quarta-feira, 5 de maio de 2021

Paulo Gustavo mostra que estamos todos morrendo de Brasil, Renan Quinalha, FSP

No dia 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, consagrou o reconhecimento às uniões homoafetivas. A decisão foi paradigmática por impactar a vida de milhares de casais e também por inaugurar um verdadeiro ciclo de “revolução dos direitos” da diversidade sexual e de gênero.

A partir daí, a cidadanização, ao menos do ponto de vista formal, parecia constituir um caminho sem volta com as sucessivas decisões do STF que foram, pouco a pouco, ampliando o repertório de direitos LGBTs no país.

Paulo Gustavo e Thales Bretas
Paulo Gustavo e Thales Bretas - Instagram/ThalesBretas

No entanto, no aniversário de dez anos da decisão, perdemos aquele que foi um dos mais potentes divulgadores das famílias LGBT entre nós.

Paulo Gustavo exerceu seu direito ao casamento em 2015, quando oficializou a união com Thales Bretas e, em seguida, o casal teve dois filhos. Mesmo sem reivindicar um ativismo tradicional, eles mostraram à sociedade, a seu modo, que “famílias” é uma palavra que só existe no plural.

Ao mesmo tempo, bateu recordes de bilheteria ao abordar as dores e delícias da relação entre uma pessoa LGBT com sua família. O impacto da visibilidade e da representatividade desses personagens não pode ser menosprezado.

Paulo Gustavo furou no país um dos maiores bloqueios à efetividade dos direitos LGBTs.

No Brasil, o reconhecimento formal das garantias à vida, à igualdade e à não discriminação convive ainda com os maiores índices de assassinatos de LGBTs do mundo. A conquista legal só é real quando acompanhada de uma profunda mudança no coração e na mentalidade das pessoas.

Ele fez isso. Ajudou a disputar os valores e a cultura na nossa sociedade não só para a tolerância, mas para a humanização das pessoas LGBTs.

Ocupou as telas e o lar de homofóbicos que se enxergaram, se emocionaram e se desconstruíram com seus personagens. Fez da sua vida e da sua arte bandeiras para ampliar horizontes morais e questionar preconceitos arraigados.

Triste, portanto, a coincidência de sua morte quando se completam exatos dez anos da decisão do Supremo.

Sobretudo porque vivemos um momento em que o conservadorismo cresce, a cruzada contra as existências LGBTs se recrudesce e os ataques à democracia se intensificam.

Paulo Gustavo é um entre os 412 mil mortos por Covid no país. A escalada galopante dos números tem nos reservado uma dose diária de tristeza, incômodo e indignação.

Diversos são os modos como suportamos, subjetivamente e como sociedade, tantas e tamanhas perdas. O caminho predominante tem sido, apesar da revolta constante, a letargia paralisante e conformista que nos sequestra.

Contudo, Paulo Gustavo não é “só mais um”. Com 42 anos e no auge, parece ter catalisado esse luto coletivo e que nos tem sido negado. Ele nos faz ver, ainda com maior nitidez, a nação desassistida, desamparada e desgovernada.

A comoção gigantesca, de norte a sul, em diferentes classes sociais, só é explicada por ela escancarar o Brasil do descaso em que nos transformamos, devido à ação de alguns e à passividade de todos.

Até ao partir, Paulo Gustavo se conectou com o mais profundo da sociedade brasileira.

Famoso e rico, tinha acesso aos melhores tratamentos e equipe médica. Também era um cara jovem, cheio de vida, saudável, que vinha lutando bravamente contra a doença.

Já temos vacinas, mas o governo decidiu não as comprar lá atrás e estocou cloroquina. Ou seja, ele tinha tudo para seguir vivo e brilhando. Menos na terra do negacionismo.

Sua morte prematura e evitável nos rouba parte relevante do Brasil saudoso, bem-humorado, inteligente e esperançoso. E nos faz lidar com a constatação de que estamos todos morrendo de Brasil.

  • SALVAR ARTIGOS

    Recurso exclusivo para assinantes

    ASSINE ou FAÇA LOGIN

  • 14

 

Marcelo Coelho Nada mais patético do que ato pró-Bolsonaro, a favor de golpe para ter direitos, FSP

 Sou bem ruinzinho em coisas de internet, mas aos poucos vou aprendendo. Por exemplo: toda vez que ligo o computador, aparece uma paisagem linda. “Você não vai acreditar em que país fica esta floresta tropical” ou “James Bond já mergulhou nestas águas cristalinas”.

Sem ser nenhum 007, sei que não devo entrar nessa cumbuca. Você clica e por algum mistério o seu sistema de busca padrão na internet passa a ser automaticamente o Bing.

Dá trabalho voltar para o velho e bom Google. Mas... ah-ha, eu tenho meus segredinhos.

Meu navegador preferido é o Chrome —sigo a maioria, sem dúvida—, mas digo para o computador que meu navegador-padrão é o Microsoft Edge.

Várias pessoas em cima de cavalos brancos. Desenho com cores verde e amarela
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho, publicada no jornal Folha de S.Paulo em 5 de maio de 2021 - André Stefanini

Desse modo (espero), todas chatices e padronizações involuntárias são canalizadas para o Edge, que nunca uso.

Claro que, no fundo, essas supostas espertezas são tão risíveis quanto a atitude de um aborígene enfrentando com arco e flecha uma ogiva nuclear.

Em matéria de conflito real, leio que a Apple entrou em guerra com o Facebook, lançando um sistema que teoricamente protege a privacidade dos usuários. Para cada aplicativo que você baixa no celular, há um modo de impedir que rastreiem seus dados pessoais.

Não acredito muito no sucesso da iniciativa. É possível que, para a maioria das pessoas (eu, pelo menos), essa questão de privacidade não seja tão sacrossanta assim.

Gosto quando se baseiam nas minhas escolhas quando me indicam livros e filmes na Amazon ou na Netflix.

E me divirto quando, sabendo da minha idade, a internet me oferece as melhores ofertas para aparelhos de surdez e higienização de dentaduras.

Já a manipulação política é um caso bem mais sério; linchamentos virtuais também.

Acredito que reprimir esse tipo de coisa é uma tarefa urgente, que passa por cima das desculpas habituais em defesa da liberdade de expressão ou da velha e boa privacidade dos usuários.

Depois de Trump, da Covid e de violências de todos os tipos contra figuras públicas, vai ficando consensual o sentimento de que a liberdade de expressão tem de ter limites na internet. Como sempre teve, aliás, em qualquer meio de comunicação pública.

Não se trata do fascistinha comum ou do comediante vulgar. Um estudo do governo britânico chegou à conclusão, nestes dias, que Vladimir Putin dispõe de uma rede de trolagem destinada a inibir as críticas da imprensa internacional ao regime.

As páginas de comentário online de vários jornais, em 15 países do mundo, são invadidas por mensagens a favor das atitudes da Rússia em questões estratégicas.

O governo de Putin depois republica tudo na mídia local, para mostrar que conta com apoio no estrangeiro.

Não acho que isso seja teoria da conspiração; o papel dos russos na eleição de Trump é conhecido. O fato de muitos malucos acreditarem em todo tipo de conspiração não impede que conspirações existam de fato —ainda mais quando os malucos assumem o poder.

O faroeste neoliberal da economia foi transposto para a internet, outra terra sem lei.

A vantagem cresce, sempre, para quem concentra mais poder: tanto os grandes conglomerados econômicos, quanto os ditadores. É o Estado, o Estado democrático de Direito, que serve para proteger as vítimas dessa situação.

A direita, ao mesmo tempo que faz vista grossa para o autoritarismo político, adora ver em todo Estado o carrasco das liberdades individuais.

É uma lorota; não há liberdade individual sem Estado democrático, sem os freios e contrapesos estabelecidos na lei e na Constituição.

Nada mais patético do que os manifestantes pró-Bolsonaro, querendo um golpe para garantir os “direitos constitucionais” de não usar máscara, lotar hospitais e contaminar o resto da população.

Nesse modo de ver o mundo, o poder absoluto de Bolsonaro se transfere a cada um de seus apoiadores.

Cada um se imagina um bolsonarozinho, de arma em punho, podendo xingar negros e homossexuais à vontade, sem nenhuma limitação legal.

O chamado “cidadão de bem” adere, desse modo, à utopia do bandido, do traficante que ele tanto detesta. Com uma pistola na cintura, fará o que bem entender.

Aplaudiram Roberto Jefferson na manifestação pró-Bolsonaro em São Paulo.

Para quem era entusiasta de Sergio Moro, isso é que é tirar a máscara de uma vez por todas.