No dia 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, consagrou o reconhecimento às uniões homoafetivas. A decisão foi paradigmática por impactar a vida de milhares de casais e também por inaugurar um verdadeiro ciclo de “revolução dos direitos” da diversidade sexual e de gênero.
A partir daí, a cidadanização, ao menos do ponto de vista formal, parecia constituir um caminho sem volta com as sucessivas decisões do STF que foram, pouco a pouco, ampliando o repertório de direitos LGBTs no país.
No entanto, no aniversário de dez anos da decisão, perdemos aquele que foi um dos mais potentes divulgadores das famílias LGBT entre nós.
Paulo Gustavo exerceu seu direito ao casamento em 2015, quando oficializou a união com Thales Bretas e, em seguida, o casal teve dois filhos. Mesmo sem reivindicar um ativismo tradicional, eles mostraram à sociedade, a seu modo, que “famílias” é uma palavra que só existe no plural.
Ao mesmo tempo, bateu recordes de bilheteria ao abordar as dores e delícias da relação entre uma pessoa LGBT com sua família. O impacto da visibilidade e da representatividade desses personagens não pode ser menosprezado.
Paulo Gustavo furou no país um dos maiores bloqueios à efetividade dos direitos LGBTs.
No Brasil, o reconhecimento formal das garantias à vida, à igualdade e à não discriminação convive ainda com os maiores índices de assassinatos de LGBTs do mundo. A conquista legal só é real quando acompanhada de uma profunda mudança no coração e na mentalidade das pessoas.
Ele fez isso. Ajudou a disputar os valores e a cultura na nossa sociedade não só para a tolerância, mas para a humanização das pessoas LGBTs.
Ocupou as telas e o lar de homofóbicos que se enxergaram, se emocionaram e se desconstruíram com seus personagens. Fez da sua vida e da sua arte bandeiras para ampliar horizontes morais e questionar preconceitos arraigados.
Triste, portanto, a coincidência de sua morte quando se completam exatos dez anos da decisão do Supremo.
Sobretudo porque vivemos um momento em que o conservadorismo cresce, a cruzada contra as existências LGBTs se recrudesce e os ataques à democracia se intensificam.
Paulo Gustavo é um entre os 412 mil mortos por Covid no país. A escalada galopante dos números tem nos reservado uma dose diária de tristeza, incômodo e indignação.
Diversos são os modos como suportamos, subjetivamente e como sociedade, tantas e tamanhas perdas. O caminho predominante tem sido, apesar da revolta constante, a letargia paralisante e conformista que nos sequestra.
Contudo, Paulo Gustavo não é “só mais um”. Com 42 anos e no auge, parece ter catalisado esse luto coletivo e que nos tem sido negado. Ele nos faz ver, ainda com maior nitidez, a nação desassistida, desamparada e desgovernada.
A comoção gigantesca, de norte a sul, em diferentes classes sociais, só é explicada por ela escancarar o Brasil do descaso em que nos transformamos, devido à ação de alguns e à passividade de todos.
Até ao partir, Paulo Gustavo se conectou com o mais profundo da sociedade brasileira.
Famoso e rico, tinha acesso aos melhores tratamentos e equipe médica. Também era um cara jovem, cheio de vida, saudável, que vinha lutando bravamente contra a doença.
Já temos vacinas, mas o governo decidiu não as comprar lá atrás e estocou cloroquina. Ou seja, ele tinha tudo para seguir vivo e brilhando. Menos na terra do negacionismo.
Sua morte prematura e evitável nos rouba parte relevante do Brasil saudoso, bem-humorado, inteligente e esperançoso. E nos faz lidar com a constatação de que estamos todos morrendo de Brasil.
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