu conhecimento da Ford em São Paulo).
Na minha geração (se é que posso, abusivamente, colocar-me na mesma geração que Leôncio), poucos se dedicaram mais a escrever sobre os trabalhadores industriais brasileiros e seus sindicatos. Ele o fazia sempre com base em pesquisas, e não em meras opiniões.
Além disso, foi sempre um professor (e assim gostava de ser chamado). Trabalhou comigo em um centro de pesquisas que fundei e dirigi na USP, o Cebrap. Foi professor-assistente de Florestan Fernandes, até se tornar titular de ciência política, tanto em Campinas como em São Paulo, além de haver passado um tempo na Universidade de Bruxelas. Histórias conhecidas dos que lhe foram próximos.
O que talvez seja menos conhecido é que Leôncio sempre foi um homem de coragem. Nas épocas difíceis do autoritarismo, era ele quem se encarregava de, por amizade, ajudar os perseguidos. Coragem e lealdade sobravam em Leôncio. Foi-se e deixa saudades nos amigos e respeito entre os que o leram. Realista e lúcido, Leôncio desconfiava dos muito crentes, em política ou na vida.
Quando fui presidente, só a muito custo anuiu em participar na delegação dos representantes do Brasil na OIT (Organização Internacional do Trabalho). Jamais deixou de ser o que gostava de ser: pesquisador e professor. Era um ser humano adorável. Com seu jeito conquistava os mais moços, como meus filhos e a Patrícia, assim como o respeito de todos. Resquiecat in pace.